domingo, 28 de abril de 2019

A Revolução dos Bichos George Orwell Dublado 1999

Escrita em plena Segunda Guerra Mundial e publicada em 1945 depois de ter sido rejeitada por várias editoras, essa pequena narrativa causou desconforto ao satirizar ferozmente a ditadura stalinista numa época em que os soviéticos ainda eram aliados do Ocidente na luta contra o eixo nazifascista.
De fato, são claras as referências: o despótico Napoleão seria Stálin, o banido Bola-de-Neve seria Trotsky, e os eventos políticos – expurgos, instituição de um estado policial, deturpação tendenciosa da História – mimetizam os que estavam em curso na União Soviética.
Com o acirramento da Guerra Fria, as mesmas razões que causaram constrangimento na época de sua publicação levaram A revolução dos bichos a ser amplamente usada pelo Ocidente nas décadas seguintes como arma ideológica contra o comunismo. O próprio Orwell, adepto do socialismo e inimigo de qualquer forma de manipulação política, sentiu-se incomodado com a utilização de sua fábula como panfleto.
Depois das profundas transformações políticas que mudaram a fisionomia do planeta nas últimas décadas, a pequena obra-prima de Orwell pode ser vista sem o viés ideológico reducionista. Mais de sessenta anos depois de escrita, ela mantém o viço e o brilho de uma alegoria perene sobre as fraquezas humanas que levam à corrosão dos grandes projetos de revolução política. É irônico que o escritor, para fazer esse retrato cruel da humanidade, tenha recorrido aos animais como personagens. De certo modo, a inteligência política que humaniza seus bichos é a mesma que animaliza os homens.


Escrito com perfeito domínio da narrativa, atenção às minúcias e extraordinária capacidade de criação de personagens e situações, A revolução dos bichos combina de maneira feliz duas ricas tradições literárias: a das fábulas morais, que remontam a Esopo, e a da sátira política, que teve talvez em Jonathan Swift seu representante máximo.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Situação Política Brasileira

Situação Política Brasileira

por Jorge Arnaldo e José Martins, da redação.
Afinal, o que pensam os capitalistas e demais classes proprietárias da atual situação política do maior país ao sul do equador e o que planejam para o seu futuro? Nesta última semana, eles abriram um pouco mais o jogo e deram algumas pistas a respeito. Analisando-as mais de perto, todos os sensatos cidadãos brasileiros poderão agora votar com mais fundamentos nas próximas eleições de outubro
Do exterior, uma didática matéria de capa da revista inglesa The Economist.  Do interior, direto da Avenida Paulista, uma bombástica entrevista do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (FHC), principal ideólogo da protoburguesia nacional. Além de outras figurinhas carimbadas do mercado.
Houve inúmeras manifestações sobre o futuro da democracia no Brasil,  mas sem grandes diferenças. Primeira constatação: essas avaliações políticas dos capitalistas de fora e de dentro coincidem milimetricamente. Na forma e no conteúdo. Uma verdadeira internacional do capital sem fronteiras. Se o Estado sempre é nacional, o capital é crescentemente internacional.
The Economist trata Jair Messias Boçalnaro – forte candidato da rica classe média branca e da lumpen-burguesia a presidente da República nas próximas eleições gerais de Outubro – como a mais recente ameaça para a América Latina.
Considera que um eventual governo Boçalnaro seria “desastroso” para o Brasil e toda a região. Acabou a semana sendo chamada pelos fervorosos adeptos da velha ditadura militar de “The Comunist”.
Para a “The Comunist”, alias, The Economist, o pano de fundo dos perigosos descaminhos da política no Brasil é a desastrosa situação econômica e social do país. As condições materiais na frente do processo. É um método correto de se analisar a política. O problema é que o método não resolve tudo. Veja pequenos trechos da matéria:
A economia é um desastre, as contas públicas estão sob pressão e a política está bastante apodrecida. A violência urbana também tem crescido. Entre as 20 cidades mais violentas do mundo, 7 são brasileiras. As eleições presidenciais do mês que vem dão ao Brasil a chance de um recomeço. Apesar disso, se a vitória for de Jair Bolsonaro, um populista de direita, os brasileiros correm o risco de tornar tudo pior. O senhor Bolsonaro, cujo nome do meio é Messias, promete a salvação; na verdade, ele é uma ameaça para o Brasil e para a América Latina… Caso seja eleito, ele poderá colocar a própria sobrevivência da maior democracia da América Latina em risco… Além de suas visões não liberais no campo do comportamento, Bolsonaro tem uma admiração preocupante por ditaduras. Ele dedicou seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff ao comandante de uma unidade responsável por 500 casos de tortura e 40 assassinatos durante o regime militar, que governou o Brasil entre 1964 e 1985. O vice de Bolsonaro é Hamilton Mourão, um general reformado, que no ano passado sugeriu uma intervenção militar para solucionar os problemas do país. A resposta de Bolsonaro à criminalidade é, com efeito, matar mais criminosos, apesar de, em 2016, a polícia no Brasil ter matado mais de 4 mil pessoas.”
Se fosse nos anos sessenta do século passado, a implantação de uma ditadura militar estrito senso seria certamente a solução imperialista para essas áreas dominadas. O golpe de 1964, e todos os demais na America Latina, na época, foram comandados por Washington. E executados por boçais como Jair e Hamilton.
Os atuais dirigentes do Estado terrorista estadunidense até gostariam que isso fosse possível novamente. Mas as coisas materiais mudaram. E as velhas ditaduras e seus antigos gorilas  tornaram-se totalmente insuficientes para as novas tarefas. Muito mais complexas.
É por isso que nestes últimos momentos dos anos 2010 a mensagem do império é muito clara a seus vassalos brasileiros: nada de Médici e Pinochet novamente! Essa inócua solução deve ser descartada por certas frações da protoburguesia brasileira que ainda engordam as projeções de voto no capitão Boçalnaro nas pesquisas eleitorais.
FHC, como demais cucarachas nacionais, entendeu perfeitamente a ordem imperial. E repercute em sua “carta aos eleitores” a mesma cruzada contra o “ódio e a desunião” da burguesia e diversas frações de classes dominantes brasileiras.
Entretanto, além das mistificações das próximas eleições, vai mais fundo nas perspectivas e na forma de uma ditadura atualizada às novas necessidades e desafios de manutenção da propriedade privada e seu corolário, a democracia. Bastam pequenos trechos, a título de ilustração.
A democracia para mim é um valor pétreo. Mas ela não opera no vazio. Em poucas ocasiões vi condições políticas e sociais tão desafiadoras quanto as atuais. Fui ministro de um governo fruto de outro impeachment, processo sempre traumático. Agora, a fragmentação social e política é maior ainda. Ante a dramaticidade do quadro atual, ou se busca a coesão política, com coragem para falar o que já se sabe e a sensatez para juntar os mais capazes para evitar que o barco naufrague, ou o remendo eleitoral da escolha de um salvador da Pátria ou de um demagogo, mesmo que bem intencionado, nos levará ao aprofundamento da crise econômica, social e política. .. É hora de juntar forças e escolher bem, antes que os acontecimentos nos levem para uma perigosa radicalização. Pensemos no país e não apenas nos partidos, neste ou naquele candidato. Caso contrário, será impossível mudar para melhor a vida do povo. É isto o que está em jogo: o povo e o país. A Nação é o que importa neste momento decisivo.”
Ora, mas esse discurso contra a radicalização e de emergência nacional não caberia perfeitamente na boca dos defensores da “revolução democrática de 1964”? Em busca do tempo perdido. Ou, de preferência, da busca por novas formas ditatoriais de um novo tempo de perigosas rebeliões populares.
Neste sentido muito claro de sanguinárias reformas de um eterno presente, de conservação democrática da velha ordem com nova embalagem, tanto as diretrizes imperiais emanadas da The Economist – e de outras publicações como Financial Times, The Wall Street Journal, Bloomberg News, etc. – quanto esse manifesto da protoburguesia nacional de FHC, têm uma potência de bomba atômica pós-eleitoral. Um perigoso novo capítulo de ajustes fiscais e consequente aumento da já avançada miserabilização dos trabalhadores.
Considerando-se a gravidade da atual situação social não existe, e nem poderia existir, “bons nomes” na atual farsa eleitoral agendada periodicamente pela própria burguesia. Os supostos políticos de “centro” deram de ombros para a carta de FHC. E ela acabou enterrando de vez as chances eleitorais de seu candidato, Geraldo Alkmin, proeminente militante  da seção brasileira da Opus Dei.
A Opus Dei é uma organização terrorista internacional, sediada no Vaticano e na Espanha. Com ramificações orgânicas com grupos religiosos de ultra direita dos EUA.
Dedica particular assistência a grupos políticos conservadores, liberais e golpistas na América Latina. É um braço suplementar dos “serviços especiais” da CIA e outros aparelhos imperialistas espalhados pelo mundo.
Veja, por exemplo sua participação na primeira tentativa de golpe contra Hugo Chaves (abril de 2002) e posteriores escaramuças contra Nicolas Maduro, ambos presidentes democraticamente eleitos da Venezuela.
Alkmin é aquela “pessoa sensata” e único candidato destas eleições que veste na forma e na essência o figurino político da nova ditadura da democracia imperial defendida por FHC, The Economist, etc.
Alkmin seria o novo presidente da República talhado para este nova forma do  regime democrático no Brasil que, totalmente independente das ilusórias eleições, já se desenvolve efetivamente no dia a dia da vida nacional.
Para o figurino imperialista na América Latina, o incolor, inodoro e insipido Geraldo Alkmin seria, no Brasil, o duplo perfeito, laboratorial, de  Maurício Macri, atual presidente da Argentina. Seria. No meio do caminho, entretanto, tem uma pedra.
Acontece que, além da incapacidade pessoal de Alkmin ganhar as próximas eleições,  é exatamente nessa sua perfeita duplicidade com Macri que se revelam os verdadeiros problemas políticos a serem enfrentados doravante pela ordem imperial no Brasil.
Alkmin está fora do jogo? Procure-se então um substituto genérico para o Macri brasileiro. Mesmo que seja um Macri de esquerda. Tanto faz. Neste sentido, o jornal de negócios da parasitalha nacional, Valor Econômico, publica interessante matéria com a economista de ultra direita Mônica de Bolle, conceituada analista de riscos do mercado financeiro e nas horas vagas, pesquisadora-sênior do aparelho imperialista Peterson Institute for International Economics.
Para  a senhora de Bolle “ a vitória de Bolsonaro é o maior risco. Ciro é uma boa opção. Esta não é uma eleição de absolutos, mas de relativos. E relativamente, Bolsonaro é pior do que Haddad. E Haddad é pior do que Ciro. Para mim, não há risco maior do que Bolsonaro. Mesmo sabendo de tudo que o PT fez e é bom lembrar que não fez nada sozinho. Compreendo esse medo que se tem do PT, mas um governo Bolsonaro seria trágico“.
A internacional do capital prega o voto útil nas próximas eleições. Em Ciro Gomes, “ a melhor opção”,  ou, na pior das opções, em Fernando Haddad, um candidato “razoável”. As bolsas subiram e o dólar caiu.
A esquerda democrática poderá realizar  o programa imperialista das “reformas”? Longe disso. Não por falta de capacidade técnica nem de falta de vontade. Acontece que a quase certa derrota eleitoral dos candidatos oficiais do imperialismo nas atuais eleições brasileiras é acompanhada por duas outras derrotas muito mais fundamentais para sua governabilidade “reformista” na América do Sul.
A primeira derrota é material. Determinante. A política econômica do imperialismo (tanto de Dilma Rousseff, quanto de Michel Temer) não conseguiu retirar a economia brasileira da estagnação. Nem vai conseguir. A situação só tende a agravar na medida em que a política fiscal de ajuste revela seus efeitos nefastos reais. Qualquer novo governo saído destas eleições será varrido pelo processo.
A economia subordina a política. Com essa flagrante impotência da sua política econômica todos esses ideólogos das mais diferentes instituições, aparelhos de inteligência, grande mídia, etc., estão mais assustados do que nunca. A sua receita de reformas fiscais e ajustes é um fracasso. Não funciona. Nem vai funcionar.
A Argentina está mostrando. A aplicação das mesmas “reformas” salvadoras da pátria por um presidente tão confiável e “sensato” quanto Maurício Macri, totalmente apoiado por Washington (politicamente), pelo FMI (economicamente) e pelos militares internamente, não foi capaz de evitar uma repentina depressão econômica na terceira maior economia da América Latina.
Uma depressão econômica é coisa muito mais grave que uma estagnação. Esse é quadro que se espera também para a primeira economia da América Latina. Como antigamente (lembram do “Efeito Orloff”?) a Argentina está novamente dizendo para o Brasil: eu sou você amanhã!
O povo argentino não sai mais das ruas para exigir ao mesmo tempo o fim deste criminoso ajuste do FMI e também a renúncia do incompetente Macri para resolver os problemas nacionais. Nesta semana haverá uma grande greve nacional. Estaremos acompanhando.
O tempo encurta para as classes dominantes brasileiras. Por enquanto, as atenções são desviadas para as ilusões de claríssima uma farsa eleitoral que, logo que se apagarem, serão substituídas por embates materiais mais decisivos. Macri é o futuro de todos os candidatos em condições de ganhar as eleições brasileiras.
Surge então a segunda derrota para a governabilidade neoliberal na América Latina. Uma grave derrota política. A perda do discurso triunfante de cortes, privatizações, desregulações, etc. Eles ainda tentam salvar esse discurso vazio. Veja como é que, sem receio de se revelar como mais um idiota economista vulgar, FHC repete em sua carta o desgastado mantra dos parasitas:
É necessária uma clara definição de rumo, a começar pelo compromisso com o ajuste inadiável das contas públicas.  São medidas que exigem explicação ao povo e tempo para que seus benefícios sejam sentidos. A primeira dessas medidas é uma lei da Previdência que elimine privilégios e assegure o equilíbrio do sistema em face do envelhecimento da população brasileira. A fixação de idades mínimas para a aposentadoria é inadiável. Ou os homens públicos em geral e os candidatos em particular dizem a verdade e mostram a insensatez das promessas enganadoras ou, ganhe quem ganhar, o pião continuará a girar sem sair do lugar, sobre um terreno que está afundando”.
Alguém ainda realmente sensato (sem aspas) ainda acredita nisto que os capitalistas estão discursando?  que a “reforma da Previdência” possa resolver os desiquilíbrios fiscais brasileiros? Mesmo que essa “reforma” queira dizer na realidade o fim real da Previdência Social no Brasil?
Mesmo que que o ideal dos parasitas se realize, quer dizer, que todo o montante de recursos atuais da Previdência seja transferido para o pagamento dos juros e rendimentos da dívida pública? Os eleitores estão mostrando que não acreditam. Por isso os candidatos oficiais do sistema serão derrotados.
Dos candidatos nas eleições brasileiras, o “sensato” coroinha da Opus Dei é um dos poucos que acredita. E que ainda discursa o velho mantra dos proprietários, como seu guru FHC. É por isso, principalmente, que nas pesquisas eleitorais afunda em um empate técnico com Marina da Silva, a missionária de Belo Monte, que também acredita no que diz sua patroa proprietária do Itaú.
Os capitalistas poderão ceder um pouco, em nome da governabilidade? Só na imaginação dos oportunistas e colaboracionistas (conscientes ou não).  A única coisa que conta na realidade política atual na América do Sul é que suas diferentes burguesias e demais parasitas não podem mudar esse seu falido programa de “reformas” decretado pelo sistema imperialista. E nem desejam mudar.
Não podem nem desejam mudar porque o problema é unicamente material. Acontece que sem a sua perseguição política, estatal, sem o compromisso pétreo de que as “reformas” sejam efetuadas, é a própria propriedade privada (começando pelos rendimentos dos títulos do “tesouro direto” e terminando com as joias da madame) que começa a se desmanchar.
E por isso que nem FHC, nem a The Economist, nem a senhora de Bolle, ou qualquer outro ideólogo dos parasitas do sistema jamais abandonarão esse ridículo discurso para boi dormir. Terão que continuar com ele de qualquer maneira, até o fim. Além de qualquer ideologia.
A realidade material fala mais alto. As economias do Brasil e da Argentina afundam. Os burgueses, demais classes proprietárias  e seus colaboracionistas perderam a batalha da política econômica. Restou-lhes apenas o seu discurso, a sua desacreditada narrativa de solução para os gravíssimos males sociais que eles mesmo criaram. Esse é seu grande problema político. Que só poderá procurar uma saída na forma de uma nova ditadura e de guerra aberta contra os trabalhadores.
A política de terra arrasada é seu único discurso ou programa possível de governo, sua única alternativa política enquanto classe dominante na periferia do sistema. Essa nova forma de repressão democrática e muito mais eficiente que as ingênuas ditaduras militares de antigamente já está em pleno trabalho de experimentação. Os trabalhadores já sentem no dia a dia essa nova forma de legalidade democrática. Essa nova forma política necessária para a reprodução ampliada da carnificina social.
Em outubro, você vai votar, certo? Todo cidadão vota. Aliás, no Brasil o voto é obrigatório! De todo modo, desde agora já podes escolher, com toda a consciência possível, como já fez a senhora Monica de Bolle, o candidato que achares melhor preparado para representar institucionalmente a legalidade desta carnificina do capital acima mencionada.
Fonte: Critica da Economia

