segunda-feira, 31 de março de 2014

Lições e perspectivas da revolta

A revolta juvenil-popular de junho de 2013, sem dúvida deixará o seu lugar na história do nosso pais como uma das mais importantes jornadas do povo brasileiro na busca da sua emancipação e como nossa contribuição ao resto do mundo na construção de um novo ideário, de uma nova sociedade que substitua a atual sociedade da mercadoria , à exemplo dos movimentos recentes na Espanha, Grécia, e demais países europeus e, por que não, os movimentos da chamada Primavera Árabe .
Como se trata de um evento recente urge uma reflexão sobre suas características e os sinais de modernidade que ela possui.
Desta forma, o o artigo do professor Hamilton Garcia merece a nossa atenção pela objetividade analítica e se insere no curso das demais opiniões sobre este importante evento.
Deixamos com vocês a análise das opiniões do nosso articulista.
Boa leitura .

Lições e perspectivas da revolta
 
É cedo para tirar todas as lições da revolta juvenil-popular de junho de 2013, mas salta aos olhos seu caráter democrático, pluralista e horizontalista: o rechaço ao vandalismo como forma de manifestação, o repúdio à violência contra os partidários e a recusa às tentativas de monopolização dos protestos por grupos autoritários de variadas inspirações ideológicas são alguns dos novos elementos que ela trouxe à vida política nacional. Trata-se de uma perspectiva bastante diversa daquela vigente até o movimento dos caras pintadas (1991). Até os anos 90, as mobilizações populares encabeçadas pela vanguarda estudantil — que nos anos 60 e 70 chegaram a contagiar o operariado fabril — eram guiadas pelas verticalizadas organizações comunistas, as únicas capazes, diga-se de passagem, de furar a couraça autoritária da ditadura que impedia a organização/mobilização popular — infelizmente, tais organizações, quase sempre possuídas por certezas dogmáticas, não souberam conduzi-las pelos caminhos que levariam à redemocratização.
No impedimento de Collor, estávamos comemorando sete anos de governo civil no país, os regimes comunistas desabavam e o PT encarnava a crítica a todas as formas de autoritarismo; por isso, foi capaz de liderar a juventude nas ruas contra a captura oligárquica do Estado pelo voto popular. A mobilização vitoriosa, porém, à semelhança de 1968, encontraria a direção equívoca de uma vanguarda divorciada dos anseios populares. Diante da necessidade de sustentação do Governo interino do Vice-Presidente Itamar, os petistas tomaram o atalho da oposição a qualquer custo, não só inviabilizando suas chances eleitorais presidenciais por uma década, como esterilizando as energias jovens no sentido da defesa e do desenvolvimento da democracia por meio de campanhas golpistas contra o presidente duas vezes eleito no período seguinte. Daí por diante, crescentemente, o canal de manifestação política da juventude democrática nunca mais encontraria um partido político com o qual interagir.
Hoje, o quadro que vemos é o de radicalização deste divórcio. Com o PT envelhecido e corroído pelos seguidos escândalos de corrupção, as novas gerações se afastaram ainda mais da militância partidária, e os partidos dissidentes, surgidos antes e depois da degeneração petista, apesar da longa semeadura da revolta popular em que se empenharam, apenas em parte conseguiram atrair a força da juventude desgarrada do petismo e do pecedobismo. Dos partidos moderados de esquerda, apenas a Rede parece vocacionada para angariar simpatias naquele segmento.
Os novos movimentos sociais emergentes e sua linguagem franca contra a decrepitude do Estado e seu sistema clientelista de representação, que perverte e corrói a democracia brasileira, parecem ser o anticorpo contra a cooptação dos organismos sociais responsáveis pela pax lulista da última década. A nova geração política, ainda tateando o campo em busca de um partido para chamar de seu, inicia seu protagonismo com agências próprias ainda de caráter antipartidário. Isto, ao contrário do que pensam muitos analistas e jovens, está longe de significar a despolitização desta geração, sendo antes uma nova forma de começo em meio a um ambiente político salinizado, saturado de ideias anacrônicas e mentalidade oportunista.
As novas formas horizontais de organização — baseadas em redes virtuais — terão diante de si agora, no refluxo natural do movimento, o desafio de encarar as tarefas que os partidos não são mais capazes de executar e outras que tais organizações só poderão desempenhar em associação íntima com algum partido político coetâneo. Ao mesmo tempo que encaram o desafio do amadurecimento de suas organizações, elas lançam o desafio a todas as velhas organizações para se renovarem por meio das redes — redes essas que, no caso dos partidos oposicionistas, chegaram a se formar espontaneamente nas eleições de 2006, sem que eles tenham entendido seu potencial renovador, para além do mero instrumentalismo. Nesse processo, o novo deve se apropriar da experiência do velho, depurando-o de seus anacronismos, e o velho que ainda não envileceu deve abrir-se ao diálogo com a nova mentalidade.
Tudo indica que o exercício, como sempre, será mais difícil para aqueles já viciados ou conformados com as práticas políticas correntes, incapazes de ver nos novos atores mais do que a imagem retrospectiva das próprias ilusões juvenis de sua época. Eis aqui a razão principal para o divórcio entre o povo e os partidos que as novas gerações revelaram de maneira radical, independentemente do programa e da história: a incapacidade generalizada de aprender com a história e se renovar com a vida.
É certo que a ausência de uma perspectiva partidária, em geral, por parte dos novos movimentos facilitou a agregação autônoma dos variados grupos descontentes nas ruas, ao mesmo tempo que inibiu o ataque dos grupos dominantes que costumam reduzir toda forma de oposição à mera jogada eleitoral ou golpe das elites. Isto, aliás, denota um espírito democrático forte dessa geração, se comparada à dos anos 1960-70, quando predominava o sectarismo e a vontade de domínio de um grupo sobre o outro. Os novos movimentos sociais, nesse ponto, parecem muito mais preparados para enfrentar os velhos cacoetes da esquerda do que as velhas organizações, quase todas capturadas por facções e partidos de viés autoritário.
O protoanarquismo ensaiado por algumas lideranças, amalgamado ao romantismo antipolítico conservador mais abaixo, tende, todavia, a perder seu papel positivo se, no segundo momento, abrir seu campo de visão para o terreno amplo e intrincado da política, não apenas como conchavo parlamentar, mas também como diversidade e contradição social — este último aspecto mal revelado nas ruas. Sem reunir e organizar os recursos políticos disponíveis e necessários para as mudanças mais profundas, inclusive em termos programáticos e intelectuais, a fragmentação e a espontaneidade vão sucumbir ao jogo pesado dos políticos e das classes sociais organizadas. O fim prematuro da política, tal como historicamente preconizado pelos anarquistas, observou Yuli Martov [1], não só embotou a ação política deste segmento, como teve consequências perversas até para seus críticos, que não observaram apropriadamente o papel da democracia e da participação popular na transformação do Estado e da sociedade, propiciando, inadvertidamente, as condições necessárias para a emergência do totalitarismo no século passado [2].
Sem adentrar o campo político, portanto do Estado, com todos os apetrechos capazes de amplificar as vozes das ruas no interior da arquitetura democrática de 1988, a mudança almejada pela nova geração pode ter o mesmo fim melancólico das gerações 1970-80, que tentaram fazer política acreditando cegamente em seus partidos dogmáticos e não foram capazes de fazer seus velhos dirigentes abrirem os olhos para a nova realidade democrática do Brasil. Perseguir este objetivo exige ler criticamente a trajetória das gerações passadas, compreendendo seus limites, entendendo suas derrotas e apreendendo as dificuldades inerentes da disputa da direção de um Estado que, ao longo do século passado, ampliou fantasticamente sua capacidade de intervenção na economia e na sociedade de um modo geral.
Os perigos e as oportunidades que se prenunciam
Às vésperas do esgotamento da estratégia de compromisso da “Carta aos brasileiros” (2002), que abriu as portas para o Real II e seu enfrentamento da exclusão social com base no incremento das rendas financeiras dos pobres (devedores) em proveito dos ricos (credores) [3], é inquietante para os grupos no poder o surgimento de um movimento que, forjado no vácuo do petismo, alcança grandes proporções entre as camadas mais intelectualizadas antes mesmo que a crise econômica se estabeleça. A preocupação dos principais setores sociais beneficiários do sistema deriva do que pode vir a acontecer com seu domínio se ao descontentamento atual se juntar, num futuro próximo, a fúria dos afetados por uma crise econômica que, indiferente às esconjuras governamentais e suas alquimias, ameaça incapacitar o Estado a continuar promovendo sua legitimação à base da paz social ou, em outras palavras, de benefícios como o bolsa família (cerca de R$ 25 bilhões do orçamento público federal) e o bolsa Miami (cerca de R$ 47 bilhões de evasão de divisas), ameaçado pela depreciação cambial do Real, para não falar da potencial insustentabilidade do bolsa juros (cerca de R$ 200 bilhões do orçamento público federal), que devora recursos vitais para a qualidade de vida de milhões de famílias. Somando a este montante concretamente dispendido o pagamento do principal da dívida pública, sob a forma de nova dívida a ser paga, chegamos ao patamar de 42% do orçamento federal ou cerca de R$ 900 bilhões.
Mesmo sendo o assunto tema de poucos cartazes nas ruas, seus beneficiários diretos e indiretos não cansam de ameaçar com retrocesso econômico aqueles que apresentam propostas em prol do fim da vandalização do erário público e da desordem das políticas públicas causados pela ditadura do superávit primário, tachando de “estapafúrdia” e “próxima do ridículo” a ideia de um freio neste sangramento sem fim, que une no mesmo barco credores e governos, sejam eles de qual partido for: PMDB, PSDB ou PT.
