sexta-feira, 1 de abril de 2011

“HÉRCULES- QUASÍMODO”

O Brasil carrega as chagas de sua formação sócio-econômica incompleta e em grande medida deformada pela opção das classes dirigentes em manter a sociedade brasileira subordinada á esferas de decisão externas. A construção de um espaço nacional soberano, dotado de capacidade para enfrentar as deformações sociais crônicas do país, está em constante contradição com os interesses da classe dominante associada ao capital estrangeiro, que aceita a condição de sócia (nem sempre minoritária) da banca internacional. Essa subordinação impõe barreiras à elevação do estatuto social das massas populares e à superação do “apartheid social” imposto às maiorias. A 10° economia mundial convive em seus porões com a miséria econômica, cultural e política de uma parcela de brasileiros excluídos das garantias básicas ofertadas pela modernidade. O crescimento econômico dissociado de uma política de combate às deformações estruturais da nossa formação se demonstrou incapaz de incorporar as grandes maiorias da população a vida pública nacional. Esse é o pano de fundo que atribui sentido ao cenário político e econômico brasileiro em 2009, imerso na crise econômica, social e ambiental de escala planetária, cuja profundidade ainda são desconhecidas. A realidade nos impõe uma reflexão que deve ir além da atual crise, para que posteriormente possamos situá-la no contexto brasileiro, identificando que rotas estão em disputa no próximo período.

Veias Abertas

         Para uma breve análise do cenário político brasileiro em 2009 é necessário apontar as questões fundamentais da realidade nacional, que ao nosso olhar, merecem destaque, não por serem questões novas, mas pelo contrário, por possuírem certa continuidade em nossa história e em especial na última década, condicionando, por suposto, as movimentações conjunturais dos atores políticos em disputa. Vejamos:

1) A Concentração de Renda se coloca com uma das principais mazelas de nossa sociedade, os 10% mais ricos da população brasileira controlam 75% da riqueza nacional, sobrando aos 90% da população o controle de apenas 25% da riqueza do país. Como se não bastasse, apenas 5 mil famílias brasileiras acumulam 45% da renda e da riqueza nacional. A participação do rendimento da classe trabalhadora na renda nacional é de apenas de 39,1%. As altas taxas de juros garantidas pelo Governo Federal é entre outras coisas um mecanismo de transferência de riqueza da classe trabalhadora para a elite rentista que corresponde à cerca de 20 mil famílias (o país têm aproximadamente 65 milhões de famílias), anualmente são transferidos de 5 a 8% do PIB em forma de renda para a elite, enquanto apenas 0,5% do PIB é transferido para programa de renda mínima como o Fome Zero, que atende cerca de 10 milhões de famílias brasileiras. Repetido 8% do PIB vai parar nas mãos de 20 mil famílias na forma de juros enquanto 10 milhões de famílias disputam apenas 0,5% do PIB distribuídos pelo Fome Zero [1]

. Mais ainda não é tudo.

2) O Sistema Tributário brasileiro é fortemente regressivo, á margem do que é estabelecido pela Constituição Federal, os pobres pagam mais.

“Quem ganha até dois salários mínimos paga 49% dos seus rendimentos em tributos. Mas quem ganha acima de 30 paga apenas 26%.”[2]

 A razão desta situação está na forma como se estrutura a tributação no Brasil que prioriza os impostos indiretos, onerando os bens de consumo (ICMS) de massa como alimentos e produtos de primeira necessidade. Para se ter uma idéia da distribuição

da carga tributária brasileira atualmente apenas 4% da arrecadação não previdenciária recai sobre a propriedade, 26% sobre renda, 7% outras fontes e 63% os bens e serviços, este último sempre repassado para o preço das mercadorias. [3]

 O Imposto Sobre as Grandes Fortunas, previsto na Constituição de 88, até hoje não possui lei complementar. Para agravar a situação o projeto de reforma tributária em discussão no Congresso (PEC 233/2008) aponta para a restrição a efetivação dos direitos sociais, pois altera negativamente as fontes de financiamento exclusivas da seguridade social (saúde, previdência, e assistência social) e da educação.