domingo, 27 de maio de 2018

A morte e a vida da Luta de Classes

Ideologia e imaginário
Hoje, parece claro que as teses que sustentavam o fim das grandes narrativas, e os discursos que expressavam a certeza de que o mundo não poderia ser transformado, partem de uma grande narrativa a serviço daqueles que não querem transformações no mundo.  O “fim da história” e o “fim das ideologias” nunca passaram de discursos marcadamente ideológicos e com funcionalidade política.
A ignorância de muitos acerca do caráter ideológico de programas como o Escola Sem Partido ou dos efeitos da ideologia na aplicação do direito pelos tribunais (há, por mais incrível que possa parecer, os que sustentam de boa-fé a “neutralidade” dos juízes) é um sintoma muito claro de que a ideologia está mais viva do que nunca.
A ideologia que sustenta o “fim das ideologias no ensino” (o projeto Escola Sem Partido) leva a ações direcionadas a dificultar qualquer forma de reflexão e, assim, sepultar o pensamento crítico através de um modelo direcionado ao “pensamento único” (ou à “escola do partido único”) de viés totalitário e funcional para o projeto neoliberal de transformar cidadãos em consumidores acríticos. Algo parecido acontece com as campanhas que miram na “ideologia de gênero”, pois é o desejo de manter a hegemonia ideológica do patriarcado (e a correlata dominação) que serve de motivação para as ações de pessoas que parecem desconhecer o significado tanto de “ideologia” quanto de “gênero”.
A ideologia existe e produz efeitos ainda que não se fale dela. Aliás, a ideologia alcança o ponto ótimo de funcionamento enquanto não é desvelada e pode produzir efeitos sem que os indivíduos ideologicamente comprometidos a percebam enquanto tal. Como explicar as reformas neoliberais, que romperam o compromisso entre as grandes forças sociais que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, e a passividade com que a maioria da população assistiu ao desmonte do Estado do bem-estar? Como explicar que pessoas exploradas, das classes populares, defendam os interesses dos detentores do poder econômico?
Parece evidente que o modo de perceber e atuar no mundo passa por um conjunto de discursos, práticas, modificações econômicas, dispositivos de poder, produtos da indústria cultural, manipulações discursivas e alterações das relações sociais. Em outras palavras, o modo de ver o mundo liga-se à forma como o imaginário é construído. Pode-se afirmar que, hoje, qualquer forma de dominação ou de ação política relaciona-se, principalmente, com a imagem que cada pessoa faz da realidade.
A realidade é uma trama que envolve o simbólico (a linguagem, a Lei) e o imaginário: a realidade depende da linguagem e da imagem que se faz do mundo a partir dela.
Nas últimas décadas, verificou-se não só o empobrecimento da linguagem como também um correlato processo de dessimbolização em razão do qual se deu a perda (ou, ao menos, uma radical transformação) dos referenciais normativos para agir no mundo. A lei e os correlatos limites que conformavam o mundo-da-vida perderam importância diante do excesso de capitalismo. Tudo e todos passaram a ser tratados como objetos negociáveis. Em nome do projeto e do desejo de enriquecimento, acumulação e circulação ilimitada do capital, instaurou-se uma espécie de vale-tudo. A ilimitação tornou-se o novo regime da subjetividade.
Diante do enfraquecimento do simbólico, em meio a uma sociedade cada vez mais sem limites, aumenta a importância do imaginário. Em um mundo cada vez mais perverso, em que as pessoas gozam ao violar os limites legais e éticos (e no qual aumenta a cada dia o número de pessoas que não interessam ao capitalismo), o imaginário transforma-se em um registro fundamental a ser disputado por quem acredita que um outro mundo é possível. A ação transformadora cada vez encontra menos fundamento no registro do simbólico, ou seja, deixa de estar necessariamente conectada a um Grande Outro (partido, líder etc). Cresce, portanto, a relação entre o registro imaginário e o potencial revolucionário. E os detentores do poder econômico sabem disso.
Da Luta de Classes
O conceito de Luta de Classes perdeu prestígio. Há quem chegue a dizer que o excesso de capitalismo (avanços tecnológicos, capital improdutivo etc) eliminou a importância do conceito de “classe”. Não é verdade. As classes (e a desigualdade) persistem, embora a dessimbolização do mundo e o empobrecimento da linguagem tenham produzido um brutal velamento não só da categoria “classe” como também dos conflitos entre os diferentes grupos sociais. Em consequência, deu-se uma mutação na dinâmica da Luta de Classes.
Da mesma maneira que a burguesia industrial foi progressivamente perdendo espaço para a burguesia financeira, também por um efeito do condicionamento produzido pela racionalidade neoliberal, o trabalhador foi levado a não mais se identificar com os demais trabalhadores. Para ele, a ideia de Luta de Classes perdeu o sentido por uma questão ideológica, ou mais precisamente, em razão de um imaginário incapaz de identificar o outro como um aliado, um igual da mesma classe, contra a opressão. Mais grave ainda: racionalidade neoliberal, não raro, faz como que o explorado não perceba as novas formas de exploração.
Como percebeu Jessé Souza, em seu livro A elite do atraso, a ideia de classe social já é mal conhecida por boas razões:
porque ela, acima de qualquer outra ideia, nos dá a chave para compreender tudo aquilo que é cuidadosamente posto embaixo do tapete pelas pseudociências e pela imprensa enviesada. Como o pertencimento de classe prefigura e predetermina, pelo menos em grande medida, todas as chances que os indivíduos de cada classe específica vão ter na sua vida em todas as dimensões, negar a classe equivale também a negar tudo de importante nas formas modernas de produzir injustiça e desigualdade.
A questão da classe, que sempre foi maltratada, passou a ser praticamente ignorada no Brasil. Por vezes, a classe foi percebida apenas como uma realidade econômica ou como o lugar que a pessoa ocupa no sistema de produção, enquanto, em outras oportunidades, se deu a universalização dos padrões de comportamento da classe medida para todas as demais classes.
No mais das vezes, as tentativas de entender a questão das “classes” passa por leituras economicistas, ou seja, preocupadas exclusivamente com o nexo entre o comportamento humano e eventuais motivações econômicas. Jessé Souza tem razão ao sugerir que a questão das classes sociais não se limita ao problema da renda ou à temática econômica. O tratamento adequado das classes sociais deve partir da socialização familiar primária (do “berço”) e, mais precisamente, da análise de dados socioculturais. Por evidente, o pertencimento a uma determinada classe leva a um tipo de conhecimento (produzido desde o nascimento) e a um padrão de comportamento que fará diferença no mundo da vida.
Pode-se, portanto, sustentar a existência de mecanismos socioculturais de formação das classes e de produção de capital social. Assim, para o Brasil, faz sentido a tentativa de explicar a sociedade a partir da divisão de classes entre a elite econômica (os detentores do poder econômico), a classe média culturalmente distinta (os detentores de capital cultural), os trabalhadores (os detentores da força de trabalho) e a ralé (os herdeiros do desprezo antes atribuído aos escravos). Também se pode afirmar que enquanto a elite econômica integra a “classe capitalista” e a classe média culturalmente distinta pretende-se a “classe gerencial”, os trabalhadores e a ralé constituem a “classe popular” na configuração tripolar de classes proposta por Gérard Duménil e Dominique Lévy.
Se todas essas classes são visíveis a partir de dados socioculturais, de padrões de comportamento e das chances concretas de êxito no mundo-da-vida, a ideologia produzida a partir da racionalidade neoliberal faz com que fiquem invisíveis. As pessoas que integram tanto a classe média culturalmente distinta quanto a classe trabalhadora, e mesmo alguns que figuram na ralé, passaram a acreditar que são verdadeiros empresários e, portanto, a partir da ideologia da meritocracia, potenciais novos ricos (detentores do poder econômico, a elite que compõem a classe capitalista).
O sujeito condicionado pela racionalidade neoliberal acredita que deve perceber e agir no mundo como empresário de si próprio. Todos os outros, dos vizinhos aos colegas de trabalho e amigos de infância, passam a ser percebidos como empresários-inimigos e, portanto, como concorrentes a serem vencidos.
Ao mesmo tempo em que o egoísmo é transformado em virtude e o interesse individual passa a pautar as ações na sociedade, desaparece a possibilidade tanto de uma amizade desinteressada quanto de construção de uma consciência de classe. Em outras palavras, o outro que antes era um potencial amigo ou companheiro na caminhada para a construção de uma outra sociedade, tornou-se o inimigo a ser derrotado ou destruído. O sujeito passa a explorar a si mesmo na crença de que sua vida é uma empresa.
Tem razão Byung-Chul Han, ao afirmar que aquele que acredita ser “um projeto livre de si mesmo”, capaz de produzir ilimitadamente e enriquecer, acaba por isolar-se. Desaparece, então, o “nós”, o “comum” e a solidariedade que poderiam levar à ação conjunta. Porém, Byung-Chul Han está errado ao afirmar que as classes desapareceram e não há mais a possibilidade de uma revolução social, e isso porque os indivíduos de todas as classes sociais teriam se tornado, ao mesmo tempo, exploradores e explorados.
O “fim das classes”, tal como o “fim da história”, é também um discurso fortemente marcado pela ideologia produzida pela racionalidade neoliberal. Não se pode confundir o velamento ideológico das classes com o desaparecimento dos marcadores socioculturais e econômicos que diferenciam grupos de pessoas. Se a auto-exploração afeta todas as classes, isso não significa que a contradição produzida pela existência de classes desapareceu. A importância da Luta de Classes permanece para a transformação social.
Há, porém, uma luta prévia: a luta pelo imaginário de todos aqueles que não integram a elite econômica (os “super-ricos”) que explora e destrói o mundo, que lucra com a auto-exploração de todas as classes, que controla os meios de comunicação de massa e, portanto, os meios de produção do subjetivismo. Na luta pelo imaginário, como defende Naomi Klein, deve-se construir uma narrativa atraente e identificar um comum que justifique a luta lado a lado. Mas, não é, só. Impõe-se ressimbolizar as classes e apontar as contradições da sociedade, em especial dos grupos que lucram com a razão neoliberal, e partir à luta. Pois, como lembrou Marcio Sotelo Felippe, no texto que marcou a estreia da coluna Além da Lei, a Luta de Classes é “a verdade e a razão que só estão nela e em lugar nenhum mais”.

RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ, escritor, doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-Graduação da ENSP-Fiocruz, membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano

FONTE: Cult

domingo, 13 de maio de 2018

Marx e o capitalismo por Prabhat Patnaik

Marx e o capitalismo


por Prabhat Patnaik [*]
Marx em 1875.A contribuição de Marx para o entendimento do capitalismo pode ser vista através de duas visões reveladoras que ele teve deste sistema. A primeira refere-se à origem do valor excedente (surplus value). Num mundo de mercadorias onde a troca entre possuidores mercadorias, dentre as quais estão também os trabalhadores, ocorre voluntariamente e em equivalência, sem qualquer trapaça, como pode ocorrer valor excedente?

A solução para este enigma, descoberta por Marx, jaz numa distinção entre trabalho e força de trabalho. O que os trabalhadores vendem não é o seu trabalho mas sim a sua força de trabalho, isto é, a sua capacidade para trabalhar, a qual se torna uma mercadoria – e como todas as mercadorias tem um valor igual à quantidade total de tempo de trabalho directo e indirecto que entra na produção de uma unidade dela, o que neste caso implica que está incorporada no cabaz de subsistência requerido para a produção e reprodução de uma unidade de força de trabalho. A força de trabalho como mercadoria tem entretanto esta propriedade única de que a sua utilização, a qual é o dispêndio real de força de trabalho, cria valor. A origem do valor excedente repousa no facto de que o valor que a força de trabalho cria é maior do que o seu próprio valor. Portanto, mesmo com troca equivalente, isto é, mesmo quando todas as mercadorias são permutadas aos seus valores, emerge um valor ascendente.

Esta visão profunda tem um certo número de implicações. Primeiro, ela proporciona uma definição sucinta e rigorosa do capitalismo, como um sistema de produção generalizada de mercadorias onde a própria força de trabalho se torna uma mercadoria. Isto também significa que a dualidade que caracteriza qualquer simples economia produtora de mercadorias, entre o aspecto "coisificado" de entidades e seu aspecto relacional, tal como valor de uso – valor de troca; processo de trabalho – processo de criação de valor; produto – mercadoria; trabalho concreto – trabalho abstracto, torna-se agora ainda mais generalizado:   meios de subsistência – capital variável; produto excedente – valor excedente e assim por diante.

Em segundo lugar, o valor excedente neste sistema é criado não na esfera da troca mas sim na esfera a produção.Uma vez que as firmas capitalistas como produtoras de mercadorias estão envolvidas na competição umas contra as outras, onde os produtores de alto custo são eliminados ao longo do tempo, a pressão para cortar custos assume necessariamente a forma da introdução de novos método e novos produtos, isto é, de revolucionar continuamente os métodos de produção. Este incessante impulso para revolucionar a produção é o que distingue o capitalismo de todos os modos de produção anteriores e está ligado ao facto de que o valor excedente tem origem na esfera da produção.

Em terceiro lugar, desde que a capacidade para introduzir novos métodos depende da dimensão da unidade de capital, com os maiores capitais tendo uma vantagem e expulsando os mais pequenos, toda unidade de capital está sob pressão para aumentar de dimensão através da acumulação. A acumulação de capital, em suma, ocorre por causa da pressão exercida sobre cada unidade de capital devido à competição dentro do sistema. Mas naturalmente, muito embora cada unidade de capital actue desesperadamente para evitar arruinar-se nesta luta Darwiniana pela existência, algumas necessariamente arruínam-se, pelo facto de haver um processo de centralização de capital, isto é, a formação de blocos de capital cada vez maiores que se verificam ao longo do tempo. (Isto em última análise leva à emergência do capitalismo monopolista em que acordos de preço explícitos ou implícitos são alcançados entre capitalistas sem naturalmente eliminar a competição, a qual agora assume outras formas).

Em quarto lugar, para a apropriação do valor excedente pelos capitalistas continuar, o valor da força de trabalho deve ser sempre inferior ao valor que ela cria, o que significa que o sistema não deve nunca exaurir-se de força de trabalho. Isto por sua vez exige que haja sempre um exército de trabalho de reserva em acréscimo ao exército de trabalho activo empregado pelos capitalistas. Este exército de reserva é criado pela própria acumulação de capital a qual, através do processo de centralização do capital e através da destruição da pequena produção, empurra continuamente pessoas para as fileiras dos trabalhadores. Desde que a dimensão absoluta do exército de reserva se mantenha a crescer, juntamente com o do exército activo, quando se verifica acumulação de capital, o crescimento da riqueza num pólo é necessariamente acompanhado pelo crescimento da pobreza em outro.

Economistas clássicos ingleses atribuíram o facto de os salários serem mantidos a um nível de subsistência à tendência entre os trabalhadores para procriarem excessivamente no caso de obterem salários acima da subsistência. Esta ideia absolutamente repugnante foi rejeitada por Marx, o qual classificou a Teoria Malthusiana da População sobre a qual estava baseada como "uma calúnia à raça humana". Ele aduziu, ao invés, as razões sociais que mencionámos para os salários permanecerem cravados no nível de subsistência.

Em quinto lugar, a própria origem do sistema repousa numa separação dos produtores dos seus meios de produção e de uma concentração destes meios de produção em poucas mãos de modo que duas classes de possuidores de mercadorias, uma com meios de produção e de subsistência em suas mãos e a outra com nada para vender excepto a sua força de trabalho, são criadas e ficam "frente a frente e em contacto". Esta dicotomia fundamental é reproduzida ao longo do tempo através da operação do próprio sistema.

Em sexto lugar, através do contínuo revolucionamento dos métodos de produção, a produtividade do trabalho aumenta ao longo do tempo. Mas a existência do exército de reserva do trabalho actua sempre, ceteris paribus, para manter os salários a um nível de subsistência historicamente determinado, o qual pode no melhor dos casos aumentar vagarosamente ao longo do tempo. Uma vez que os salários são mais ou menos plenamente consumidos, ao passo que só uma proporção do valor excedente o é, mantém-se baixa a procura por bens de consumo na economia em relação ao valor produzido. Se todo o valor excedente não consumido fosse utilizado para acumulaçãounicamente na forma de acréscimos ao stock de capital constante e variável, então nunca haveria qualquer problema de deficiência da procura agregada em relação ao valor produzido, como havia postulado a Lei de Say . Mas como a acumulação pode assumir a forma de acréscimo ao capital monetário, a ascensão da fatia do valor excedente no valor total produzido dá origem a uma tendência para crises de super-produção.

Marx chamou a atenção para várias diferentes espécies de crise que podiam emergir dentro do sistema, inclusive através de um aumento na composição orgânica do capital, isto é, no rácio entre o capital constante e o capital variável. Mas o seu reconhecimento das crises de super-produção devido à natureza do capitalismo na utilização do dinheiro, o qual necessariamente faz do dinheiro uma forma de manutenção de riqueza, não só assinalou um avanço sobre economistas clássicos ingleses que haviam aceite a Lei da Say como também antecipou em três quartos de século a assim chamada Revolução Keynesiana, a qual foi desenvolvida durante a Grande Depressão da década de 1930 a fim de compreendê-la.

Esta fundamental visão penetrante da natureza da exploração sob o capitalismo e o facto de que o sistema reproduz sua natureza exploradora e as contradições dela decorrentes, através da sua própria operação, foi integrada por sua vez dentro da sua descoberta de uma característica básica do sistema, nomeadamente que é um sistema espontâneo. Se bem que funcione através das acções empreendidas por um conjunto de entidades individuais, estes indivíduos actuam do modo como o fazem porque são coagidos pelo sistema a assim fazer. O sistema portanto é essencialmente autónomo (self-driven), uma autonomia cuja natureza é mediada por acções individuais mas acções que são elas próprias determinadas pela lógica do sistema. Qualquer indivíduo que não actue do modo exigido pelo sistema perde o seu lugar dentro dele e dá-se por vencido, tal como por exemplo um capitalista que decida não empreender acumulação. E as acções de indivíduos na sua totalidade dão origem a certas tendências imanentes que caracterizam o sistema, tais como a tendência rumo à centralização do capital, a tendência rumo à reprodução ampliada do exército de trabalho de reserva, a tendência rumo à expropriação de pequenos produtores, a tendência rumo à produção de riqueza num pólo e a pobreza em outro e assim por diante.

Esta segunda visão penetrante de Marx também tem um certo número de implicações profundas. Ao contrário da sua afirmação de que assegura liberdade individual, o capitalismo é caracterizado pela alienação universal, onde todo agente económico é coagido a actuar de modos que não são da sua própria vontade. Mesmo o capitalista é alienado sob o capitalismo, sem liberdade para actuar de acordo com a sua própria vontade, mas sim coagido a actuar de modos específicos devido à luta Darwiniana na qual todos os capitalistas estão empenhados. Marx chamou o capitalista de "capital personificado", indicando que a pessoa do capitalista era simplesmente um veículo para a actuação das tendências imanentes do capital.

Em segundo lugar a "espontaneidade" do sistema significa que ele não é maleável de modo a que se possa provocar qualquer mudança no seu funcionamento e resultado económico através da intervenção política. Na verdade, o papel normal da intervenção política pelo Estado capitalista é reforçar a "espontaneidade" do sistema, no sentido de acelerar as realizações das suas tendências imanentes. Mas mesmo que possivelmente, sob certas circunstâncias, a "espontaneidade" do sistema seja restringida através da intervenção política, tal restrição torna o sistema disfuncional, necessitando ou de nova intervenção para alterar o sistema ou de repelir a própria intervenção original a fim de restaurar a "espontaneidade".

O argumento em favor do socialismo levanta-se precisamente devido a esta "espontaneidade". Se o capitalismo fosse um sistema maleável onde quaisquer espécies de "reformas" pudessem ser executadas com êxito e duradouramente para torná-lo mais humano, mais "amigo do trabalhador", mais "socialmente responsável", mais igualitário e mais "assistencialista" ("welfarist"), então não valeria a pena argumentar em favor da sua transcendência por uma ordem socialista. Mas a "espontaneidade" do sistema impede tal maleabilidade, torna inaceitáveis quaisquer reformas significativas do mesmo, torna o "capitalismo do bem-estar" uma contradição em termos como fenómeno sustentável, razão pela qual ele tem de ser transcendido.

O socialismo consequentemente tem de ser visto como uma ordem totalmente diferente, uma ordem não-"espontânea". A diferença entre capitalismo e socialismo jaz não apenas no facto de que este último está associado à propriedade dos meios de produção pelo Estado em favor da sociedade como um todo:   se firmas possuídas pelo Estado competissem umas contra as outras no mercado como fazem as firmas capitalistas, então elas reproduziriam a anarquia do capitalismo juntamente com crises, desemprego e muitas das tendências imanentes do capitalismo. Esta diferença não repousa apenas no facto de os rendimentos serem melhor distribuídos sob o socialismo:   isso também pode ser desfeito ao longo do tempo se se permitir que a tendência para a criação do exército de reserva do trabalho persista. A diferença jaz no facto de que o socialismo não é conduzido por quaisquer tendências económicas imanentes, de modo que os trabalhadores podem conscientemente modelar o seu destino económico através da intervenção política colectiva. Uma economia socialista tem de ser o que torna isto possível.

Mas como pode o socialismo chegar a nascer se o capitalismo coage todos os indivíduos a actuarem dos modos exigidos pela sua própria lógica? A resposta de Marx foi que o capitalismo, apesar de promover a competição, fragmentação e alienação entre os trabalhadores, também os capacita a actuarem em conjunto através de "combinações". Isto representa uma ruptura na representação da sua lógica interna; e esta ruptura, ajudada por um entendimento teórico que encare o sistema "do lado de fora", isto é, de uma perspectiva de "exterioridade epistémica", conduz à praxis em favor do socialismo.