O espectro da instabilidade política não assusta somente os grupos no poder e seus dependentes mais diretos, mas até mesmo os setores oposicionistas não beneficiários, temerosos de outro retrocesso, aquele ligado ao fim das liberdades conquistadas na dura batalha pela redemocratização — que lhes custou a vida de inúmeros companheiros — e que para eles é uma ameaça proveniente mais da esquerda do que dos rentistas, embora a esta altura seja difícil subestimar a ameaça que vem da economia.
O medo do retrocesso entre os petistas, por sua vez, é buscado em outro lugar, na tradição republicana elitista e sua capacidade de instrumentalizar as Forças Armadas em prol dos conservadores — pelo menos desde 1954. O medo do “golpe das elites” impregnou setores das novas lideranças assustadas pelas potências contraditórias liberadas nas manifestações de rua, embora este sentimento não pareça capaz de paralisá-las de todo, servindo, todavia, como um exemplo do modo como o petismo ainda consegue alguma ascendência sobre seus dissidentes.
O retrocesso que, todavia, salta aos olhos depois de junho — embora os elementos já estivessem todos bem claros antes para quem quisesse encará-los com o mínimo de honestidade intelectual — é o da silenciosa corrosão das instituições democráticas, acicatada pela derrama fiscal da conta financeira do Estado, que não só enfraquece a política pública, como ainda a entorpece pela enorme capacidade de financiamento de campanha. O fracasso oposicionista de forças diversas, como o PPS e o PSOL, em dar resposta ao vazio deixado pela agenda petista de democratização da república — vazio este mascarado pela intensa propaganda oficial, as pesquisas de opinião e vãs esperanças em torno de instrumentos de participação direta, como o Consocial —, deixou para as ruas a tarefa de enfrentá-lo, alimentando os medos atávicos que vemos florescer de todos os lados e com um vigor preocupante em seu potencial paralisante; se não das ruas, pelo menos das velhas lideranças que poderiam vir ao socorro das novas e ainda desorientadas e relativamente incapazes de direcionar sua luta no sentido da agenda construtiva (governo).
Não só os partidos oposicionistas de esquerda falharam em seus diagnósticos e terapias; também a intelectualidade jovem faltou ao encontro com as ruas. Essencialmente acadêmica e beneficiária da expansão dos gastos públicos na fase da bonança lulista, tal setor, guiado por teorias pretensamente neutras e meramente instrumentalistas ou filosofias integracionistas, enxergou na relativa resignação popular e no desligamento do mundo parlamentar, emoldurado pelo voto, uma poliarquia em franca fase de consolidação e, por isso, deixou de pensar o mundo concreto das coisas em suas contradições para dedicar-se a reforçar a mensagem ideológica progressista do petismo e de sua paz social, seguindo de perto seus mestres encastelados nas agências fomentadoras de carreiras.
Vemos agora, em meio a todas essas dificuldades e insuficiências, abrirem-se diante de nós as várias portas políticas cujas chaves pareciam sob o controle do bloco no poder. Assim, renasce o esforço teórico-analítico de desvendar a realidade em busca da solução dos problemas reais e não daqueles imaginários, derivados de ideologias hegemônicas e tendentes ao mero esforço individual pelo qualis acadêmico — que vem esgotando as potências intelectuais de seguidas gerações.
A primeira dessas portas a investigar seria a democrático-representativa, que, apesar de claramente refletida na postura exibida pela maioria dos manifestantes — não obstante os embaraços ideológicos do anarquismo e do romantismo —, tende a ser aberta de maneira tímida em função tanto dos embaraços implícitos à arquitetura dos novos movimentos, como pela fragmentação e desorientação das forças políticas e intelectuais, oposicionistas e situacionistas, capazes de dar-lhes uma boa direção.
Em particular, deve-se destacar o paradoxo de ser a porta mais coadunada com a Constituição de 1988 a de mais difícil abertura, dificuldade esta plasmada na visão dos herdeiros do comunismo democrático — que se afirmou em 1967, no interior do PCB, como antídoto à esquerda autoritária militarizada —, mais preocupados, à semelhança inversa dos petistas, com o “golpismo de esquerda” do que em interpelar as ruas na perspectiva de sua bandeira histórica do aprofundamento democrático com as ruas.
Adeptas, em tese, desta saída, as alas mais conservadoras do oposicionismo, doutrinariamente avessas à representação ativa dos cidadãos, embora não ao empreendorismo econômico, preferem pegar o desvio à direita do liberal-representativo, onde podem desfrutar do conforto de uma democracia sazonal e limitada, fingindo não entender que ela está no centro da atual crise e que tende a agravá-la, deixando de ser, portanto, uma alternativa real. A insistência desses setores em reduzir a crise ao desgoverno — certamente não de seus partidários — apenas explicita sua visão eleitoreira da política que, nas circunstâncias atuais, quando as ruas desfazem o fetiche da circulação das elites, encolhe as chances dos pescadores eleitorais de águas turvas e tende a pôr por terra as estratégias políticas em termos estritamente liberais.
Isto tudo acaba beneficiando a porta historicamente mais conhecida entre nós: a nacional-populista, que não apenas é forte em termos culturais, como tem potenciais lideranças mobilizáveis em variados espectros ideológicos. Embora historicamente de caráter socialmente democratizante e politicamente conciliador — ou seja, não necessariamente democrática em sentido político, mas certamente antípoda à tradição elitista republicana —, tal porta costuma se abrir sob o comando de lideranças carismáticas mais capazes de tirar proveito das vantagens eleitorais da desigualdade social do que propriamente de resolvê-las, inclusive usando as dificuldades das soluções para avançar sobre as instituições democráticas por vários vieses, como outrora o fizeram Quadros, Goulart e Brizola nos anos 1960.
As hesitações e insuficiências das forças postadas à frente da primeira porta criam boas perspectivas para as forças abrigadas na segunda, sendo já possível divisar, na relativa preservação da popularidade de Lula em meio à crise, um possível fio condutor para a (pseudo)solução eleitoral do impasse, ironicamente em detrimento das forças oposicionistas que reduzem tudo às urnas, com as mesmas regras que não lhes parece urgente mudar.
A última grande porta que se apresenta à mão das forças político-sociais ora em movimento era, até há pouco, tida como definitivamente fechada pelos oráculos do regime. Ocorre que de nenhuma perspectiva histórica digna do nome se pode deixar de considerá-la: a porta liberal-autoritária, com seu foco tradicional na manutenção da “ordem” e na expressão eleitoral estritamente controlada da vontade popular por meio de um sistema partidário restritivo e “responsável”. No limite, esta porta costuma se abrir quando todas as outras se fecham para os interesses fundamentais do capitalismo brasileiro. Os setores mais conservadores, da oposição e da situação, que temem o risco do retrocesso, muitas vezes, na verdade, o que fazem é anunciar, de maneira diplomática, seu engajamento no partido da ordem ao menor sinal de “descontrole popular” ou de “desordem econômica”. De certa maneira, a rebelião da base aliada do governo, depois de junho, prenuncia que o velho camaleonismo partidário começa a ganhar contornos programáticos conservadores tendentes a uma coalizão mais coerente. Mas, para que esta aposta se concretize, é necessário que Aécio ou Campos se credenciem eleitoralmente a liderá-la, visto que Serra e Marina são candidaturas mais controversas em relação ao sentido pretendido.
A viabilidade política de cada uma dessas portas, naturalmente, dependerá de forças que vão muito além daquelas envolvidas na revolta em si, e das respostas que sejam capazes de produzir em face dos desafios colocados e de novos que se insinuam – embora, como já foi assinalado, a ampliação da capacidade política dos revoltosos possa reservar a eles um protagonismo importante nesse processo. De qualquer modo, é de se esperar que, mesmo que a movimentação de rua arrefeça, diluída em reivindicações centrífugas de seus variados grupos — como seria normal esperar neste caso —, o certo é que ele deverá migrar para um estado de latência não menos ameaçador. Diante disso, é preciso explorar algumas variáveis que podem se colocar diante das portas em tela, beneficiando a abertura de umas em detrimento de outras.
Em especial, é preciso levar em conta a possibilidade da luta pelas reformas (política, judicial, legislativa, econômica, etc.) nas ruas se confrontar com os exércitos eleitorais das forças oligárquicas acantonadas por detrás dos partidos fisiológicos, a partir de um sistema eleitoral que reluta em se reformar de imediato, por motivos aqui em parte já descritos. Neste caso, o sistema eleitoral prosseguirá intacto em sua capacidade cooptadora, alimentando o real perigo de sérios enfrentamentos de rua entre as forças da mudança e o infeliz exército dos dependentes das oligarquias, que, no controle de vastos setores do Estado, não teriam por que não usar desses recursos para manter seu caminho livre ao poder. Tal enfrentamento, porém, só seria possível se a crise não afetasse a confiança dos dependentes na estabilidade do pacto oligárquico que os sustenta em diferentes níveis da escala social — caso contrário, eles poderiam se juntar aos revoltosos, não sem prejuízos éticos ao movimento de junho.