3) As reformas democráticas como a agrária e a urbana estão fora da pauta dos governos, o latifúndio improdutivo e a especulação imobiliária são antes de tudo processo de concentração de poder. Atualmente existe um déficit habitacional de 10 milhões de moradias, enquanto existe uma parcela significativa de imóveis que não cumpre a função social. O Estatuto das Cidades, lei federal que prevê, entre outras medidas o IPTU progressivo, ainda não foi colocado em prática na maioria dos municípios. Um grande potencial produtivo no campo e na cidade está obstruído pela mesquinhez dos rentistas.

4) Existe no país uma Democracia de baixa intensidade, o que significa dizer que a maioria da população está alijada dos grandes debates nacionais. Os canais de participação instituídos (conselhos, conferências, etc.) não possuem caráter deliberativo, não vinculam as ações do poder público, o que esvazia seu sentido prático. A miséria econômica da população brasileira moldou um sujeito político raquítico, com pouca capacidade crítica, limitado à participação eleitoral.

Citamos 4 questões substantivas da realidade brasileira com o intuito de perceber as perspectivas do Brasil para 2009.

Brasil e a Crise Financeira

 Crises financeiras fazem parte do metabolismo do capital, que em seu processo de expansão se desloca da base econômica real, no caso da atual crise o processo se acentuou com a desregulação dos espaços econômicos nacionais em favor da especulação criando riqueza fictícia. Estima-se que os ativos financeiros movimentem uma riqueza dez vezes maior do que a riqueza real (material), a riqueza mundial é avaliada em algo em torno de 55 trilhões de dólares, em outubro de 2008 ocorre à perda de 27 trilhões em ativos em processo de desvalorização.
Diante de uma crise como esta proporção é inevitável que todas as regiões do planeta sofram em alguma medida seus impactos. Contudo esses impactos possuirão particularidades relativas à configuração econômica de cada país, o tamanho do seu mercado interno, o grau de controle da política econômica, etc. Vale a pena afirmar que mesmo reconhecendo a gravidade da crise é necessário afastar a idéia de colapso do sistema capitalista de produção em conseqüência da mesma. Por maior que seja as dificuldades de recomposição da “normalidade” das relações financeiras, elas são possíveis a partir da intervenção estatal. Somente o Estado é capaz estabelecer uma nova regulamentação acima dos interesses mesquinhos dos agentes econômicos. Porém é verdade que a geopolítica do capital irá sofrer alterações substantivas, a hegemonia norte-americana já questionada desde o começo da década agora é obrigada a ceder espaços para outros operadores geopolíticos, em especial a China. Porém o colapso do sistema do capital não está dado, uma vez que a superação do capitalismo é obra da luta de classes, portanto é eminentemente política. As possibilidades das crises econômicas gerarem crises políticas são reais, porém no momento ainda não estão dadas, devido à ausência de uma alternativa pós-capitalista que possua expressão de massas. A crise colocou em questão o neoliberalismo, a ideologia da desregulamentação da economia, etc., contudo ainda não foi capaz de criar uma situação de descontrole político dos blocos de poder nacionais.
No Brasil os impactos já começam a ser sentidos, calcula-se que são desempregados por dia 8.800 trabalhadores com carteira assinada, ainda não é possível calcular os números de informais que perderam suas colocações. O setor primário-exportador com certeza é o mais afetado diante a crise de investimentos no exterior, a exportações sofrerão diminuições substanciais. Demissões e férias coletivas em massa já estão acontecendo na Embraer e nas montadoras automobilísticas. O crescimento econômico previsto para 2009 não passará de 3,5% o que significa que o mercado de trabalho não absorverá a juventude que ingressa à população economicamente ativa. Os desdobramentos serão achatamento salarial, informalidade e precarização do trabalho.