Uma diferença básica entre o marxismo e o liberalismo é que este último, não obstante sua ênfase na liberdade individual, encara esta liberdade como sendo constrangida apenas pelo Estado ou por alguns indivíduos ou grupos, mas nunca pelo próprio sistema. Isto acontece porque ele considera todos os relacionamentos económicos terem sido acordados voluntariamente; ele nunca reconhece que indivíduos podem ter sido coagidos a entrar em relacionamentos económicos.

A coerção do sistema económico que Marx destacou não reside apenas na sua actuação como um constrangimento sobre projectos e acções individuais. Ao contrário, o capitalismo é conduzido pelas tendências imanentes dentro de cuja teia o indivíduo é capturado. A liberdade do indivíduo, portanto, longe de ser realizada sob o capitalismo, exige para a sua realização a transcendência do mesmo pelo socialismo, o qual está livre de quaisquer tendências imanentes. A existência destas tendências imanentes sob o capitalismo também explica porque uma condiçãonecessária para toda emancipação, quer de casta, de género, étnica ou outra opressão, é a transcendência deste sistema. O socialismo é uma condição necessária para acabar com toda a opressão.

A análise de Marx do capitalismo em O Capital encara o sistema capitalista em isolamento; suas interacções com modos de produção pré capitalistas em torno dele não são discutidas, apesar da sua importância óbvia. Isto é curioso uma vez que no próprio tempo em que Marx estava a trabalhar no Capital ele também estava a ler extensamente sobre o impacto colonial britânico sobre a Índia, acerca do qual escreveu uma série de artigos para o New York Daily Tribune. Sua não integração do imperialismo dentro da sua análise do capitalismo foi talvez porque estivesse preocupado naquele tempo com um Revolução Proletária na Europa Ocidental, a qual ele pensava estar iminente. Mas no fim da vida ele voltou sua atenção para outras regiões, quando as perspectivas de Revolução na Europa Ocidental recuaram. Apenas dois anos antes da sua morte ele escreveu uma carta a N.F. Danielson, o economistanarodnik , onde mencionou uma "drenagem" maciça do excedente da Índia para a Grã-Bretanha.

Em suma, a análise de Marx do capitalismo deve ser vista como o ponto de partida da mesma, não de chegada. A tarefa de desenvolver o marxismo tanto pela incorporação do imperialismo dentro da análise, no próprio contexto de Marx, e pelo exame dos desenvolvimentos subsequente, cabe a autores marxistas posteriores, o que é precisamente o que fez Lenine. E quando tal tarefa é cumprida, várias das visões penetrantes básicas de Marx acerca do capitalismo são justificadas ainda mais fortemente.

Exemplo:   quando é considerada a persistente usurpação pelo capitalismo da economia de pequena produção que o rodeia, a qual esmaga ou desloca tais produtores sem absorvê-los no exército de trabalho activo do capitalismo, a visão penetrante de Marx de que o sistema produz riqueza num pólo e pobreza no outro fica imensamente fortalecida. De facto, aqueles que argumentam contra o prognóstico de Marx dizendo que tal polarização não se verificou em terras onde o capitalismo triunfou em primeiro lugar ignoram tipicamente esta relação dialéctica entre capitalismo e seu mundo circundante. As visões penetrantes de Marx são realmente fortalecidas ao "ir mais além" do que Marx havida escrito originalmente.

O mesmo é verdadeiro em relação ao projecto revolucionário de Marx. Quando o capitalismo é encarado na sua totalidade, incorporando o imperialismo, as perspectivas e possibilidades da revolução tornam-se imensamente maiores; pois falamos então não mais apenas de uma revolução proletária em países capitalistas desenvolvidos mas também de uma revolução democrática baseada numa aliança operária-camponesa mesmo em países onde o capitalismo está menos desenvolvidos, com mesmo nestes últimos a revolução prosseguindo por etapas rumo ao socialismo. As perspectivas de uma aliança operário-camponesa que Lenine havia conceptualizado como decorrente da incapacidade do capitalismo de avançar a revolução anti-feudal em países onde chegou atrasado, fica ainda mais fortalecida quando tomamos conhecimento da usurpação pelo capitalismo da economia dos pequenos produtores, a qual pressiona estes últimos à indigência e a suicídios mesmo na presente altamente "moderna" era da globalização.
06/Maio/2018

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2018/0506_pd/marx-and-capitalism . Tradução de JF. 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