O potencial confronto entre os dois setores sugere uma luta de classes às avessas, com as classes médias autônomas, de peso amplificado pelas políticas de inclusão desde o Governo Itamar, representando a massa popular do Brasil moderno, enquanto os dependentes surgem como expressão do ciclo modernizante abortado pelo colapso do “milagre brasileiro” (1967-73), com seu lumpesinato acantonado nas franjas do sistema legal — e mesmo em seu interior — na forma de um exército de reserva de baderneiros prontos a desempenhar o papel de ponta de lança das oligarquias, e outros setores dependentes, na resistência de rua às mudanças.
Mesmo na hipótese de que a crise econômica, inibindo as engrenagens cooptativas do Estado, desarme a armadilha montada com os marginais, é de se esperar que seu engajamento no outro lado se faça sob a égide do mais desabrido vandalismo, em oposição aos sentimentos democráticos das ruas. A antevisão das classes dirigentes em relação a este perigoso contexto, para além do mero instinto de sobrevivência, está por trás do destravamento das instituições republicanas que estamos assistindo em todo os poderes do Estado e até em setores do setor privado — como se vê no congelamento dos altos juros privados mesmo em face da recomposição da taxa Selic; o que não significa que elas tenham qualquer escrúpulo em utilizar a possível desordem em proveito da alternativa autoritária já referida.
Ansiosos por manterem-se preservados da fúria popular, tanto os políticos como os rentistas atuam com doses maciças de demagogia e publicidade, num esforço de desassociação como grandes beneficiários das políticas públicas de regulamentação frouxa, quer da vida pública, quer do sistema financeiro e sua cobrança extorsiva de taxas de empréstimos automáticos aos setores populares, assim como da imensa dívida pública, cujo custo orçamentário é quase o dobro do investimento público federal (R$ 108,7 bilhões), com significativo impacto sobre a qualidade dos serviços públicos.
A agenda concreta
O desafio que está posto para todas as forças políticas a partir das manifestações de junho foi, na verdade, imposto por décadas de desvirtuamento institucional sob o beneplácito de coalizões dirigidas por elites organizadas no PMDB, PFL-DEM, PSDB e PT. Querendo ou não, é chegada a hora de encarar de frente a fatura de uma “consolidação democrática” que obstruiu os canais parlamentares e políticos (partidos) por onde deveriam fluir a representação e deixou burocratizar os novos instrumentos de participação direta, como os conselhos de direitos, relegando ainda à marginalidade as consultas populares constitucionalmente previstas sobre variados assuntos temáticos que o Parlamento não quer ou não se mostra capaz de equacionar. A agenda da re-redemocratização, inferida das ruas, pode ser, assim, resumida como a restauração da representatividade das instituições políticas e a desburocratização das novas agências participativas, ao par do desengavetamento das consultas populares e da inovação institucional em direção a uma democracia mais participativa e coetânea.
A situação de hoje, em função das largas e profundas distorções produzidas ao longo de mais de duas décadas, exige um esforço reformador quase constituinte, e, deste ponto de vista, é inequívoco o acerto das forças políticas que propuseram a Constituinte específica já. Embora se possa obstar uma série de argumentos políticos e jurídicos, isoladamente válidos, contra a proposta, jamais se pode defini-la como “mera manobra diversionista” diante da gravidade da crise. Seja por quais canais será enfrentada a questão — a constituinte teve o mérito de dar a dimensão correta, embora, talvez, sob a forma errada, ao problema que as ruas desnudaram —, o fato é que a resposta tem que ser urgente; não há tempo a perder para aqueles que querem o aperfeiçoamento e o desenvolvimento das instituições democráticas de 1988. A excessiva cautela e o medo da participação, expostos pelos partidos moderados da situação e da oposição, em conúbio, só podem ser entendidas pelos setores mais avançados da sociedade brasileira como um pacto suprapartidário contra a mudança ou por mudanças controladas desde cima. A velha fórmula da mudança lenta, gradual e segura, que está na base do modelo de dominação capitalista brasileiro com a preponderância do conservadorismo sobre o liberalismo, como nos mostraram Caio Prado Jr., Sérgio B. Holanda, Raimundo Faoro e Florestan Fernandes, entre outros, é parte do problema a superar, não da solução [4].
Os riscos que o PT, em particular, corre sustentando sua proposta de urgência em sintonia geral com as ruas — que, naturalmente, pode esconder pretensões políticas antidemocráticas oriundas de seus setores populistas e extremistas —, é o de empurrar sua base aliada conservadora em direção à oposição liberal-conservadora às vésperas de importantes definições de alianças eleitorais, risco este que embute outro de igual potência para os oposicionistas: o de serem identificados com a mesma base parlamentar responsável pela crise — o que encontra confirmação histórica no fato de que a oligarquia política da era petista não ser de natureza diversa daquela do período tucano. No momento, parece claro que a oposição liberal-conservadora aposta suas fichas na aproximação com a base governista em decomposição, sem se importar muito com os oderes que esta exala, e já proclama o fim da era Lula sem se dar conta de que é forte candidata a dividir o ônus da crise com o mesmo governo que pretende derrotar nas urnas.
A reforma política, designação genérica a um conjunto de reformas que abarca desde o sistema eleitoral até a reforma judiciária concernente à contenção dos crimes cometidos no âmbito dos Três Poderes, passando pelo sistema partidário e legislativo, deve ser encarada como um verdadeiro desafio programático que envolve todas as forças sociais, dentro e fora do Estado. Concebê-la de outra forma é não entender o transbordamento democrático das ruas e sinalizar para elas, à moda de Schumpeter [5], condescendência com o político profissional e seus protopartidos, o que patenteia escassa compreensão da natureza da crise e do verdadeiro significado da herança de 1988.
A reforma política inadiável pode ser levada a cabo combinando-se múltiplos instrumentos: comissões parlamentares abertas à participação social, projetos de lei de iniciativa popular, plebiscitos e referendos podem ser utilizados numa hierarquia de temas por critérios temporais, meritocráticos e consensuais, visando respostas de curtíssimo e curto prazo. Se a sociedade, em termos gerais, tem dificuldade em entender a reforma política em toda a sua extensão técnica, o mesmo não se pode dizer de seu sentido político geral, claramente intuído pelos manifestantes ao bradarem não contra a democracia, mas contra o funcionamento do sistema democrático, não contra o Estado, mas contra seus aparatos burocráticos, não contra seus técnicos, mas suas soluções, etc. O problema parece residir na outra ponta, onde grande parte dos dirigentes, lideranças e especialistas demonstram genuína dificuldade em compreender o sentido geral destas postulações, num preocupante sintoma, no caso dos últimos, de como o sistema universitário vem especializando seus técnicos de maneira acrítica e unilateral em nome de um mérito que reduz o conhecimento à progressão num ranking quantitativo de iniciativas formais, não raro estranhas à realidade e à natureza mesma das coisas.
Não é tarefa fácil reverter esse quadro diante da magnitude das distorções acumuladas em largos setores da vida social, do setor público ao educacional, passando pelo político, num despreparo e desvirtuamento cultural que, à luz de Sócrates (469-399 AC), não pode ser subestimado como um dos elementos básicos do amesquinhamento da nação como um todo. Também nesse ponto, é preciso se espelhar na postura majoritariamente madura e compreensiva das ruas para afastar os medos e restaurar a capacidade de fazer política em sentido real e não meramente instrumental, com a sociedade e não a despeito dela.
Assim como a luta pela redemocratização só pôde evoluir na mesma medida do engajamento social na arena política, a re-redemocratização necessita da mesma energia vital. Este é o desafio que devemos encarar por nosso compromisso democrático, que não pode ser confundido, à guisa de projetos eleitorais, nem com a aposta populista da manipulação dos pobres por meio de bolsas nem com a redução liberal da democracia às instituições esclerosadas titulares da representação – que as oligarquias consideram suas.
É justo que as oposições, moderadas ou radicais, queiram assumir os governos por meio do voto na esteira da crise política; afinal, cabe ao situacionismo, em seus 11 anos de poder na esfera nacional, parte da responsabilidade pela incompetência denunciada nas ruas. Mas não conseguirão fazê-lo ao arrepio das expectativas populares mobilizadas, sob pena de acabarem identificadas com a opressão que se quer eliminar — identificação esta que, diga-se de passagem, o PT vem fazendo com sucesso desde 2002 contra seus principais adversários, apesar de se basear nela para governar desde então —, ou, se conseguirem, correm o risco de cair vitimadas pelas mesmas alianças que fez o PT, incapaz de resolver os graves problemas nacionais, e, de quebra, agravar a dominação oligárquica à sombra de uma Constituição que eles sempre subestimaram.
A massa jovem que irrompeu nas ruas é órfã da democracia em dois sentidos: um novíssimo, representado pela corrosão ético-programática do PT nos ambientes dos podres poderes; outro, tão antigo quanto a própria República, representado pela histórica subordinação do voto das parcelas mais pobres da população à vontade das oligarquias geolocalizadas, detentoras da maquinaria estatal e do poder econômico. Às gerações mais velhas e experimentadas da luta política, estejam onde estiverem, cabe o despreendimento e o descortínio para ajudar as novas gerações a virar esta página nova e velha de nossa história, numa perspectiva democrática, ou seja, longe dos velhos cacoetes de caráter autoritário (blanquista) ou oportunista (social-democrata).
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Por Hamilton Garcia de Lima
Publicado em Gramsci e o Brasil

Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da Uenf-Darcy Ribeiro.

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Notas
[1] In P. Luquet et alii, A Comuna de Paris, Rio de Janeiro, Laemmert, 1968.
[2] A respeito da diversidade e complexidade desse processo na Rússia e na Alemanha, ver B. Moore, Injustiça – as bases sociais da obediência e da revolta, São Paulo, Brasiliense, 1987.
[3] Ricos detentores da dívida pública ingurgitada de juros e da dívida privada (cheque especial e cartão de crédito) com taxas de agiotagem chanceladas pelo BC.
[4] Respectivamente, Evolução política do Brasil (1933), Raízes do Brasil (1936), Os donos do poder (1958) e A revolução burguesa no Brasil (1975).
[5] Capitalismo, socialismo e democracia (1942)

segunda-feira, 24 de março de 2014

"Mi Amigo Hugo" (documentário) - Oliver Stone - 2014 - LegendadoPTB

 Quem foi Hugo Chávez? Por que foi tão odiado pela grande mídia? Era mesmo um "ditador" autoritário e repressor? Como era e o que pensava sua equipe? O novo documentário de Oliver Stone, "Mi Amigo Hugo" (lançado em março de 2014), oferece algumas pistas para refletirmos sobre essas e outras perguntas. Desta vez, o diretor de "Platoon", "Nascido em 4 de julho", "The Doors" e "JFK", lança uma bomba no silêncio da mídia sobre a verdadeira personalidade de um homem tão amado e odiado quanto proibido.

Produção: TeleSur (2014)
Direção: Oliver Stone

Este vídeo foi traduzido e legendado voluntariamente pelo canal OCUPA TV (um esforço que exigiu vários dias de trabalho). Pedimos que não o republiquem em outros canais, em respeito ao esforço deste canal em trazer ao público brasileiro vídeos legendados exclusivos sobre a América Latina. Por uma internet ética e justa, valorize e compartilhe somente o original.



sábado, 8 de março de 2014

NOTÍCIA 'PADRÃO LIXO'


NOTÍCIA 'PADRÃO LIXO'

O Jornal Nacional, vitrine principal do dito 'jornalismo profissional' das Organizações Globo decidiu fazer hoje um novo desafio à realidade dos fatos para 'contar ao Brasil' a versão 'oferecida pelos patrocinadores' sobre a greve dos garis do Rio.

Diferentemente daquilo que a população testemunhou nas ruas, com a 'onda laranja abolicionista' dos garis tomando o centro da cidade e sendo ovacionada pelos cariocas a 'notícia padrão lixo' da Família Marinho e seu principal telejornal optou pela narrativa da volta ao trabalho dos garis limpando a cidade, coagidos pelos PM, depois de 7 dias de greve e fez isso ainda na contramão da quase totalidade dos veículos de jornalismo digital.

A Rede Globo tenta com isso dar por sepultado o movimento grevista dos garis do Rio que conquistou amplo apoio popular e vem tocando o coração dos brasileiros. O 'jornalismo profissional' praticado por eles faz isto no mesmo dia em que a cidade do Rio de Janeiro viveu sua mais bela manifestação popular depois de junho.

Faz isto quando milhares de brasileiros pobres e negros ousam desafiar o sindicato pelego da categoria, o prefeito autoritário da cidade, a máquina policialesca do Estado e seguir em sua luta justa por direitos e melhores condições de vida, à revelia inclusive da própria Globo. Só um jornalismo cúmplice da elite escravocrata do Brasil, profundamente atrelado aos interesses dos poderes estabelecidos é capaz de se prestar a tamanho desserviço social e negar a própria função social da notícia no capitalismo da informação.

Todos sabemos da imensa parcela de responsabilidade que a 'TV da Ditadura' tem sobre as enormes mazelas sociais ainda latentes em nossa sociedade. Depois da massificação das redes sociais e com a realidade política que emergiu no Brasil pós-junho, insistir na manipulação vergonhosa da narrativa não sepultará a luta popular mas sim qualquer resquício de utilidade pública que possa ostentar o maior conglomerado de comunicação do país e ainda acabar convencendo o Brasil inteiro que os jornalistas e editores que se prestam a este papel não merecem sequer o salário vergonhoso dos garis.

O povo não é bobo, os garis moram no coração da cidade e só a Globo finge não saber disso. Não há governo, PM, TV nem FIFA capaz de interromper a luta do povo do Brasil por DIREITOS.

quarta-feira, 5 de março de 2014

O carnaval como máscara e fantasia

Três coisas bem associadas: carnaval, máscara e fantasia. Na atual configuração sociocultural as três coisas me parece ainda mais inseparáveis. Mais que casadinho e queijo com goiabada.



 

A palavra máscara, tem duas origens. Vem do Latim “mascus” que significa fantasma; e do árabe “maskharah” que significa palhaço ou homem disfarçado. Já a palavra carnaval possivelmente vem do latim clássico “Carnen Leváre”, substantivo que significa "abstenção de carne". Seria uma alusão ao fato de que no carnaval seria os últimos dias para comer carne antes da quaresma, ou talvez significando a “despedida do corpo”, sendo os dias separados para satisfazer as necessidades carnais antes do período religioso. Fantasia tem sua origem do verbo Grego “Phaínein”, que significa “fazer aparecer”. É por meio da fantasia que faz-se notado. 
A máscara está associada a representação de um personagem criado para entretenimento. É justamente nesta festa que as máscaras são muito usadas. Um dos mais renomados antropólogos brasileiros, Roberto DaMatta, afirmou que é no carnaval que surge a possibilidade de grupos e classes sociais distintas se encontrarem, constituindo-se uma festa para todos; “(..) um cenário e uma atmosfera social onde tudo pode ser trocado de lugar (...)”. É nesse período que um gari pode usar máscaras. Representar aquilo que ele de fato gostaria de ser, são sabendo que é um mascarado, ou, em árabe, um palhaço que faz uns poucos rirem; rirem de sua ilusão. Época de mascarar seu fracasso, na maioria das vezes imposto sobre ele por nosso país do carnaval. É também nesse período, como em muitas outras oportunidades, que o poder público marcara a realidade sob as máscaras tradicionais do pão e circo.
No carnaval todos podem usar suas fantasias. O mais excluído e fraco indivíduo pode se fantasiar de rei, de empresário, de jogador de futebol bem sucedido e o que mais desejar em seus sonhos adquiridos em noites de insônia. Dizia DaMatta, que “[...] por tudo isso, o carnaval é a possibilidade utópica de mudar de lugar, de trocar de posição na estrutura social”. É de fato o momento da fantasia. De tirá-la do armário e do baú do pensamento e trazer para a rua, como se tudo fosse possível. Fantasias e mais fantasias... pena que só fantasias. Fantasias confeccionada pela ideologia do carnaval; a festa da carne que se consome antes do dia santo chegar... antes do indivíduo partir para os braços do seu Criador. Até lá, a carne vai sendo consumida nas brasas do descaso público, no que chamam de inferno presente... amanhã, quem sabe não é dia santo?
Em meio ao entretenimento carnavalesco, os foliões vão usando suas máscaras e fantasias, dando formato a maior festa brasileira de representação da realidade fantasiosa... Ali, carnaval, máscara e fantasia são mais inseparáveis que casadinho e queijo com goiabada.
Por Cristiano Bodart
• Texto originalmente escrito para o Jornal Hora Aghá. 10 de Fev. de 2013.

terça-feira, 4 de março de 2014

Caio Prado Junior - formação social brasileira e relações de classe

Para quem busca ler os textos de Caio Prado Junior ou até aos que já
tenha realizado a leitura deles o vídeo abaixo é uma boa aula para
esclarecer alguns pontos sobre o pensamento desse grande pensador
brasileiro.



segunda-feira, 3 de março de 2014

The Square (A praça) - Legendado pt-br

Uma revolução não tem um roteiro prefixado ! Ela acontece em um ritmo desordenado, de avanços, recuos, movimentos acelerados e mesmo períodos de total imobilidade . E por isto, é no próprio processo revolucionário que seus integrantes vão amadurecendo e dominando a sua própria complexidade.
Em momentos em que o povo brasileiro , ainda que timidamente se põem em movimento, nada como olhar a experiência do movimento revolucionário de outros povos . E nesse sentido olhar para o processo revolucionário em curso no Egito nos faz pensar sobre os nossos próprios caminhos .
O filme The Square ( A Praça ) é resultado da atuação política da diretora Jehane Noujaim que foi criada nas cercanias da praça que inspirou o título do documentário, a Tahrir, no centro do Cairo. Embora fazendo carreira no exterior , quando tiveram início as manifestações contra Hosni Mubarak, ela voltou para o Cairo e começou a rodar o documentário .Nas ocupações da Tahrir, que persistiram 18 dias, até o ditador ser afastado, Noujaim conheceu a equipe com a qual iria trabalhar e também os personagens do filme que inclusive está concorrendo ao Oscar de 2014.
                                                              

Um mundo em crise

Fim do Jogo
Um artigo de Claus Peter Ortlieb*

Após ler o texto assista ao premiado documentário : Trabalho Interno , que disseca a última crise global do capitalismo.