Desafios brasileiros

A crise financeira demonstra as contradições da expansão do capital especulativa, abre caminho para uma discussão mais profunda em nosso país. Quais as perspectivas de enfretamento da crise? Ao nosso ver a crise pode abrir a oportunidade de colocar em prática medidas de fortalecimento da soberania nacional sobre a economia, uma vez que o enfraquecido os poderes externos condicionantes de nossa política, cria uma margem de manobra em termos geopolíticos que se explorados podem garantir um enfretamento dos problemas estruturais de nossa formação, porém esta perspectiva figura apenas no campo das possibilidades tendo em vista o posicionamento das organizações sociais e populares que ainda carecem de clareza estratégica e capacidade de mobilização com o intuito de colocar na agenda da sociedade propostas de superação do atual bloco de poder político e econômico, que opera sob hegemonia dos capitalistas financeiros.  As propostas de combate à crise não são isentas politicamente, existem diferentes propostas de enfretamento algumas de caráter conservador, que possui como estratégia a sustentação dos bancos e outras que aponta para a tentativa de reconfiguração da geometria do poder político e econômico;  até o momento prevalece a primeira posição.
Ao nosso juízo uma proposta de superação da crise deve procurar construir novas possibilidades para a nação brasileira, trazendo à esfera de discussão debates interrompidos pela onda neoliberal.
Em primeiro plano, figura no quadro de prioridades, a recomposição a densidade nacional, o que significa dizer que para superar as desigualdades estruturais é necessário lançar mão dos recursos nacionais próprios de maneira planejada e controle sobre a política econômica, onde da produção da riqueza encontre uma arquitetura jurídica desconcentradora, estabelecendo a distribuição dos resultados do desenvolvimento a maioria da população. Recompor a densidade nacional é um ato de soberania que implica em reafirmar o protagonismo do Estado sobre a econômica e o planejamento nacional. A ideologia liberal, difundida dentro de setores importantes da esquerda, menospreza o papel do Estado em um contexto de globalização, é, como toda ideologia, uma deformação da realidade. O Estado segue sendo um elo decisivo no processo de reprodução do capital seja através da criação de um marco institucional (materialização de uma política) que estabeleça uma determinada forma pela qual se dão as relações comerciais, laborais, tributárias, etc, seja pela inserção direta na economia através de suas empresas.
Fica claro que a densidade nacional será ampliada caso ocorra uma vontade política soberana que se expresse no controle do Estado e exerça hegemonia política na sociedade civil brasileira. Caso contrário qualquer nível de crescimento econômico preservará os privilégios das elites, reproduzindo desigualdades, concentrando riqueza, renda e poder, exemplo deste fato foi à recuperação econômica brasileira após 2004, que mesmo criando empregos formais não alterou a distribuição de renda nacional.
         Algumas medidas no momento podem contribuir para a recomposição da densidade nacional:

1 – Centralização do câmbio com o objetivo recuperar o controle público sobre a política monetária, o Estado deve ser o único agente responsável pela compra e venda de moedas estrangeiras com o intuito de enviar as retiradas de grandes porções de capitais do país. O controle do fluxo de capitais através da tributação das movimentações especulativas é fundamental para a defesa da economia nacional.

2 – A redução da taxa de juros para patamares civilizados é uma das medidas essenciais para criar condições de ampliação do investimento, consumo interno e produção. Atualmente a taxa de juros, em todo de 13,75% mantêm a dívida líquida do setor público em patamares muito elevados, é necessário procurar uma diminuição da taxa á exemplo de outras nações de periferia que praticam um taxa em torno de 5%.