terça-feira, 8 de maio de 2018

Pela reestruturação da Dívida Pública Federal

A partir da análise das publicações oficiais sobre a Dívida Pública Federal, percebemos que existem riscos reais associados à sua estrutura, de modo que julgamos ser cabível uma reestruturação no que diz respeito ao uso do endividamento público, ao arcabouço jurídico-institucional que o envolve, bem como à composição, prazos de vencimento e, sobretudo, ao custo dessa dívida.
Para que fique claro nosso ponto de vista, vamos desenvolver o tema por partes. Assim, vamos expor a que dívida exatamente nos referimos, qual o verdadeiro problema relativo a essa dívida, quais as consequências desse problema, para quem a dívida é um problema, quem se beneficia com isso, o que caracteriza esse problema, como ele de fato se dá, o que fazer para resolvê-lo e qual o papel de uma auditoria da dívida nesse processo.
Se preferir, você pode fazer o download do artigo na íntegra em PDF clicando aqui
O que é dívida pública?
Dívida Pública Federal (DPF) é a dívida contraída pela União sob a forma de contratos e/ou títulos, que deve ser paga em moeda estrangeira (dívida externa) ou em moeda nacional (dívida interna). É claro também que a dívida “interna” em títulos não é tão interna assim, pois, como vamos ver, apesar de ser paga em moeda nacional, está em boa parte nas mãos de gente que reside fora do país. 
Fala-se também em Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), que soma à DPF os títulos que o Banco Central do Brasil possui em carteira para fins de política monetária, mais as dívidas das administrações direta e indireta da União, estados e municípios com bancos nacionais e internacionais públicos e privados e agências multilaterais, descontadas algumas aplicações financeiras e as dívidas de empresas públicas financeiras.
Fala-se bastante também em Dívida Líquida do Setor Público (DLSP), que nada mais é do que a DBGG descontados os Créditos do Governo Geral, o saldo com títulos livres na carteira do Banco Central e o resultado financeiro das operações com reservas cambiais[1].
Além disso, existem as dívidas dos estados e municípios com o Tesouro Nacional, que não são contabilizadas como dívidas do governo geral, mas que geram recursos para os pagamentos da Dívida Pública Federal[2].
Neste artigo, trataremos quase exclusivamente da dívida federal interna em títulos, isto é, da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi), que correspondia, à época de redação deste texto, a mais de 96% do estoque total de DPF[3]. É essencialmente esta dívida que queremos reestruturar, o que defendemos que seja feito em conjunto à repactuação das dívidas dos estados e municípios.
De todo caso, pode parecer que ao colocarmos a dívida pública em questão nós pensemos que a dívida em si mesma é “ruim”, o que não é verdade. A dívida pública é um instrumento legítimo de financiamento do Estado, indispensável para qualquer projeto de desenvolvimento nacional. Entretanto, o uso que tem sido feito da dívida pública nas últimas duas décadas não tem nada a ver com qualquer projeto de desenvolvimento do Brasil. Em outras palavras, o problema da dívida pública brasileira é que ela está sequestrada pela lógica do rentismo
O que é rentismo?
Imaginem alguém que possua muitas casas... Esta pessoa talvez nunca tenha trabalhado, mas tem a vida garantida pelos aluguéis pagos pelos inquilinos todo santo mês. Esta é a lógica do rentismo, isto é, arrancar renda de outra pessoa como decorrência pura e simples do direito de propriedade sobre algo, sem relação direta com um processo econômico produtivo.
Da mesma maneira vivem alguns proprietários de terras rurais, proprietários de patentes, proprietários de marcas, grandes possuidores de títulos de dívida pública etc.
Isso significa, como vamos ver com mais atenção, que a dívida pública se reproduz e tem crescido incessantemente nas últimas décadas não porque era necessário captar recursos para fazer investimentos públicos em benefício do desenvolvimento social e econômico do país, mas sim porque era preciso proteger da inflação e rentabilizar enormes quantias de dinheiro de propriedade dos ricos, dinheiro que não era arrecadado como imposto para virar investimentos públicos, não era investido na oferta de bens e serviços e na geração de empregos e que tinha ainda menos razão de ser arriscado na economia real com as altíssimas taxas de juros historicamente praticadas pelo Estado brasileiro.
Dinheiro por si só não rende juros. Então, os que têm muito dinheiro sobrando compram títulos (públicos e privados, mas geralmente públicos) que rendem juros e possuem virtualmente nenhum risco de inadimplência. Assim, incessantemente, os ricos vão ganhando rios de dinheiro, ou por diversas maneiras de rentismo, ou pela exploração do trabalho alheio, ou por métodos inconfessáveis, e esse dinheiro vai rendendo juros e esses juros viram ainda mais ativos que, por sua vez, rendem mais dinheiro e mais juros, e títulos vão virando mais títulos, numa ciranda financeira que vira e mexe se descola da capacidade de criação de renda da economia real, que sempre deve pagar a conta da farra.
rentismo sobre a dívida pública brasileira significa basicamente duas coisas: 1. Que a dívida se multiplica sem praticamente nenhuma contrapartida em investimentos públicos de verdade, como construção de estradas, portos, hidrelétricas, escolas, hospitais etc., crescendo como uma bola de neve financeira. 2. Que a dívida pública se transformou em um meio de transferir renda dos mais pobres para os mais ricos, em uma distribuição de renda ao contrário, sendo uma das razões pelas quais o nosso país é um dos mais desiguais do mundo.
A dívida sequestrada pelo rentismo transforma como que magicamente dinheiro em mais dinheiro, sem relação direta com a oferta de bens e serviços, por meio da espoliação do dinheiro público, sugando dinheiro da base da sociedade para o topo, fazendo os pobres mais pobres e os ricos mais ricos. 
Uma das maneiras que o Estado tem de compensar os seus gastos é por meio da arrecadação tributária. No Brasil, 4/5 da carga tributária incide sobre salários e consumo, o que onera muito mais os mais pobres[4]. E se os credores exigem que o serviço da dívida[5] não seja pago indefinidamente com a contração de mais dívidas, se as privatizações nunca bastam, se os lucros e dividendos das empresas públicas remanescentes são insuficientes, se o lucro do Banco Central não dá, e se os sacrifícios dos contribuintes de estados e municípios que tiveram suas dívidas federalizadas também nunca bastam, “economiza-se” dos tributos federais para o pagamento infinito da dívida da União.
Assim, a dívida pública brasileira foi transformada em um dos mais perversos capítulos do neoliberalismo no Brasil. Muito se falou das privatizações, que levantaram dinheiro para saldar dívida, diga-se de passagem. Mas com o sequestro rentista da dívida pública foi-se além da liquidação de patrimônio nacional, passando-se a uma paulatina privatização da receita e da capacidade de emissão monetária do Estado brasileiro, com a criação de um rígido arcabouço jurídico-institucional que garante o funcionamento da finança pública como uma bomba de sucção dos recursos públicos para os ricos.
É assim que nas últimas décadas o povo brasileiro foi vítima de um ajuste fiscal permanente, que sob a desculpa esfarrapada de manter a “saúde financeira do país” sacrificou os investimentos públicos para pagar juros, o chamado “superávit primário”[6].
O que eles chamam “responsabilidade fiscal”, nós chamamos espoliação! Pilhagem!
É claro que parte dos títulos é emitida para fins de desapropriações da reforma agrária, crédito para agricultura familiar, crédito estudantil etc., o que corresponde plenamente ao interesse público. Mas essa parte é muito pequena.
Portanto, reestruturar a dívida pública para nós significa combater o rentismo, liberando a dívida para seu uso devido.
Como a dívida pública mobiliária federal chegou ao tamanho atual?
Em dezembro de 1994, o estoque de títulos públicos federais fora da carteira do Banco Central era de pouco mais de R$ 59,3 bilhões[7]. O estoque atual da DPMFi é de mais de R$ 3,2 trilhões. Isso significa que num período de pouco mais de duas décadas o estoque de dívida pública se multiplicou em mais de 53 vezes.
Esse crescimento se explica não porque tivemos uma extraordinária política de desenvolvimento sustentada pelo endividamento público (o que não é verdade de modo algum), mas por duas razões principais: 1. Porque as taxas de juros (tanto pré-fixadas quanto pós-fixadas) sempre foram muito altas em todo esse período. 2. Porque os juros nominais pagos sempre foram muito maiores que os superávits primários, mesmo que o aumento da dívida tenha sido causa de significativo aumento na carga tributária ao longo desse período, de modo que nós sempre fomos contraindo cada vez mais dívida para pagar juros[8].
Esse crescimento também se explica em função do Plano Real, que sempre dependeu de taxas de juros muito elevadas sobre os títulos públicos para atrair o ingresso de dólares no país, o que mantém o Real artificialmente valorizado e, em alguma medida, ajuda a estabilizar a inflação, dado que o Brasil regrediu enormemente em sua industrialização e se confirmou no período como importador líquido de bens de capital e insumos à produção, de modo que as variações cambiais têm alguma influência sobre o nível geral de preços. No entanto, se queremos de fato arrancar uma das raízes da nossa inflação, precisaremos libertar a finança pública do sequestro rentista para investimentos em infraestrutura que possibilitem a retomada do processo de industrialização.
Alguém poderia dizer que pelo menos a dívida não necessariamente gera custo imediato em termos de dinheiro público para o pagamento de juros, posto que constantemente refinanciamos o estoque (rolagem da dívida) e normalmente pagamos juros com mais emissão de dívida sobre a qual incidem mais juros. Mas não é bem assim. Em 2016 foram abatidos na necessidade de emissão de dívida nova R$ 191,31 bilhões de recursos orçamentários[9], o que é quase o dobro do orçamento da Educação, para se ter uma ideia. Os recursos orçamentários utilizados em 2016, ano em que houve déficit primário do governo federal, vieram de dividendos da União, lucro do Banco Central, recursos oriundos do pagamento de juros e amortizações das dívidas de Estados e Municípios com a União (dinheiro fresco de impostos municipais e estaduais) etc.[10]
Então, a União tira de onde dá e de onde a legislação obriga para pagar os juros, mas como a carga de juros é enorme, esses juros vão sempre virando mais dívidas e mais juros. Apenas em 2016, a apropriação de juros ao estoque da DPMFi foi de R$ 344,7 bilhões[11]. Também pudera! No ano de 2016 pagamos mais de R$ 407 bilhões em juros nominais, sendo que em 2015 já havíamos pago mais de R$ 501 bilhões, e só de janeiro a agosto de 2017 pagamos mais de R$ 271 bilhões[12].
Assim, a dívida pública interna em títulos, excluindo-se a dívida em posse do Banco Central[13], chegou a 50,8% do PIB em agosto de 2017, o que equivale a 133% do orçamento efetivo da União[14]. Além disso, pelas razões apontadas acima, a dívida vem crescendo de modo acelerado: 21,4% em 2015, 11,45% em 2016 e já cresceu 9,64% até agosto de 2017[15], tendo como forçoso efeito colateral políticas de austeridade fiscal empurradas goela abaixo com a desculpa do crescimento acelerado da dívida, além de uma enorme e desnecessária tragédia social com a escassez de serviços básicos e o desemprego. 
Dívida pública e restrição orçamentária
Do ponto de vista da ciência econômica, é preciso que fique claro o seguinte: a existência da dívida pública não limita a priori os gastos com saúde, educação etc. Dentre as receitas e despesas correntes, os gastos primários não necessariamente disputam espaço fiscal com os juros; superávits primários não são sempre absolutamente necessáriose, com ainda mais razão, reestruturar a dívida certamente fará com que os investimentos públicos (obras de infraestrutura, por exemplo) não disputem espaço com as despesas de capital relativas ao refinanciamento da dívida para manutenção do rentismo.
Trocando em miúdos, isso significa que a carência de gastos em saúde, educação etc. deve-se exclusivamente à falta de força política para fazê-lo.
As finanças públicas não se assemelham em nada às finanças domésticas ou empresariais. As famílias ou empresas não definem a própria renda; já o governo pode escolher taxar os mais ricos se precisar de dinheiro[16]. As famílias ou empresas não possuem um Banco Central e um Tesouro Nacional; já o governo, via de regra, emite soberanamente sua própria moeda, constituindo-se como emprestador de última instância do sistema financeiro nacional, e emite títulos públicos pagos na moeda que ele mesmo emite. As famílias ou empresas não definem a taxa de juros e não estipulam as condições em que tomam empréstimos; o governo pode fazê-lo em larga medida, desde que não tenham sido politicamente fabricadas condições que o restrinjam.  Quando as famílias ou empresas gastam, nada do que foi gasto volta para elas; já o governo, quando gasta, injeta renda na economia e recebe uma parcela de volta como arrecadação tributária. Por fim, famílias precisam de renda prévia para gastar; já o governo, pelas razões expostas acima, usa a arrecadação tributária apenas para compensar os seus gastos, que precedem lógica e cronologicamente a própria arrecadação, enxugando da economia excessos de liquidez.
A finança pública real, portanto, não é como se houvesse uma manta curta e tivéssemos que necessariamente optar entre cobrir gastos com saúde, educação, previdência etc. para não descobrir os gastos com dívida e não nos tornarmos “caloteiros”.
A dívida é permanentemente rolada, isto é, emite-se novos títulos para garantir o resgate de títulos vincendos ou troca-se títulos velhos por novos, por assim dizer. Do mesmo modo, pode-se emitir dívida nova para pagar os juros, desde que haja para tanto autorização prévia do Congresso (CF, art. 167, III). E o ritmo de crescimento da dívida não seria instável, dando desculpas para políticas fiscais restritivas, se não pagássemos juros tão altos e, assim, não precisássemos permanentemente integrar enormes somas de juros ao estoque.
Mas a gestão neoliberal da finança pública faz parecer que existe essa manta curta. Porém, a única manta curta que existe é aquela que mal serviria para cobrir a desfaçatez de Ministros da Fazenda e Diretores do Banco Central de plantão, sempre ávidos por restringir os investimentos públicos para beneficiar os rentistas.
“Economizar” no gasto público para pagar juros é ainda menos recomendado em períodos de recessão, pois isso por si só piora a situação da atividade econômica. Muitas vezes, dado que o Estado é o maior agente econômico da quase totalidade dos países capitalistas, haver maior gasto do que arrecadação é a única maneira de sustentar o crescimento da economia, o que antecipa a criação de valor[17], salva a perspectiva de arrecadação futura e garante a própria estabilidade da relação dívida/PIB.
Mas com ou sem recessão, o ajuste fiscal vem sendo praticado há mais de vinte anos em nome da dívida sob a alcunha simpática de “responsabilidade” fiscal, tendo se transformado em verdadeira política de estado ao longo desse tempo. Porém, é sobretudo a partir do começo de 2015 que ele veio com intensidade e “insanidade” inéditas, chegando a se fazer valer de maneira brutal sob a forma constitucional do “teto de gastos” (EC nº 95) aprovado ao fim de 2016. O resultado concreto da última rodada de ajuste foi que só pioraram os indicadores da dívida em relação ao PIB, tanto porque o aumento dos juros aumentou a dívida, quanto porque a redução do gasto público e o próprio aumento dos juros comprometeram o PIB e consequentemente a arrecadação de tributos, num país em que a carga tributária depende tanto do consumo.