Por que é que a desvalorização geral do dinheiro é apenas uma questão de tempo

“É precisamente a recorrência das crises a intervalos regulares, apesar de todas as advertências do passado, que exclui a ideia de que as suas causas profundas se poderiam encontrar na desonestidade de alguns indivíduos. Se, ao fim de um determinado período de comércio, a especulação parece ser o precursor imediato do colapso, não deve ser esquecido que esta mesma especulação nasceu nas fases anteriores deste período, do qual representa um resultado, uma manifestação, não a causa principal ou a essência. Os economistas que pretendem explicar pela especulação as convulsões periódicas da indústria e do comércio fazem lembrar a escola, entretanto desaparecida, dos filósofos da natureza que consideravam a febre como a verdadeira causa de todas as doenças.”

Karl Marx, A Crise do Comércio na Inglaterra, 1857, MEW 12, p. 336
130 anos depois de Marx, parece que a grande maioria dos economistas ainda considera “a febre como a verdadeira causa de todas as doenças.” Segundo eles a crise em que hoje continuamos imersos teria começado em 2008 com o crash financeiro que se seguiu à falência do Lehman Brothers. A causa seria, portanto, uma crise do sistema bancário, cujos títulos em grande parte perderam o valor praticamente do dia para a noite. A fim de evitar o colapso total do sistema financeiro, os Estados tiveram de vir resgatar os bancos com dinheiro dos contribuintes. O estouro das bolhas especulativas também deu origem a uma grave recessão na economia real. Para fazer face a ela foram postas em prática em todo o mundo pacotes públicos de estímulo à conjuntura económica, num total de cerca de três biliões de dólares só em 2009, o que permitiu evitar uma depressão comparável à dos anos de 1930 – excepto, infelizmente, nos países do sul da Europa.
Desde então, estamos confrontados com uma “crise da dívida pública” no contexto dum abrandamento continuado da economia e agrava-se a disputa entre “neoliberais” e “keynesianos” sobre o que fazer nesta situação. Enquanto a doutrina dominante radicalmente orientada para o mercado, ignorando a história da crise mesmo a posterior a 2008, considera que “temos vivido acima das nossas possibilidades” e que agora temos de combater a dívida pública inspirados no modelo microeconómico da “dona de casa da Suábia” – os macroeconomistas keynesianos, por sua vez, referem-se ao prémio Nobel Paul Krugman apontando para as suas obras: “É na fase de expansão e não na fase de desaceleração que deve ser aplicada a austeridade. Hoje, o Estado deve gastar mais, e não menos, até que o sector privado seja capaz suportar a retoma da economia.”
Pontos comuns entre adversários
Neste caso os adversários talvez tenham mais em comum do que gostariam. É que eles, tanto num campo como no outro – ao contrário de Marx – não têm qualquer conceito de crise sistémica e consideram sempre os inegáveis fenómenos de crise devidos unicamente à má conduta de alguns agentes económicos, pelo que a saída da crise seria apenas uma questão de tempo e de escolha dos meios adequados.
Nos manuais de economia política típicos da economia neoclássica a palavra “crise” geralmente não se encontra. A crise não pode acontecer, pois de acordo com esta doutrina, à parte distúrbios transitórios, os mercados estão sempre e em toda parte em equilíbrio, ou seja, oferta e procura combinam perfeitamente, e se por acaso os factos empíricos não o confirmam isso só poderá vir de influências externas ao mercado, as quais, portanto, precisam de ser eliminadas, o que justifica a política de austeridade para restaurar a “competitividade”.
O keynesianismo, por sua vez, conhece a situação de crise e define-a, como Keynes constatou para os anos de 1930, em termos de “estado de actividade cronicamente inferior ao normal, que se estende por um período de tempo considerável sem uma tendência marcada para a retoma ou para o completo colapso”. Pois “graças às análises de cientistas da economia desse tempo, como Keynes, e a uma ampla gama de pesquisas e estudos posteriores, sabemos hoje exactamente o que teria de ser feito então pelos decisores políticos. Essas análises dizem-nos exactamente o que devemos fazer para combater o mal que estamos sofrendo”. Como se vê, também para Paul Krugman só existe um estado de crise permanente quando os políticos não fazem o que deveriam fazer, ou não fazem mesmo nada, e isso é precisamente o principal das críticas de seu livro Um basta à depressão econômica! [original: End This Depression Now!, 2012] dirigidas aos políticos, particularmente aos políticos alemães. Note-se também que a justificação das medidas keynesianas quase se pode dispensar de qualquer determinação prévia das causas da crise. As crises aparecem como meros acidentes que podem atacar de vez em quando a actividade económica, mas que nós sabemos como enfrentar.
Se falta a todos estes economistas o conceito de crise sistémica, isso decorre da sua má compreensão do significado e propósito das economias capitalistas, equívoco encontrado no preâmbulo de quase todos os manuais de economia política. Neles, aliás, não se fala de capitalismo, mas argumenta-se que desde a Idade da Pedra até ao presente a economia sempre visou o abastecimento e consumo de bens que, infelizmente, se tornam agora cada vez mais escassos, razão pela qual nem todos podem ter tudo o que queriam. Ora hoje qualquer criança sabe que não são os bens que faltam, mas sim o dinheiro para os comprar, e que o objetivo de qualquer economia capitalista é apenas fazer do dinheiro mais dinheiro, enquanto a satisfação das necessidades é, no máximo, um efeito secundário, certamente bem-vindo, mas nem sempre viável. Apenas os economistas não sabem isto. Neste sentido, podemos considerar o ensino da economia política como um esforço para erradicar sistematicamente das cabeças dos alunos este conhecimento que já fez suspirar tantos empresários, os quais fariam melhor em ler Marx que pelo menos percebeu como o capitalismo funciona.
O conceito de crise sistémica em Marx
É, sem dúvida, apanágio da crítica da economia política de Marx ter destacado o facto de que o capitalismo é um modo de produção com duas formas de riqueza: além da riqueza material concreta, que tinha sido conhecida por todas as formações sociais, o capitalismo tem uma segunda forma de riqueza, que Marx chamou “valor”, uma forma abstracta e dominante de riqueza expressa em dinheiro e medida pelo tempo de trabalho. A valorização do capital visa aumentar essa riqueza abstracta, sendo indiferente se produz bombas ou sapatos para crianças. Não pode, no entanto, prescindir completamente da produção de riqueza material, embora esta seja um efeito secundário e não o objectivo da operação, que é apenas a produção de mais-valia. A economia política antes e depois de Marx identificou simplesmente estas duas formas de riqueza como “riqueza em si”, falhando assim a especificidade histórica do modo de produção capitalista. Particularmente as crises associadas a este modo de produção tiveram de permanecer um enigma para ela.
O conceito de crise sistémica desenvolvido por Marx em síntese baseia-se na ideia de que as duas formas de riqueza capitalista podem entrar em conflito uma com a outra, e que esta contradição não apenas se repete, mas também aumenta cada vez mais. Como a multiplicação de riqueza abstracta exige a produção e venda de riqueza material, valorizar e acumular capital com sucesso exige a constante expansão da produção material e dos mercados. Uma vez que para a oferta de mercadorias crescente e em princípio ilimitada só pode haver uma procura solvente limitada, o processo de valorização entra em crise. Isso resulta em excesso de produção, ou seja, mercadorias não vendáveis, e excesso de acumulação, ou seja, capacidade de produção não plenamente utilizável, despedimentos em massa, fecho de empresas e, finalmente, a fuga para a especulação do capital já insusceptível de valorização real.
A recorrência de tais crises na história do capitalismo não constitui um eterno retorno do mesmo, pelo contrário, as duas formas de riqueza continuam a divergir cada vez mais uma da outra com o aumento de produtividade, um fenómeno que Marx chamou “contradição em processo”: “o próprio capital é a contradição em processo, na medida em que se esforça por reduzir o tempo de trabalho ao mínimo, enquanto, por outro lado, coloca o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza.” (Grundrisse, MEW 42, p. 601) O capital baseia-se na exploração do trabalho, mas ao mesmo tempo expulsa gradualmente o trabalho do processo de produção, destruindo assim a sua própria base. Como o tempo de trabalho é a medida de valor, o aumento da produtividade significa que a obtenção da mesma riqueza abstracta requer a produção e venda de quantidades cada vez maiores de output material. É por isso que as crises se agravam e se prolongam cada vez mais no tempo e no espaço: “A produção capitalista tende a ultrapassar constantemente os limites que lhe são imanentes, mas só o consegue com meios que voltam a impor-lhe esses limites numa escala nova e maior. O verdadeiro limite da produção capitalista é o próprio capital.” (Karl Marx: Das Kapital, liv. 3, MEW 25, p. 260)