3 - O investimento público substantivo em obras de infra-estrutura pode garantir a absorção de um grande contingente de trabalhadores no mercado de trabalho, combatendo o aumento do desemprego ao mesmo tempo em que melhora as condições de vida da população, significa investir mais em programas como o PAC, porém associado a um programa de reforma urbana nos termos do Estatuto das Cidades que enfrente a especulação imobiliária e construa um programa habitacional mais abrangente tendo em vistas as 10 milhões de famílias sem-teto do país. Hoje, o PAC possui um orçamento de 21 bilhões de reais, este orçamento é possível de ser ampliando, uma vez que os cofres públicos pagam aos setores rentistas, devido às altas taxas de juros, um montante superior a 100 bilhões de reais por ano, portanto é necessária uma inversão de prioridades orçamentária que tenha com objetivo o combate dos efeitos da crise nos setores majoritários da sociedade.

4 – Os gastos com a educação e seguridade social devem ser mantidos, dentro desta perspectiva devemos refutar a PEC 233/2008 (reforma tributária) em tramitação no Congresso, de autoria do Executivo que desmonta o sistema de financiamento destes setores.

5 – A Justiça Tributária figura com um instrumento importante na distribuição de renda no país, portanto é necessário reduzir os impactos dos tributos indiretos incidentes sobre o consumo (que onera os bens de consumo da classe trabalhadora) e edificar o sistema tributário priorizando os impostos diretos, como por exemplo, o Imposto de Renda e o Impostos sobre Grandes Fortunas (até hoje não regulamentado), o ITR e o IPTU, personalizando a cobrança dos tributos de acordo com a capacidade econômica do indivíduo.

         As medidas expostas acima não exigem nenhuma alteração na Constituição Brasileira, o que não vale para as propostas regressivas como a PEC 233/2008, contudo os interesses especulativos do capital nacional e internacional impõem um regime próprio, deslocado e sobre as disposições constitucionais. Também não é possível isentar os governos, como fazem alguns, da responsabilidade sobre o processo de desregulamentação do espaço econômico nacional. O governo federal ao manter e aprofundar uma política econômica que privilegia o setor especulativo do capital, tomou uma posição clara em relação aos projetos de sociedade em disputa, qualquer outra medida de caráter assistencial, muitas vezes necessárias, não isenta a opção pelos mais ricos que compromete a principal fatia orçamentária em favor do capital financeiro-especulativo.
 Desde as medidas emergências de caráter anticíclico até as mudança das estruturas sociais são expressões de uma vontade política que consiga aderência em vastos setores da sociedade e que tenha como pólo dinâmico à classe trabalhadora, esta vontade política se materializa em um bloco político que tenha como estratégia o controle estatal e a hegemonia na sociedade, ou seja, um sujeito coletivo que possua a capacidade e exercer o poder através da incorporação das massas não proprietárias e das classes que vivem do trabalho dentro de uma esfera nacional de debate político.
A “construção interrompida” do nosso sentido nacional, para usar a expressão de Celso Furtado, somente será superada com a produção de uma convergência política capaz recompor um pensamento teórico autônomo sobre a realidade brasileira e uma prática que seja capaz de capilarizar o debate político para os alicerces do edifício social, as classes que vivem do trabalho. Por sua condição geopolítica, base produtiva, oferta de recursos naturais e uma força de trabalho abundante, qualificada e capaz e criar um mercado de consumo interno contundente, coloca o Brasil em um patamar de importância de primeira grandeza, contudo, as imperfeições de sua formação ainda o condiciona a viver aquém das suas possibilidades enquanto civilização autônoma, com uma densidade nacional à altura do seu povo. Assim usando a expressão formulada Euclides da Cunha, citado por Faoro, o Brasil seria uma espécie de “Hércules- Quasímodo”, um gigante poderoso, porém limitado pela imperfeições, ou obstruções, de sua formação. Porém diferente do mito, na história nada é definitivo.

Belo Horizonte, março de 2009

Pedro Otoni
 



[1] POCHMANN, Márcio, O país dos desiguais, in Le Monde Diplomatique, Outubro de 2007
[2] KHAIR, Amir, Pela justiça tributária, in Le Monde Diplomatique, julho de 2008.
[3] SICSÚ, João, Controle de capitais ou liberalização financeira?, Caderno Liberdade para o Brasil, 2005.

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