O que tentaremos deixar ainda mais claro de agora em diante é que a simples existência de dívida pública não necessariamente deve causar restrições na oferta de serviços públicos, de modo que as restrições praticadas só são possíveis devido a características particulares da dívida brasileira e, sobretudo, às forças políticas dominantes no país.
Portanto, a única restrição orçamentária é a luta de classes. O único fator que realmente limita a elasticidade dos orçamentos públicos é a capacidade organizada de diferentes grupos sociais controlarem politicamente o Estado, não havendo restrições financeiras “naturais” nem resistências insuperáveis.
Prova de que não existe nenhuma restrição orçamentária dada de antemão é o fato de que os ricos conseguiram multiplicar o estoque de dívida mobiliária interna em proveito próprio em 53 vezes em pouco mais de duas décadas além de terem sugado algo da ordem de R$ 900 bilhões só em superávits primários do Governo Central entre 1994 e 2014 ininterruptamente[18], isso tudo apenas porque foram capazes de controlar o processo político-institucional do país desde então.
Dívida pública e desemprego
Como já foi dito, a dívida da União é uma alternativa de “investimento” para os ricos. É assim que eles próprios chamam a negociação com títulos públicos: “investimentos”. Ocorre que investimento, no duro, é comprar máquinas e equipamentos, abrir lojas, fábricas, comprar insumos, ampliar negócios, melhorar a produção etc. É assim que se produz mercadorias e serviços. É assim que o IBGE calcula a “taxa de investimento”[19] da economia de verdade. E é assim que os empregos são gerados.
Mas se engana quem pensa que existe uma divisão tão rígida entre o capital dito “produtivo” e esse tal de “capital financeiro”, do qual o rentismo sobre a dívida pública seria expressão particular. Nas economias capitalistas modernas (e quando falamos “modernas” estamos falando desde o começo do século XX[20]), existe total imbricação entre os circuitos produtivos de acumulação e as diversas modalidades rentistas de acumulação financeira ou “centralização” de capitais[21]. Não à toa, as empresas ditas “produtivas” invariavelmente prezam pelo que elas chamam de “ganhos de tesouraria” (particularmente os ganhos com títulos públicos por meio de fundos de investimento), e algumas possuem departamentos financeiros tão bem estruturados quanto seus departamentos operacionais. Então não são apenas as empresas financeiras, como os bancos, que ganham com a dívida pública. Elas são apenas as que ganham mais.
Em tempos de crise, aliás, se por um lado os empresários “produtivos” fazem pressão política para que o Estado corte gastos sociais com um discurso moralista de “austeridade” e “retomada da confiança na economia”, por outro lado, eles pressionam o mesmo Estado, desde as suas entranhas e também por meio da imprensa econômica, para que aumente seus gastos com juros. Em um contexto no qual os empresários têm grandes incertezas sobre o quê, como e para quem produzir, eles se refugiam na soberania da dívida pública.
Assim, a economia real perde postos de trabalho em duas pontas: perde porque os empresários não investem na produção para “investir” nos títulos; e perde porque o Estado diminui o seu gasto. Uma regra macroeconômica fundamental é a de que o gasto de um é a renda de outro, logo, se o Estado diminui os seus gastos, salários não são pagos, encomendas não são feitas às empresas, trabalhadores são demitidos, trabalhadores sem salários consomem menos ou não consomem, o que diminui ainda mais o uso da capacidade instalada das empresas, que demitem mais trabalhadores e não encomendam a outras empresas, que diminuem a produção e demitem trabalhadores... Esse é o segredo do que se chama na ciência econômica de “efeito multiplicador do gasto”.
Por fim, vale observar que não apenas os juros sobre a Dívida Pública Mobiliária Federal interna retraem a geração de empregos. A DPMFi paga juros altos tanto em seus títulos remunerados pela taxa básica de juros da economia (SELiC), quanto em seus títulos com taxas de juros pré-fixadas ou indexados a índices inflacionários. Mas além dela existe a dívida mobiliária na carteira do Banco Central do Brasil, atrelada à SELiC, definida pelo próprio BCB, com a qual este operacionaliza parte fundamental da política monetária, determinando por meio de operações de compra e venda de títulos diárias as taxas de juros praticadas no mercado interbancário de reservas. Grosso modo, se a SELiC é alta, os bancos preferem entregar o dinheiro para o BCB e isso influencia as taxas de juros praticadas para emprestar a outros bancos, empresas e pessoas físicas. Logo, se a SELiC é alta, o crédito é mais caro, empresas tomam menos empréstimos e fazem menos investimentos, menos postos de trabalho são necessários, menos salários são pagos, famílias consomem menos e isso tudo gera mais desemprego.
No período em que estamos baseando nossos dados, o que vimos foi uma estabilidade em patamar muito elevado da taxa básica de juros reais, isto é, a taxa definida pelo BCB descontada a inflação. Os juros caíram, mas a inflação caiu de modo proporcional ou mais acelerado em determinados momentos, o que gerou manutenção de juros reais muito elevados, explicando parte do desemprego observado no período, pelo fato de isso encarecer o crédito e gerar demissões em atividades econômicas sensíveis a crédito barato, como construção civil, por exemplo.
Quem exatamente ganha com a dívida pública?
Até o último Relatório Mensal da Dívida antes do fechamento deste texto, o estoque da Dívida Pública Mobiliária Federal interna se dividia da seguinte maneira[22]:
- 25,18% de fundos de investimento;
- 24,83% de fundos de previdência;
- 22,37% de instituições financeiras;
- 12,66% de não-residente;
- 4,81% do governo;
- 4,69% de seguradoras;
- 5,45% outros.
A primeira coisa que gostaríamos de destacar é a categoria “não-residentes”. À primeira vista, pode parecer que apenas os juros referentes a 12,66% do estoque escoam para fora do país. Mas não é bem assim. A categoria “não-residentes” diz respeito apenas às contas de pessoas físicas e jurídicas relativas aos fundos ou outras entidades de investimento coletivo com residência ou sede no exterior. Entretanto, uma parte dentro de uma das maiores fatias da dívida, a de instituições financeiras, também remete seus rendimentos ao exterior. A categoria “instituições financeiras” representa os títulos em posse dos bancos comerciais e de investimento, nacionais e estrangeiros, além de corretoras e distribuidoras[23].
Além disso, outra parte considerável da Dívida Pública Federal (DPF), a Dívida Pública Federal externa (DPFe), também suga recursos públicos brasileiros para fora do país. A DPFe possui (no mês de referência do texto) estoque equivalente a R$ 117,57 bilhões, sendo que mais de 90% desse estoque é referente a uma dívida em títulos e o restante em contratos[24].
Como o Tesouro Nacional não divulga discriminadamente o estoque de DPMFi em mãos de instituições financeiras estrangeiras, não é possível determinar com exatidão o volume de dívida “externa”, num sentido amplo do termo, ou seja, dívida que escoa recursos públicos para fora do país. Porém, a julgar pela lista dos “dealers” do Tesouro, que é o conjunto de 9 instituições financeiras legalmente autorizadas a comprar os títulos da DPMFi diretamente da autoridade fiscal, é possível dizer que mais ou menos a metade dos compradores de títulos do chamado “mercado primário” são instituições essencialmente estrangeiras[25].
Se é lícito fazer ilações com base simplesmente na quantidade de bancos estrangeiros presentes no mercado primário de títulos da dívida “interna”, poderíamos dizer que estamos seguindo à risca a tradição colonial do “quinto dos infernos”, posto que pelo menos 1/5 da Dívida Pública Federal remeteria recursos públicos para fora, da mesma forma como remetíamos 1/5 da produção de ouro nacional como imposto ao império português.
Em relação aos fundos de investimento, que possuem aparentemente a maior parte da dívida, cabe observar que eles congregam os “investidores” a que nos referimos quando falamos da relação entre dívida pública e desemprego. Além disso, parte dos títulos referentes à rubrica “outros” pertence diretamente às empresas do setor assim chamado “produtivo”.
Sobre a rubrica “governo”, cabe observar que boa parte dessa dívida ajuda na formação de caixa para o BNDES, tanto com emissões diretas em nome do banco quanto com o rendimento das aplicações de fundos para-estatais que também compõe a captação de recursos do banco[26]. O caixa do BNDES, por sua vez, beneficia principalmente os grandes empresários com empréstimos subsidiados ao preço pago por todos nós da diferença entre os custos de captação e os juros recebidos pela instituição pelos empréstimos.
Também é importante observar que os fundos de previdência privada possuem parte considerável da dívida. Aliás, dado o “teto de gastos”, pode-se afirmar que os fundos de previdência privada seriam os principais beneficiários de uma reforma da previdência nos moldes discutidos pelo governo neoliberal, ou seja, tendo em vista dificultar o acesso aos benefícios previdenciários. Os fundos privados ganhariam tanto com o aumento dos superávits primários, resultante de maior sobra das contribuições sociais no caixa da Seguridade[27], quanto com o aumento da fatia de mercado de setores da classe média que deixarão de ver vantagem na previdência pública e poderão optar por planos de previdência complementar.
De todo caso, são os bancos nacionais e estrangeiros os que mais ganham com a dívida pública. Além da parcela de DPMFi em posse de “instituições financeiras”, os bancos comerciais são proprietários em larga medida dos fundos de previdência abertos[28], que correspondem a mais de 60% do estoque de DPMFi mantido por fundos de previdência[29]. Assim, é possível dizer (de modo meramente aproximativo) que cerca de 37% do estoque da dívida está nas mãos dos bancos, isso sem levar em consideração as “seguradoras”, que são também em larga medida propriedades de grandes corporações bancárias.
Dívida pública e a classe média
Em meados de 2002, foi criado o programa Tesouro Direto, com o intuito de vender títulos públicos a pessoas físicas pela internet. O programa tem a adesão de “investidores” com poder de poupança mais limitado, que se encaixam no perfil que aqui estamos chamando de “classe média”, ou seja, trabalhadores com o garrote da escravidão assalariada um pouco mais frouxo, profissionais liberais, pequenos capitalistas, funcionalismo público etc., ou seja, um conjunto composto pelas franjas das classes sociais fundamentais.
Esses “investidores” encontram nos títulos públicos uma maneira mais vantajosa de guardar dinheiro do que nas cadernetas de poupança, para fins de complemento futuro de renda, financiamento de bens, pequenos empreendimentos etc.
Do ponto de vista do rentismo, o mais importante é o efeito propagandístico do programa, que fornece um lastro à crença ideológica de parte da classe média nas políticas econômicas neoliberais. É assim que várias “consultorias de investimento”, muitas delas de fundo de quintal, patrocinam textos nas seções econômicas dos portais de notícia discorrendo sobre a galinha dos ovos de ouro do governo, fazendo pessoas com alguma grana no bolso se imaginarem parte do mundo das altas finanças.
Com efeito, o estoque de dívida interna em títulos relativo ao Tesouro Direto é de pouco mais de 1,4% do total[30]. Assim, a classe média esbraveja a favor do latifúndio rentista ignorando o tamanho da sua parte cabida, de onde vem o dinheiro que remunera os títulos públicos e os danos aos direitos sociais e ao circuito produtivo do país causados pela espoliação financeira.  
Neste ponto, contudo, vale firmarmos o acordo político de que qualquer reestruturação da dívida deve manter os compromissos com o programa Tesouro Direto, dadas a sua pequena dimensão e a sua utilidade na formação de poupança de longo prazo[31] para pessoas que majoritariamente não “vivem de renda” e não compõem as classes dominantes.
A classe média também acessa a dívida pública por meio dos fundos de previdência privada, o que, neste caso, também daria uma relativa função social ao pagamento de juros. Portanto, a reestruturação da dívida pública que defendemos deve garantir que não haja perdas nos investimentos desses trabalhadores dos setores médios, ao passo que nos livrarmos do rentismo também ajudaria no aperfeiçoamento da previdência pública.
As características da dívida pública brasileira
A captura rentista da finança pública por meio do endividamento ocorre por causa de características concretas da dívida relativas ao arcabouço jurídico-institucional que a engloba, à sua composição, à sua estrutura de maturação, ao seu custo e à sua gestão.
A Constituição Federal, no parágrafo 1º do artigo 164, proíbe que o Banco Central do Brasil faça empréstimos ao Tesouro Nacional, o que obriga o governo a ter necessariamente que financiar os seus déficits com emissão de títulos públicos. Além disso, a Lei Complementar 101/2000, mais conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, disciplina de forma definitiva a extorsão dos recursos públicos para os pagamentos da dívida em todas as esferas de governo.
Também existe uma sintonia fina entre consecutivos Ministros da Fazenda, Secretários do Tesouro, Presidentes do Banco Central e o mercado financeiro. Ao longo das últimas décadas, esses postos-chave da condução econômica do Estado têm sido ocupados direta ou indiretamente por representantes do financismo[32].
estrutura de maturação da dívida possui duas características fundamentais: Estoque vincendo em 12 meses muito elevado e prazo médio de vencimento muito curto.
O estoque com vencimento em 12 meses em agosto de 2017 era de 16,64% do total ou R$ 546,9 bilhões, quantia consideravelmente alta em relação à capacidade de o Estado levantar fundos para saldá-la nesse período, dada sua impossibilidade jurídica em fazer uso de emissão monetária (empréstimos do BCB) para saldar dívida.  Esse estoque, que já chegou a 46% do total da DPMFi em 2004[33], vem diminuindo ao longo do tempo em termos relativos, mas como a dívida vem aumentando incessantemente, percebe-se que ele cresceu em termos absolutos.
Vale observar que boa parte do estoque vincendo em 12 meses está em mãos de credores não-residentes, cujas carteiras são compostas amplamente por títulos pré-fixados[34], sendo que mais de 61% do estoque vincendo em 12 meses é constituído por títulos pré-fixados[35], que constituem a maior parcela da DPMFi (34,53%)[36] e possuem em geral os menores prazos de vencimento[37].
prazo médio de vencimento da DPMFi também pode ser considerado problemático. Em agosto de 2017, todo o estoque possuía vencimento médio de 4,27 anos. O Tribunal de Contas da União, em um relatório de 2015[38], assinalava que essa estrutura de vencimentos estava muito abaixo da média internacional, o que, sobretudo do ponto de vista dos credores estrangeiros, aumenta a percepção de risco sobre a nossa dívida interna.
A partir dessas duas características, deve-se ter em mente que:
“A estrutura de maturação da dívida está relacionada com seu risco de refinanciamento. Este é dado pela possibilidade de o Tesouro Nacional, ao acessar o mercado para refinanciar sua dívida vincenda, encontrar condições financeiras adversas que impliquem elevação em seus custos de emissão, ou até, no limite, não conseguir levantar recursos no montante necessário para honrar seus pagamentos”.[39]