As causas de longo prazo da crise
A última vez que o capital foi capaz de cumprir com a obrigação de expansão em grande escala que resulta da desmedida da riqueza abstracta foi após a Segunda Guerra Mundial, durante o boom fordista, a “idade de ouro do capitalismo” (Eric J. Hobsbawm) e também do keynesianismo. O fordismo baseava-se no trabalho industrial em massa em linha de montagem e no consumo em massa, e pressupunha o correspondente aumento dos salários reais e a construção de sistemas de segurança social, bem como o investimento do Estado em infra-estruturas e no sistema de ensino. Nesta fase de expansão, as flutuações cíclicas podiam efectivamente ser compensadas por programas públicos de estímulo à conjuntura económica (“controle macroeconómico” e “acção concertada”, no caso da Alemanha) e é deste período que as receitas defendidas pelos manuais keynesianos derivam a sua justificação.
Esse tempo acabou. Já na década de 1970, o boom fordista – também devido ao aumento da produtividade – atingiu os seus limites, contra os quais a política económica keynesiana se mostrou impotente. Seguiu-se uma fase de “estagflação”: os programas públicos de estímulo à conjuntura económica já não eram capazes de estimular a acumulação de capital auto-sustentável e tiveram por resultado taxas de inflação por vezes de dois dígitos. Aqueles que, como Krugman, defendem a retomada de tais programas para sair da crise seria melhor que meditassem em primeiro lugar sobre o fracasso do keynesianismo dessa época. Pois é aí que está a origem da actual crise e não em 2008.
O neoliberalismo foi a resposta a esse fracasso, uma reação à crise da economia real para permitir a continuação da obtenção de lucros, embora a base capitalista séria para fazê-lo começasse a contrair-se. Um dos seus componentes foi a desregulação do sector financeiro, ampliando assim as possibilidades de criação de dinheiro através do crédito. É próprio dos planos de saída da crise que, na ausência de oportunidades de investimento reais, os lucros já realizados fluam para os mercados financeiros, alimentando assim a especulação. Mas o neoliberalismo elevou a programa este movimento de esquiva e adiamento temporário da crise e criou a ilusão de que “o capitalismo dirigido pelas finanças” seria o novo modo de regulação. A autonomização do capital financeiro foi sempre um sintoma de crises capitalistas, mas certamente que não a sua causa. A particularidade da actual crise, que já dura há quase 40 anos, é a extensão espacial e temporal do processo. A desindustrialização de países inteiros em benefício da nova “indústria” financeira, por exemplo, a Grã-Bretanha sob Margaret Thatcher, não tem precedentes na história.
Deste ponto de vista, e contra a sua própria doutrina monetarista, o neoliberalismo não era outra coisa senão a continuação do keynesianismo por outros meios, nomeadamente no sector privado. No lugar dos Estados entraram os credores privados, financiando com empréstimos também a economia real e permitindo-lhe continuar a operar. Simultaneamente a transferência de enormes quantidades de dinheiro do consumo de massas para o sector financeiro fez desaparecer a inflação, ou, mais precisamente, ela deslocou-se dos mercados de bens de consumo para os mercados de acções e de imóveis (asset inflation), um efeito que veio mesmo a calhar, pois os proprietários dos respectivos títulos de propriedade puderam assim considerar-se ricos.
É claro que “o mais gigantesco programa de estímulo à conjuntura económica financiado a crédito jamais visto” (Meinhard Miegel) assim posto em movimento, que consiste em última análise em saldar dívidas com novas dívidas, é tão difícil de sustentar a prazo como é difícil os esquemas de vendas em pirâmide criarem riqueza. Em resultado disso, ao longo das últimas três décadas vimos o montante global da riqueza em dinheiro e em títulos magicamente multiplicado por vinte, mas sem que lhe corresponda nenhum valor real. Bastou o estouro de uma pequena parte destas bolhas em 2008 para empurrar o sistema bancário para a beira do colapso, do qual só foi salvo pela intervenção dos Estados, que desde então têm de enfrentar a crise da dívida pública e uma recessão mais ou menos grave.
Andar às aranhas com os efeitos da crise
Por causa das quantidades de dinheiro que se acumularam numa dimensão inimaginável e que continuam a crescer com a política de taxa de juro zero dos bancos centrais, a desvalorização geral do dinheiro é apenas uma questão de tempo. O argumento usual dos keynesianos, apontando que é óbvio que uma grande quantidade de dinheiro não conduz necessariamente à inflação, não deixará de se revelar enganador. O risco de inflação, de facto, só está afastado enquanto o dinheiro circula de modo auto-suficiente no céu financeiro. Mas logo que ele se volta para as coisas deste mundo a inflação é alimentada. É o que se pode verificar já nos últimos tempos nos mercados de matérias-primas e bens alimentares, bem como mercados imobiliários e de habitação em vários países, com o que as rendas nas principais cidades alemãs se tornaram inacessíveis para muitos.
As medidas propostas para fazer face a esta situação, supondo que elas realmente foram projectadas para nos fazer sair da crise, parecem estranhamente irreais. Neoliberais ou keynesianos, todos se recusam a ver que desde há quase quarenta anos a economia real só tem sido mantida a funcionar através do endividamento. Uma política de austeridade que pretenda pôr fim a isto leva inevitavelmente à depressão. Por outro lado, os programas keynesianos de estímulo à conjuntura económica limitam-se a prosseguir ad infinitum esta política de endividamento, porque o sector privado nunca mais estará em posição de servir de suporte à retoma.
Durante os últimos quarenta anos de crise, a produtividade na Alemanha (valor acrescentado bruto por hora de trabalho, de acordo com os dados do Serviço de Estatística alemão) viu-se multiplicada por três na indústria e por seis na agricultura. O trabalho torna-se cada vez mais desnecessário para produzir riqueza material, mas assim a produção de mais-valia real, baseada na exploração do trabalho, torna-se cada vez mais impossível. A incapacidade de o modo de produção capitalista considerar a possibilidade aqui surgida de uma vida sem trabalho revela-se, entre outras coisas, no facto de que, por amor de uma “competitividade” ilusória, se pretende agora abolir a siesta nos países do sul da Europa, devendo assim ser finalmente introduzida a ética protestante do trabalho.
A saída da crise já só é possível na via da abolição da forma abstracta de riqueza e com ela do modo de produção capitalista, que terá de ser substituído por uma orientação social unicamente em função da riqueza material, seja essa orientação como for. Enquanto tal perspectiva permanecer irrealista, enquanto parecer que temos de escolher realmente entre a austeridade e os planos de estímulo keynesianos, estes são obviamente preferíveis. A política de austeridade neoliberal leva a sacrificar à conservação de um sistema insustentável um número cada vez maior de seres humanos que não contam para o sistema por se terem tornado supérfluos para a valorização do capital. É certo que os programas keynesianos também têm o objectivo ilusório da salvação do sistema, mas fazem isso de modo mais tolerável, na medida em que não perdem completamente de vista o aspecto da produção de riqueza material.
Estes programas deviam ser desde já um pouco mais inteligentes do que até aqui: como os últimos 40 anos foram passados a gastar as infra-estruturas públicas, poderia ser útil gastar na sua recuperação o dinheiro que resta, bem como reactivar os sistemas de segurança social suspensos. Em qualquer caso, por favor, não mais “subsídios para abate de automóveis”, porque também ainda há a crise ecológica. Mas isso fica para outra ocasião.
*Original ENDE DES SPIELS. Warum eine allgemeine Geldentwertung nur eine Frage der Zeit ist in http://www.exit-online.org. Publicado em KONKRET, 8/2013
http://obeco.planetaclix.pt/
http://www.exit-online.org/