Ou seja, o Estado brasileiro tem que refinanciar ou “rolar” a sua dívida e, para tanto, dado o arcabouço jurídico-institucional vigente, encontra-se à mercê do que cobram os donos do dinheiro.
A princípio, é o governo e não o “mercado” que tem o poder de determinar os juros. Contingentemente, se os credores não querem aceitar um título soberano unicamente pela sua segurança, garantindo-lhes não muito mais do que a preservação do seu poder de compra em Reais, nós só somos constrangidos a vender-lhes com prejuízo porque a estrutura da dívida atual, seu arcabouço jurídico e a infiltração dos agentes do mercado nas instituições da finança pública dão ao lance dos rentistas total prerrogativa sobre o nosso.
O governo tem o poder originário de impor a taxa de juros pelo simples fato de que os donos do dinheiro fogem da inflação como animais fogem de uma floresta em chamas. Entretanto, a dívida cresceu de tal modo, constituiu-se de tal maneira e sob tais constrangimentos legais, que se seguirmos as regras fundadas nela tal como ela é ficamos suscetíveis ao movimento inercial da taxa de juros exigida pelo mercado.
Não à toa, segundo o Relatório de referência, o custo médio acumulado em 12 meses da DPMFi encontra-se em cerca de 11% a.a.[40], isso quando tivemos na média dos últimos 12 meses uma “inflação acumulada em 12 meses” de cerca de 5%[41], o que concretizou um juro real médio da ordem de 6%! Qual atividade produtiva oferece um retorno acima da inflação tão fácil, sem correr nenhum risco? E esse custo sempre tende a aumentar na medida em que os sequestradores percebem o desespero da vítima.
As coisas ficam desoladoras se olhamos para o custo médio dos títulos pré-fixados, que possuem curto ou curtíssimo prazo de vencimento e compõem a maior parte do estoque total de títulos da DPMFi. No Relatório de referência, os títulos pré-fixados garantidos pelo Tesouro Nacional ofereciam taxa média de retorno acumulada em 12 meses de mais de 12% a.a. Se olharmos para o estoque total de títulos pré-fixados negociados no mercado, a rentabilidade média calculada chega a 18%[42]!...
Vale dizer que essa orgia conta com um verdadeiro colchão kingsize de liquidez de mais de R$ 1 trilhão de reais[43]. Os pagamentos relativos à dívida pública são garantidos pelo saldo da conta que o Tesouro possui no Banco Central, a Conta Única do Tesouro (CUT), composto por uma enorme quantidade de dinheiro público, legalmente à disposição dos credores, oriunda de superávits primários, remuneração da própria CUT, aplicações financeiras federais, lucro do BCB e pagamentos das dívidas de estados e municípios com a União, que fica totalmente à disposição dos credores[44]. Esse dinheiro corresponde a cerca de sete meses do serviço da dívida[45] e poderia ser muito melhor utilizado, em parte, para outros fins, que não tornar os ricos ainda mais ricos.
A própria estratégia de “gestão” da dívida pública professada pela Secretaria do Tesouro Nacional tende a reforçar a captura da política econômica pelos credores. A STN tem como objetivo aumentar a parcela do estoque de DPMFi de títulos pré-fixados[46]. Como vimos, os títulos pré-fixados possuem o menor prazo médio de vencimento, sendo que 61% da dívida que vence em 12 meses é composta por eles, que são os mais lucrativos para os rentistas. Além disso, quase 90% da carteira de títulos dos credores de fora do país é composta por pré-fixados[47], sendo essa gente especialmente suscetível às agências classificadoras de risco[48], que levam esses mesmos elementos em consideração para suas avaliações, de modo que esses fatos trazem problemas adicionais à rolagem da dívida diante de qualquer política econômica indesejada pelo “mercado”, dada a tendência ao aumento do custo de emissões e dado o livre fluxo global de capitais, posto que esses credores, que obtêm rendimentos em moedas fortes, não possuem obstáculos para conversão de moeda, podendo aplicar na dívida “interna” do país que julgarem melhor, tendendo a se desfazer mais facilmente dos papéis que julgar indesejáveis. 
A STN alega que tal “objetivo estratégico” traz “maior previsibilidade em relação à trajetória da dívida”, mas a única coisa previsível a se deduzir é que o poder de barganha em favor do rentismo e os ganhos dos ricos seriam ainda maiores. Além disso, o esquema rentista sobre a DPMFi estaria livre das suscetibilidades da política monetária praticada pelo Banco Central, que é quem define os juros pós-fixados ou flutuantes ou a taxa SELiC. O patamar injustificavelmente alto da taxa básica de juros, que referencia parte considerável do estoque da DPMFi e a maior parte dos títulos na carteira do Banco Central é questionado até por capitalistas que, por essa razão, veem secar a torneira da concessão de crédito por parte dos bancos comerciais.
Por fim, o que quisemos mostrar é que as características apontadas acima representam o poder real dos credores em direcionar os rumos do núcleo duro da política econômica brasileira. Portanto, sem reestruturar a dívida em sua composição, estrutura de maturação e custos, bem como sem reformar a arquitetura financeira do Estado brasileiro não escaparemos do sequestro rentista.
As amarras do rentismo são como teias de aranha, só podem ser rompidas à força. Se tentamos nos mover nelas, acabamos ainda mais presos. De modo que não podemos cair na ilusão de uma estratégia gradualista, como se pouco a pouco fôssemos nos livrar do problema. As características da dívida já estão consolidadas e ela cresce cada vez mais. E o único resultado de tudo isso é que tanta gente “empresta” para o governo e o povo não vê nem a cor do dinheiro.
Como ocorre de fato o sequestro rentista da dívida?
O Tribunal de Contas da União, em seu Acórdão nº 1798/2015, alertava que o elevado custo da dívida poderia levar a um risco de sustentabilidade, querendo dizer com isso que poderia chegar um momento, a depender de conjunturas políticas e econômicas singulares, no qual não teríamos condições de refinanciar a dívida ou não teríamos disponibilidades suficientes para honrá-la simplesmente porque a dívida nos exige demais e quanto mais ela cresce perpetuando as suas características, maior o seu “prêmio de risco”, de modo que ao fim desta escalada geométrica poderíamos nos tornar insolventes.
Do ponto de vista estritamente teórico, é no mínimo questionável que um país com moeda soberana possa se tornar insolvente na moeda que ele mesmo emite. Entretanto, se considerarmos a limitação legal efetivamente dada de o BCB não poder financiar o Tesouro Nacional no Brasil[49], a infiltração dos agentes do mercado nas instituições da política econômica e se levarmos em conta o formato concreto da dívida interna brasileira, com estoque vincendo em 12 meses muito grande (em boa parte na mão de não-residentes), prazo médio de vencimento muito curto, elevado custo médio, relação dívida/PIB crescendo em ritmo acelerado, fica mais palpável a hipótese desse “risco de sustentabilidade” ou de um risco de refinanciamento da dívida.
Então, existem condicionantes reais que propiciam o sequestro da política fiscal por meio da dívida pública, que constituem o fundamento material de toda a cantilena neoliberal sobre “equilíbrio financeiro” e “austeridade”. Significa que qualquer que seja o governo e qualquer que seja a política econômica alternativa tentada, haverá pressões reais dos credores fundadas em fatores objetivamente dados.
Mas será que os credores não iam mesmo rolar a dívida se praticássemos juros menores? O que nos impede de baixar os juros? Um título público possui baixo risco de inadimplência pelo fato de ser garantido pelo soberano, que pode tributar, liquidar patrimônio, fazer cortes de gastos e, no limite, emitir moeda. Isto é, um país tem que estar em completa destruição para não honrar os seus compromissos. E se pararmos para pensar que o Brasil gasta com juros mais do que países em guerra[50], fica pouco plausível pensar que os endinheirados recusariam preservar seu poder de compra na moeda de um país sem histórico de grandes conturbações, que goza estar entre as maiores economias do mundo, ainda mais se o Brasil for o país de residência deles!
Entretanto, a dívida interna brasileira possui um agravante adicional em relação ao seu risco de refinanciamento. Com base em dados que já indicamos acima, pode-se inferir que boa parte da dívida de curto prazo, composta majoritariamente por títulos pré-fixados, está em mãos de “não-residentes”. Gente que vive fora, que em geral obtém renda em dólares ou outra moeda forte, pode, a princípio, fazer uma consideração simples antes de decidir aplicar na dívida brasileira: a taxa de juros real praticada no Brasil cobre os juros reais dos títulos do Tesouro norte-americano (Federal Reserve), descontadas as perdas eventuais com a desvalorização do Real frente ao dólar? De modo que os credores não-residentes tendem a aplicar dinheiro nos países em que o juro real satisfaça esta condição.
O mesmo raciocínio dos gringos não vale para os “investidores” residentes no Brasil, posto que é muito mais fácil o Real se desvalorizar frente ao dólar, o que tende a impor aplicações que não passem por conversão cambial.
De todo caso, uma eventual reestruturação da dívida deve levar em consideração medidas de controle de capitais, que impeçam desvalorização brutal do câmbio, o que aumentaria ainda mais o risco de refinanciamento de parcelas da dívida em mãos de não-residentes. Já os credores residentes no país tenderiam a aceitar juros reais menores para a manutenção de seu poder de compra em Reais, dado que as taxas de juros de outros países estão em geral muito menores nos últimos anos e devido à taxa de câmbio, que pode cobrar uma parte do dinheiro na ocasião de sua externalização.
Reestruturar a dívida, nos elementos que vamos propor, removeria os condicionantes que favorecem a chantagem rentista, além de trazer efeitos plausíveis no sentido de impor alguma medida ao endividamento do Brasil.
Reestruturar a dívida para combater o rentismo
Com base em tudo que foi discutido, vamos listar os pontos centrais que devem abranger uma reestruturação da dívida pública interna em títulos, tendo como objetivo combater o rentismo, posto que ele é um dos principais motores da desigualdade econômica e social de nosso país:
  1. Construir força social consciente sobre o problema do rentismo, até que essa força social possa se converter em força política, é pré-condição para qualquer tentativa de política econômica que vise garantir pleno emprego e direitos sociais.
  2. Para inviabilizar o rentismo, é preciso: a) revogar o §1º do art. 164 da Constituição Federal, que proíbe o Banco Central de fazer empréstimos ao Tesouro Nacional, colocando-o sob pressão financeira constante dos credores privados – se o BCB pode “ajudar” o TN do mesmo modo como faz com grandes bancos com problemas de liquidez na condição de emprestador de última instância, some completamente o risco de refinanciamento da dívida pública, fora que tais empréstimos não necessariamente teriam custo em juros, dado que o resultado do BCB é arrecadado pelo TN; b) revogar os dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal que cristalizam na institucionalidade fiscal do país a austeridade permanente.
  3. Combater efetivamente o rentismo significa reduzir o custo médio da dívida.
  4. Diminui o poder de barganha dos rentistas diminuir o estoque da dívida com vencimento no curto prazo, o que se faz alongando o perfil de vencimento e distribuindo de modo equilibrado os prazos de resgate.
  5. É preciso diminuir paulatinamente e o máximo possível o estoque de dívida em mãos de gente não-residente no país, o que fortalece a economia nacional e também diminui o poder de barganha do rentismo como um todo.
Vale dizer que a única maneira de extirpar definitivamente o rentismo seria superar o capitalismo, pois o rentismo, em suas várias modalidades, está fundado na própria lógica da acumulação capitalista.
Conforme avança a acumulação capitalista, ou seja, conforme avança a concentração da propriedade privada dos meios de produção, dos meios de vida e sobretudo do dinheiro, o valor da riqueza “velha” cobra implacavelmente seu tributo à riqueza “nova”.
O acúmulo de dinheiro é o objetivo central do modo de produção capitalista. Conforme se acumula dinheiro, é preciso encontrar maneiras de protegê-lo da “desvalorização” ou perda do poder de compra, resultantes dos fenômenos inflacionários, derivando-se deste fato toda espécie de parasitismo financeiro.
Portanto, a luta particular pela superação do rentismo sobre a dívida pública pode assumir caráter antissistêmico, muito embora, a princípio, seja um objetivo plenamente integrável à ordem e até desejável em alguma medida, posto que o próprio custo da dívida, em determinadas condições, constitui risco de sustentabilidade.  
Em que medida reduzir a taxa básica de juros ajuda a combater o rentismo?
É comum ouvir da boca de economistas sensíveis ao problema do rentismo que baixar a taxa básica de juros seria solução suficiente. Tal medida, com impacto imediato na política monetária do Banco Central, teria importância fundamental para baratear as taxas de juros praticadas pelos bancos e seria uma medida vital para a ampliação do investimento privado e para uma retomada consistente do crescimento econômico e da geração de empregos.
Contudo, o estoque de “juros flutuantes” de DPMFi é de 31,92%[51]. Logo, reduzir o juro real relativo à taxa SELiC seria medida suficiente apenas para combater o rentismo sobre cerca de 1/3 da dívida.
Entretanto, para combater o rentismo de modo geral seria necessário reduzir os custos relativos aos outros 2/3 do estoque. A partir de análises criteriosas, pode-se fazer uma repactuação das taxas de juros pré-fixadas e dos prazos de vencimento. Além disso, na própria rolagem e nas novas emissões deve-se praticar juros mais baixos.
Alguns títulos com juros flutuantes possuem uma parte fixa que também pode ser revista. Além disso, os títulos indexados pelo câmbio compõem parte pequena do estoque e os títulos indexados à inflação, muito apreciados pelos fundos de previdência e pelo Tesouro Direto, possuem, via de regra, prazos de vencimento bastante longos, contribuindo pouco para o risco imediato de refinanciamento da dívida.
O papel de uma auditoria da dívida
Nas medidas que listamos acima para reestruturação da dívida, partimos do pressuposto de que é preciso certa correlação de forças para efetivá-las. A partir disso, devemos ter em mente que a correlação entre forças sociais e políticas não é algo simplesmente dado, mas algo que se constrói. Força social, ademais, não é algo que se constrói gratuitamente, a esmo, isto é, sem um propósito bem definido, e a construção de força social é pré-condição para a construção de força política organizada.
De modo que para combater o rentismo sobre a dívida pública e pôr fim ao ajuste fiscal permanente das últimas duas décadas, que tem como efeitos deletérios a deterioração do mercado de trabalho e a restrição de direitos, nosso ponto de partida deve ser, em termos de agitação e propaganda, construir a percepção da dívida pública como um problema. 
Trata-se antes de tudo de uma questão pedagógica/epistemológica, e não meramente econômica. Conceber que devemos combater o rentismo ou não se resume ao fato de acharmos certo ou não que rios de dinheiro público brasileiro sejam escoados para fora do país ou que os impostos pagos pelos pobres sejam sistematicamente sugados para tornar os ricos ainda mais ricos. Mas para que as pessoas sejam levadas a formar juízo sobre isso, é preciso buscar mediações, pontos de contato entre o entendimento que queremos proporcionar às pessoas e as noções que elas já têm.
A melhor maneira de não ensinar algo a alguém é matraquear um entendimento imediatamente abstrato e, portanto, inacessível. Parte bem intencionada dos economistas de esquerda preocupados com o problema do rentismo e com a formulação de saídas viáveis para o Brasil gasta muita saliva sobre “finanças funcionais”, “teoria monetária moderna”, “macroeconomia”, “heterodoxia”, e blá blá blá. Ocorre que a despeito da verdade e da utilidade desses conhecimentos, é de se considerar que eles sejam inacessíveis em dois sentidos: ou porque não chegam ao grande público; ou porque, quando chegam, entram por um ouvido e saem pelo outro, porque prestar atenção e se deixar mover por discursos dessa natureza exige curiosidade prévia.
Ao contrário disso, todas as pessoas possuem noções espontâneas sobre o que é uma dívida e, consequentemente, sobre o que é uma dívida abusiva. Qualquer pessoa que já tenha se atolado em dívidas com bancos por causa de juros abusivos entende perfeitamente o funcionamento básico do sequestro rentista e o quão injusta essa dívida é, bem como entende a necessidade de “renegociar” esses juros e até mesmo o estoque resultante dessa bola de neve, porque senão os bancos irão tomar na justiça os seus bens ou sufocar o orçamento familiar, da mesma maneira como os credores da dívida pública exigem que se liquide o patrimônio do povo ou que sejam feitos superávits primários.
No geral, existe um enorme anseio do povo por saúde, educação, transporte, empregos dignos etc., e é muito difundida no senso comum a opinião de que o Estado só não tem dinheiro para gastar com serviços públicos por causa da corrupção, sendo essa a tônica da narrativa da grande mídia. Mas as coisas mudariam muito de figura se o povo soubesse falar de centenas de bilhões, comparando valores etc. A consciência política geral avançaria muito se fosse difundida a percepção de que existe uma dívida que condiciona o modo como se dá o gasto público, que serve de desculpa para os sacrifícios exigidos pelo governo, dívida que se constitui sem gerar um centavo de gasto com aquilo que o povo deseja e necessita. As pessoas entendem imediatamente o que é uma dívida com contrapartida e o que não é.
Precisamos de ganchos para puxar a atenção do povo e a partir daí gerar esclarecimento sobre o funcionamento real da finança pública. Qualquer experiência cognitiva ocorre assim, indo do particular ao geral, dos preconceitos aos conceitos, do aparentemente concreto ao entendimento, usando-se noções e dados imediatos como trampolim.
O lado de lá entende muito bem tudo isso. As comparações entre orçamento público e orçamento familiar, que eles usam para justificar que o governo tem que fazer “economias” e honrar o que deve, apesar de falsas (e até absurdas, cientificamente), seguem um didatismo exemplar, democratizando a mentira.
Assim, temos que saber identificar quais elementos imediatos presentes na consciência ingênua são mobilizados pelo tema da dívida. A partir disso, podemos desenvolvê-los até chegar ao problema do rentismo e a partir do problema do rentismo a uma consciência crítica mais geral ou, marcadamente, uma “consciência de classe” e uma consciência de que é necessário construir uma alternativa política para resolver o problema. E é neste sentido que defendemos a bandeira da auditoria.
Em primeiro lugar, a bandeira da auditoria da dívida é funcional à aglutinação de força social que pode se converter em força política organizada, o que é provado pela atuação nacional da entidade Auditoria Cidadã da Dívida (ACD). Além disso, o tema da dívida oferecer um fio narrativo capaz de amarrar as lutas fragmentadas por direitos sociais e de hackear o debate sobre corrupção, afinal, não existe promiscuidade maior entre público e privado do que na dívida pública federal, levando as pessoas inicialmente comovidas por esse tema a se depararem com temas econômicos fundamentais.
Este aspecto da “corrupção” é diretamente trabalhado pela ACD ao descrever o “sistema da dívida” como um esquema de fraudes. Nós, da POEMA, temos ressalvas em relação a esta abordagem, posto que o grosso da dívida atual é relativo à incorporação de juros, processo que se deu com um forte verniz legal, de modo que se houve “fraude”, foi fraude legalizada. Assim, é preferível tratar a questão de modo diretamente político, atenuando o tom moralista.
Em segundo lugar, a realização oficial de uma auditoria serviria para dar transparência à reestruturação da dívida e ampla publicidade ao problema do rentismo.
Do mesmo modo como é impensável fazer uma greve sem os trabalhadores, reforma agrária sem a mobilização dos sem-terra e uma reforma urbana sem a mobilização dos sem-teto, seria impensável a guinada de política econômica que desejamos sem ampla mobilização cidadã, sem induzir o povo a se tornar um agente dessa política econômica. Em outras palavras, não há como combater o rentismo sem mobilizar o povo contra os rentistas. E se fôssemos capazes de construir uma alternativa política para mudar os rumos da economia precisaríamos de sustentação social permanente. Até porque haverá terrorismo de mercado diante de qualquer tentativa de mudar a política econômica. E a única maneira de enfrentar o terrorismo é pela resistência consciente.
Uma auditoria da dívida seria uma espécie de Comissão da Verdade, que serviria para denunciar a infâmia das políticas econômicas neoliberais, para esclarecer oficialmente a população sobre a necessidade de outra política econômica, para amplificar a percepção sobre como o parasitismo rentista trava o uso financeiro do Estado em benefício do povo, o papel do Estado em geral para a defesa dos ricos e para gerar responsabilização pelo problema.
Os grandes meios de comunicação e os políticos da ordem sempre dizem que a dívida é um problema e que a austeridade é necessária. Então o povo deve saber qual é o problema afinal!
De modo que uma auditoria da dívida cumpriria função tática. A política econômica necessariamente envolve questões intrincadas e muitas vezes áridas, entretanto, seria um enorme erro de nossa parte nos conformarmos a essas dificuldades e desenharmos nossa política como medida puramente técnica. A presidente Dilma, em seu primeiro mandato, mirando a política monetária, e aproveitando um contexto internacional favorável, baixou a taxa básica de juros na canetada, o que tem efeito significativo para combater o rentismo sobre a dívida pública interna pós-fixada; mas o que nós vimos logo em seguida é que essa medida, correta do ponto de vista técnico, não se sustentou politicamente, seja porque na ocasião se passou a leiloar mais títulos pré-fixados com juros maiores, seja por toda a pressão política que aumentou a partir daí, culminando em um deprimente golpe parlamentar, sem que a maioria do povo tenha entendido o que se passou. Vale observar, de passagem, que esta medida, diferente do que pregam os sacerdotes do mercado, não descontrolou a inflação nem o câmbio.
Assim, para combater o rentismo, é uma importante mediação encarar a própria dívida enquanto problema social, econômico e político e apenas uma bandeira de luta como auditoria, em alguma medida já disseminada, pode gerar ampla percepção da dívida enquanto problema, até porque é uma “auditoria” que se coloca em questão. Erram os economistas que não veem nenhum problema com a dívida, ou porque fazem tábula rasa da República Rentista ou porque se limitam a pensar como bons economistas, esquecendo-se de serem bons militantes.
É verdade que circulam certos mal-entendidos, em parte induzidos por artifícios didáticos, que devem ser desfeitos. A metade dos nossos impostos não vai para pagar dívida. A dívida, por si só, não é fator de nenhuma restrição orçamentária. O país não está quebrado por causa da dívida etc. E dentre os mal-entendidos, o principal a ser desfeito é aquele utilizado para causar indignação moral a favor dos rentistas. Não, auditoria não é calote! Auditoria é apenas uma investigação pública minuciosa. Auditoria é transparência!
Nós da POEMA partimos do pressuposto de que pelo que já se sabe da dívida através dos documentos oficiais regularmente divulgados é necessário reestruturá-la. Nosso objetivo estratégico está declarado de antemão, porque a verdade já está dada em parte, de modo que uma investigação aprofundada cumpriria papel complementar e acessório.
Por fim, nos moldes como propomos a reestruturação, não necessariamente reivindicamos o confisco do dinheiro dos rentistas relativo ao principal da dívida ou a “anulação” da dívida. Muito embora seja possível que uma auditoria de fato venha a comprovar fraudes ou irregularidades por ocasião da emissão de determinados lotes. Quem não deve, não teme.
Mesmo no caso de uma auditoria indicar problemas na emissão de títulos, defendemos que apenas os primeiros beneficiados mapeados sejam responsabilizados. Diariamente, uma enorme quantidade de títulos é comercializada no mercado secundário, de modo que simplesmente anular esses títulos prejudicaria apenas os seus carregadores atuais, sem nenhum impacto para os beneficiários diretos das supostas “ilegalidades”. Além disso, qualquer penalidade decorrente desse tipo de investigação deve evitar a geração deliberada de crises no sistema bancário, caso no qual a tentativa de gerar justiça e reparação apenas criaria problemas adicionais.
Por fim, a comprovação de irregularidades na emissão de dívida daria anda mais razão ao anseio de repactuação dos juros sobre o estoque vigente da dívida e, no limite, as penalidades aplicadas poderiam reforçar um processo de nacionalização do sistema bancário, a depender do tamanho da culpa dos principais agentes financeiros do país em eventuais crimes contra o povo brasileiro através de uma dívida que cresceu 53 vezes nos últimos 20 anos.
Referências
[1] FAQ BCB, 2016, Indicadores fiscais: https://goo.gl/Mxw4H9 (pgs. 14, 15 e 16).
[2] As dívidas de estados e municípios podem ser consultadas no site do BCB: https://goo.gl/cDVW1t
[3] Relatório Mensal da Dívida (RMD), Tesouro Nacional, agosto de 2017: https://goo.gl/BNHRrT (pg. 11).
[4] Carga Tributária no Brasil 2016, análise por tributos e por carga de incidência, Receita Federal: https://goo.gl/53yJPq(pg. 35)
[5] Chama-se “serviço” da dívida o total dos encargos com a dívida em um dado período, ou seja, refinanciamento, amortizações, juros, taxas etc.
[6] Resultado primário é a diferença entre as receitas primárias e as despesas primárias, isto é, excluídas as receitas e despesas com juros. Receita > Despesa = Superávit. Receita < Despesa = Déficit.
[7] Banco Central do Brasil, Notas econômico-financeiras para a imprensa, Histórico, Política Fiscal, março de 1998, Q1: https://goo.gl/Et8Gk4
[8] 20 anos de economia brasileira 1995-2016, Centro de altos estudos brasileiros no século XXI: https://goo.gl/GqnAHi(pgs. 95, 100 e 103).
[9] Relatório Anual da Dívida (RAD), 2016, “Necessidade de Financiamento do Tesouro Nacional”: https://goo.gl/u5EdN3(pg. 21).
[10] Tesouro Nacional: https://goo.gl/A971if
[11] RAD 2016, pg. 27.
[12] Banco Central do Brasil, Notas econômico-financeiras para a imprensa, Histórico, Política Fiscal, janeiro de 2016 e 2017 e setembro de 2017: https://goo.gl/Et8Gk4
[13] A Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) se encontra em 73,7% do PIB. Idem, setembro de 2017.
[14] Senado Federal, Portal do Orçamento, Painel Cidadão, orçamento planejado 2017, “orçamento efetivo” exclui repartição de recursos com estados e municípios e refinanciamento da dívida: https://goo.gl/Qkkrfa
[15] RAD 2015, pg. 35 (https://goo.gl/uAheAu); RAD 2016, pg. 27; RMD, agosto de 2017, pg. 12.
[16] Ao taxar os mais ricos, que têm maior propensão a poupar do que a gastar, porque têm mais dinheiro “sobrando”, o governo assim não derruba a economia por não diminuir o consumo agregado. Ao taxar os mais ricos dentre os ricos, esse raciocínio é ainda mais válido.
[17] Por “valor” estamos entendendo aqui, grosso modo, a oferta de bens e serviços na economia real.
[18] Tesouro Nacional, Política Fiscal, Histórico do Resultado do Tesouro Nacional: https://goo.gl/tXrdiz. “Governo Central” corresponde ao Tesouro Nacional, Banco Central e Previdência.
[19] Dada pela Formação Bruta de Capital Fixo e pela Variação de Estoques, tais como constam nas Contas Nacionais do IBGE.
[20] Ver “Imperialismo, fase superior do capitalismo”, de Vladimir Lenin e “O capital financeiro”, de Rudolf Hilferding.
[21] A “acumulação” financeira, a rigor, não produz riqueza nova, apenas redistribui riqueza pré-existente.
[22] Relatório Mensal da Dívida (RMD), Tesouro Nacional, agosto de 2017: https://goo.gl/BNHRrT (pg. 14)
[23] Ver nota 46 do Relatório Anual da Dívida 2016, Tesouro Nacional, pg. 37.
[24] RMD, pg. 11.
[25] A lista dos dealers vigente de 10/08/2017 a 31/01/2018 trazia 4 bancos comerciais e de investimentos estrangeiros, além de um banco catalogado como nacional, mas cujo capital é originalmente espanhol e que remete recursos para a matriz, o Santander. Fora que os bancos “brasileiros” presentes na lista, exceto a Caixa Econômica Federal, são todos bancos de capital aberto, com considerável participação acionária estrangeira. Para consultar a lista dos dealers: https://goo.gl/kZERDx
[26] Relatório da Administração Sistema BNDES 2016:  https://goo.gl/jwYdJC (pg. 16).
[27] Análise da Seguridade Social 2015, ANFIP: https://goo.gl/hdJx45 (pg. 29).
[28] Fundos de previdência abertos são fundos comercializados por bancos e seguradoras, que podem ser adquiridos por qualquer pessoa física ou jurídica. Fundos fechados são fundos criados por empresas voltados exclusivamente aos seus funcionários.
[29] RAD, pg. 39.
[30] RMD, agosto, pg. 7. Esse estoque compõe parte da rubrica “outros” indicada anteriormente.
[31] O Tesouro Direto ajuda na formação de poupança para aquisição da casa própria ou como “pé de meia” para situações de vulnerabilidade, como desemprego de setores sem direitos trabalhistas formais, e até mesmo complemento de renda na velhice.
[32] Dantas, Eric G.; Perissinoto, Renato. Ministros da área econômica do Brasil (1964-2015), fevereiro de 2016: https://goo.gl/oNi2ka. Codato, Adriana; Dantas, Eric G.; Perissinoto, Renato. Perfil dos Diretores do Banco Central do Brasil dos governos Lula, Dilma e Cardoso, novembro de 2014: https://goo.gl/LpD8y7. The observatory of social and political elites of Brazil.
[33] RAD 2004: https://goo.gl/RBhdYJ (pg. 35).
[34] RMD, agosto de 2017, pg. 14.
[35] RMD, agosto de 2017, pg. 15.
[36] RMD, agosto de 2017, pg. 13.
[37] RAD, 2016, pg. 34.
[38] Acórdão 1798/2015, R3.
[39] RAD 2016, pg. 32. Itálico nosso.
[40] RMD, agosto de 2017, pg. 18.
[41] IPCA, média ponderada da série histórica do acumulado em 12 meses de agosto de 2017 a agosto de 2016: https://goo.gl/Q2xDBu (pg. 17).
[42] RMD, agosto de 2017, pgs. 13, 18 e 22.
[43] Banco Central do Brasil, Demonstrações financeiras contábeis, passivo em moeda local, “obrigações com o governo federal”: https://goo.gl/GuHwbb
[44] Acórdão TCU 315/2009.
[45] Senado Federal, Portal do Orçamento, Painel Cidadão, Orçamento autorizado 2017, composição por objeto de gasto. Considera amortizações + juros e encargos.
[46] Plano Anual de Financiamento (PAF) 2017, Tesouro Nacional: https://goo.gl/s6cBYC (pg. 9).
[47] RMD, agosto de 2017, pg. 14.
[48] Uma Agência de Classificação de Risco de Crédito é uma empresa que avalia determinados produtos financeiros ou seus emissores e classifica esses ativos ou empresas segundo o grau de risco de não pagamento no prazo fixado.
[49] Constituição Federal, art. 164, §1º e Lei de Responsabilidade Fiscal, LC 101/2000, art. 39, §2º.
[50] O artigo “A enorme taxa de juros do Brasil: será que os brasileiros podem suportá-la?”, de Mark Weisbrot e outros, faz comparações a esse respeito: https://goo.gl/xZWr1I (pg. 6-8).
[51] RMD, agosto de 2017, pg. 13.

Fonte:POEMA.info

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