Sinopse
O documentário está dividido em cinco partes. Ele começa examinando como a Islândia estava altamente desregulada em 2000 e a privatização de seus bancos. Quando o Lehman Brothers foi à bancarrota e o AIG entrou em colapso, a Islândia e o resto do mundo entraram em uma recessão global.
Parte I: Como chegamos aqui
A indústria financeira americana estava regulada de 1940 a 1980, seguida de um longo período de desregulação. No fim da década de 1980, a crise de empréstimo e da economia custou aos contribuintes cerca de 124 bilhões de dólares. Nos final da década de 1990, o setor financeiro se consolidou em algumas firmas gigantes. Em 2001, a bolha pontocom explodiu porque os bancos de investimento promoveram companhias de Internet e elas faliriam, resultando em 5000 bilhões de dólares em perdas de investidores. Nos anos 90, os derivativos se tornaram populares na indústria e aumentaram a instabilidade. Esforços em regular derivativos foram contrariados pelo Commodity Futures Modernization Act of 2000, apoiado por vários funcionários-chave. Nos anos 2000, a indústria foi dominada por cinco bancos de investimento: (o Goldman Sachs, o Morgan Stanley, o Lehman Brothers, o Merrill Lynch e o Bear Stearns), dois conglomerados financeiros (o Citigroup, o JPMorgan Chase), três companhias de seguro securitizadas (AIG, MBIA, AMBAC) e as as três agências de classificação de risco de crédito: (Moody’s, Standard & Poors e Fitch).
Os bancos de investimento empacotaram hipotecas com outros empréstimos e débitos em obrigações de dívida colateralizada (CDOs), que eles venderam aos investidores. As agências de classificação deram a muitos CDOs classificações AAA. Os empréstimos subprime levaram ao empréstimo predatório. A muitos proprietários de residência foram dados empréstimos que eles nunca poderiam saldar.
Parte II: A Bolha (2001-2007)
Durante o boom da habitação, a proporção de dinheiro pedida emprestada por um banco de investimento versus os próprios ativos do banco alcançaram níveis sem precedentes. A permuta padrão de créditos (CDS), era aparentada à uma política securitária. Os especuladores poderiam comprar CDSs para apostar contra CDOs que não possuíam. Numerosos CDOs foram apoiados por hipotecas subprime. O Goldman-Sachs vende mais do que valem os 3000 milhões de dólares de CDOs na primeira metade de 2006. O Goldman também apostou contra os CDOs de baixo valor, dizendo aos investidores que eram de alta qualidade. As três maiores agências de classificação contribuíram para o problema. Os instrumentos de classificação subiram direto de um mero punhado em 2000 para mais que 4.000 em 2006.
Parte III: A Crise
O mercado para CDOs colapsou e bancos de investimento foram deixados com centenas de milhares de milhões de dólares em empréstimos, os CDOs e o estado real que eles não poderiam se desfazer. A Grande Recessão começou em novembro de 2007 e em março de 2008 o Bear Stearns ficou sem dinheiro em espécie. Em setembro, o governo federal assumiu o Fannie Mae e o Freddie Mac, que tinham estado à beira do colapso. Dois dias mais tarde, o Lehman Brothers colapsou. Todas estas entidades tinham classificações AA ou AAA dias antes de serem socorridas. Merrill Lynch, na extremidade do colapso, foi adquirido pelo Bank of America. Henry Paulson e Timothy Geithner decidiram que o Lehman deveria entrar em falência, o que resultou em um colapso do mercado de notas promissórias. Em 17 de setembro, o insolvente AIG foi assumido pelo governo. No dia seguinte, Paulson e o presidente do Fed, Ben Bernanke, pediram ao Congresso US$ 700 bilhões para socorrer os bancos. O sistema financeiro global se tornou paralisado. Em 3 de outubro de 2008, o presidente Bush assinou o Troubled Asset Relief Program, mas os mercados de ações globais continuaram a despencar. Demissões e embargos continuaram com o desemprego crescendo a 10% nos EUA e na União Europeia. Por volta de dezembro de 2008, a GM e a Chrysler também enfrentaram a falência. Os embargos nos EUA atingiram níveis sem precedentes.
Parte IV: Responsabilidade
Os altos executivos das companhias insolventes se afastaram com suas fortunas pessoais intactas. Os executivos tinham escolhido a dedo seu quadro de diretores, que entregava bilhões em bônus após o socorro do governo. Os maiores bancos cresceram em força e duplicaram os esforços anti-reforma. Os economistas acadêmicos tinham defendido por décadas a desregulação e ajudaram a moldar a política dos EUA. Eles ainda se opuseram à reforma depois da crise de 2008. Algumas das firmas de consultoria envolvidas foram a Analysis Group, a Charles River Associates, a Compass Lexecon, e o Grupo Consultivo de Economia e Direito (LECG). Muitos destes economistas tinham conflitos de interesse, coletando dinheiro como consultores de companhias e de outros grupos envolvidos na crise financeira.
Parte V: Onde estamos agora
Dezenas de milhares de trabalhadores de fábrica dos EUA estão demitidos. As novas reformas financeiras da administração Obama foram fracas e não havia nenhuma regulação importante sobre as práticas de agências de classificação, lobistas e compensação executiva. Geithner se tornou Secretário do Tesouro. Feldstein, Tyson e Summers também foram altos conselheiros econômicos de Obama. Bernanke foi reconduzido à presidência do Fed. As nações europeias impuseram regras limitantes na compensação bancária, mas os EUA resistiram a estas.


                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           

sábado, 1 de março de 2014

Documentário Black Block (2011)

Selecionado para o Festival de Veneza de 2011, o documentário Black Block é um conjunto de relatos de ativistas que foram espancados e torturados na Escola Diaz pela polícia em Gênova, durante o encontro do G8 em 2001.
O Filme mostra o que ocorre quando há interesse que o Estado Republicano seja temporariamente substituído pela repressão simples e pura. A ação inconstitucional da polícia italiana, serviria como um recado para os 300 mil manifestantes que ousaram enfrentar o poder dos 8 países mais poderosos do mundo. Mas o tiro saiu pela culatra. Diferentemente do que ocorre no Brasil, houve um julgamento sobre a ação policial que culminou na condenação de policiais e indenização milionária  para os ativistas. 
A repressão é parte constitutiva da democracia, sistema de autoridade que necessita de legitimidade e consenso, mas também de controle e redefinição dos limites em que se pode ser um "cidadão livre".
Muitas vezes se torna necessário tornar o inimigo inofensivo para enfrentá-lo. O encontro do G8 em Gênova em 2001 demonstrou isso da maneira mais feroz.

Através dos depoimentos de Lena e Niels (Hamburgo), Chabi (Zaragoza), Mina (Paris), Dan (Londres), Michael (Nice) e Muli (Berlim) o filme pretende contar a história a partir do testemunho dos que viveram a violência do massacre policial na escola Diaz e a tortura posterior no Quartel de Bolazaneto.

Da narrativa coletiva dos protagonistas surge a historia de Muli.
Muli revela os motivos pelos quais decidiu se envolver na política, sua participação nas manifestações em Gênova, a violência que sofreu, e a escolha de retornar a cidade para testemunhar no processo, enfrentando o trauma sofrido para transformá-lo em uma oportunidade para encontrar uma redenção moral. Através de sua experiência amadurece um novo caminho político, recupera sua vontade de confrontar e se reunir e, sobretudo, redescobre outra Gênova.

Escolarizando o Mundo - Completo Legendado

 (EUA, Índia, 2010, 65 min. – Direção: Carol Black) 
O filme examina o pressuposto escondido da superioridade cultural por trás dos projetos de ajuda educacionais, que, no discurso, procuram ajudar crianças a “escapar” para uma vida “melhor”.
Aponta a falha da educação institucional em cumprir a promessa de retirar as pessoas da pobreza — tanto nos Estados Unidos quanto no chamado mundo “em desenvolvimento”.
E questiona nossas definições de riqueza e pobreza — e de conhecimento e ignorância — quando desmascara o papel das escolas na destruição do conhecimento tradicional sustentável agroecológico, no rompimento das famílias e comunidades, e na desvalorização das tradições espirituais ancestrais.
Finalmente, ESCOLARIZANDO O MUNDO faz um chamado por um “diálogo profundo” entre as culturas, sugerindo que nós temos, ao menos, tanto a aprender quanto a ensinar, e que essas sociedades sustentáveis ancestrais podem ser portadoras do conhecimento que é vital para nossa própria sobrevivência no próximo milênio.

Valério Arcary: O marxismo e a natureza humana (parte 1 2 3)

O marxismo e a natureza humana (parte 1)


Valério Arcary
” Se se entende que toda transgressão contra a propriedade, sem entrar em distinções, é um roubo, não será um roubo toda a propriedade privada? Acaso minha propriedade privada não exclui a todo terceiro desta propriedade? Não lesiono com isso, portanto, seu direito de propriedade?” (Karl Marx, Os debates na Dieta Renana sobre as leis castigando os roubos de lenha.)
O argumento que defende a justiça da propriedade privada foi sempre a pedra angular do liberalismo. Se o direito à propriedade privada fosse ameaçado, argumentaram os liberais, a liberdade seria destruída. Se a possibilidade de acumulação ilimitada de capital fosse reduzida, ou o direito de herança condicionado, as restrições à busca do enriquecimento teriam conseqüências catastróficas: o crescimento econômico seria sacrificado, a inovação tecnológica inibida e o espírito de iniciativa amputado. A sociedade estaria condenada ao atraso, à estagnação e até à preguiça.
Depois da restauração capitalista na Rússia e no Leste Europeu, inventaram-se eufemismos para garantir dignidade a valores desmoralizados diante da sociedade na etapa histórica anterior pela experiência social. Depois da derrota do nazi-fascismo a idéia da solidariedade humana tinha estabelecido raízes sólidas na maioria das sociedades urbanizadas. Para desqualificar os princípios mais elementares de justiça e solidariedade, a ganância foi validada como ambição legítima. A cobiça foi promovida a aspiração de aquisitividade. A rivalidade ganhou ares respeitosos como competição pela eficiência. E a ostentação foi reconhecida como exibição da prosperidade.
O homem como lobo do homem
Remetendo as formas econômicas da organização social contemporânea às características de uma natureza humana invariável – o homem como lobo do homem –, o liberalismo fundamentava a justificação do capitalismo na desigualdade natural. A rivalidade entre os homens e a disputa pela riqueza seriam um destino incontornável. Um impulso egoísta ou uma atitude comodista, uma ambição insaciável ou uma avareza incorrigível definiriam a nossa condição. Eis o fatalismo: o individualismo seria, finalmente, a essência da natureza humana. E a organização política e social deveria se adequar à imperfeição humana. E resignar-se.
Uma humanidade dominada pela mesquinhez, pela ferocidade, ou pelo medo precisaria de uma ordem política disciplinada, portanto, repressiva, que organizasse os limites de suas lutas internas como uma forma de “redução de danos”.
Resumindo e sendo brutal: o direito ao enriquecimento seria a recompensa dos mais empreendedores, ou mais corajosos, ou mais capazes e seus herdeiros. A propriedade privada não seria a causa da desigualdade, mas uma conseqüência da desigualdade natural. É porque são muito variadas as habilidades e disposições que distinguem os homens que, segundo os defensores de uma natureza humana rígida e inflexível, existe a propriedade privada, e não o inverso. A diversidade entre os indivíduos, inata ou adquirida, seria o fundamento da desigualdade social. Em consequência, o capitalismo seria o horizonte histórico possível e o limite do desejável. Porque com o capitalismo, em princípio, qualquer um poderia disputar o direito ao enriquecimento. Os liberais sempre se apressaram em admitir que nem todos o conseguirão, por certo, para mascarar sua defesa com um tempero de realidade.
Esses argumentos não têm, no entanto, o mais mínimo fundamento científico. Em oposição à visão de uma natureza humana inflexível, o marxismo nunca defendeu a visão simétrica e ingênua de uma humanidade generosa e solidária. Nem fundamentou a necessidade da igualdade social em uma suposta igualdade natural. O que o marxismo afirmou é que a natureza humana tem dimensão histórica e, portanto, se transforma. O que o marxismo preservou foi a idéia de que a diversidade de capacidades não permite explicar a desigualdade social que nos divide. É a exploração de uns pelos outros a causa da desigualdade, e não o contrário.
O capitalismo não é meritocrático
A injustiça do mundo que nos cerca não repousa em critérios meritocráticos. A diferença de talentos e a variedade de capacidades não têm relação direta com o lugar que cada ser humano ocupa nas sociedades estratificadas em classes. Não há nenhum mérito em nascer em uma família burguesa, proletária ou de classe média. Não há nenhum valor em nascer na Nigéria ou na Noruega, na Grécia ou na Alemanha.
Na sociedade contemporânea, a condição de classe é determinada pelo direito de herança, na mesma proporção em que em outras épocas era garantida pelo berço familiar. Pior, na maior parte do mundo, as oportunidades de ascensão social ou permaneceram estagnadas ou vieram diminuindo no último quarto de século. A geração mais jovem desconfia que não irá melhorar suas condições de vida, comparativamente, às de seus pais.
A mobilidade social foi reduzida, tanto no centro como na periferia do capitalismo. As possibilidades de melhorar de vida pelo talento ou pelo esforço vieram sendo reduzidas. A inteligência ou a perseverança, a criatividade ou a audácia são aptidões que podem ser encontradas em todas as classes. Porém, a ironia é que será encontrada, com maior freqüência, entre os trabalhadores.
Estas qualidades serão descobertas em maior número entre os filhos do trabalho manual pela mesma razão que entre eles se encontrarão, também, a maioria dos que têm gripe, a maioria dos estrábicos ou a maioria dos que têm nariz grande: porque são as maiorias. A desigualdade do mundo que nos cerca não é nem justa, nem racional. Sua explicação, para os socialistas, é o capitalismo. Ser socialista é ser um inimigo irreconciliável do direito ilimitado à propriedade privada.
A causa mais elevada do tempo que nos coube viver
O interesse pelo tema da natureza humana ressurgiu nos primeiros anos do século XXI provocado por novas linhas investigativas da biologia evolucionista e da antropologia cultural. Não foi a primeira vez que os caminhos da biologia se cruzaram com os da história. A tese de Darwin de que a espécie humana teria sido desenhada pelo seu passado revolucionou a biologia a partir de 1859, quando da publicação da Origem das espécies, e foi uma das maiores realizações científicas de todos os tempos. Mudou profundamente a percepção que a humanidade tinha sobre si própria.
A descoberta de que a escala da vida nos remete a um processo de muitas centenas de milhões de anos não desvalorizou a humanidade; ao contrário, ofereceu-nos um sentido de proporções da responsabilidade com a nossa sobrevivência. A maioria das formas de vida que existiram na Terra já foi à extinção, e por mais de uma vez. A revelação de uma ascendência comum com os símios colocou de pernas para o ar a perspectiva de uma humanidade predestinada a ser a coroação da vida. A vida é frágil. Não há um destino à nossa espera. O amanhã nos reserva muitos perigos. Sabemos que a centelha de consciência que nos define foi o produto de uma aventura grandiosa.
As espantosas sugestões da biologia evolucionista não diminuíram as perspectivas de futuro da humanidade. Ajudam a compreender a imponência das realizações humanas na história. Construímos uma civilização tecnológica e, culturalmente, complexa. Mas, podemos nos autodestruir. Se não encontrarmos soluções para os impasses do mundo contemporâneo, com suas terríveis lutas de classes, poderemos perecer. A causa mais elevada do nosso tempo é a defesa da humanidade. Nada é mais importante. Para os socialistas, a permanência do capitalismo é a principal ameaça à vida civilizada.
Contra o determinismo biológico
O darwinismo deixou-nos um extraordinário alerta. A vida é delicada e a extinção não é excepcional. A extinção é o padrão mais regular. Porém, o darwinismo exerceu também uma influência duradoura – e desastrosa – sobre as ciências sociais. Os nacionalismos exaltados das potências européias, no final do século XIX, apropriaram-se abusivamente da idéia de uma competição individual pela sobrevivência dos mais adaptados, para justificar a conquista de um Estado sobre outros. Não fosse isso o bastante, defenderam a idéia abjeta do domínio de uma civilização sobre outras e, no limite mais repulsivo do nazismo, de uma suposta raça superior sobre outras. Os mais desenvolvidos economicamente seriam os mais capazes.
A idéia de uma seleção sexual dos mais aptos – aqueles que superaram os obstáculos e foram capazes de deixar descendência – foi transportada para a economia para justificar o mercado como forma mais eficiente, e até natural, de regulação de recursos. A desigualdade social seria, também, natural. E o que é natural, seria irremediável.
No final do século XX, a biologia viveu uma nova revolução científica que coincidiu, em muitas das suas conclusões, com hipóteses sugeridas pela história. Esses avanços científicos estão ampliando as possibilidades da pesquisa histórica e são muito animadores, como alertou Hobsbawm (2004): “Para resumir, a revolução do DNA invoca um método particular, histórico, de estudo da evolução da espécie humana [...] Em outros termos, a história é a continuação da evolução biológica do homo sapiens por outros meios.”
O projeto Genoma enterrou as teorias racistas ao demonstrar, definitivamente, que não existem raças humanas, e as pequenas variações entre as populações de ascendência americana, européia, africana ou asiática são muito recentes. Poderia não ter sido assim, se o intervalo de separação dos grupos humanos tivesse sido mais longo, mas as poucas dezenas de milhares de anos de isolamento, interrompido há 500 anos, não foram suficientes para a fixação de diferenças significativas.
As descobertas do DNA permitiram, por exemplo, por meio da marcação das mitocôndrias (uma molécula herdada em todos os seres humanos por linhagem materna), um novo método de datações. Já está sendo rediscutido que o povoamento original das Américas, pouco antes do fim da última glaciação, teria sido realizado em sucessivas vagas por populações geneticamente mais variadas do que até então se presumia.
As premissas anti-históricas criacionistas de uma natureza humana invariável, e ainda por cima cruel, sinistra e malvada, embora ainda exerçam alguma influência sobre o senso comum, são inaceitáveis.
A humanidade compartilhou a capacidade de amar e odiar, confiar e temer, identificar e repudiar, desejar e rejeitar, admirar e querer, sorrir e desprezar, invejar e imitar, ou seja, todo um repertório de ações e reações dos homens uns com os outros – colaboração e conflito –, impulsionadas pela necessidade de sobrevivência na natureza, que resultaram em experiências históricas, e se concretizaram em relações sociais. Transformamos valores e costumes, através da história, da mesma maneira que melhoramos nossas ferramentas, e podemos sonhar nas mudanças que ainda estão por vir.
A história foi um processo cultural de readaptação da humanidade. Essa capacidade de autotransformação foi uma das constantes que oferecem coerência interna à própria história, e permitem que ela seja compreendida. Por isso, a esperança triunfará.
Referências bibliográfias:
HOBSBAWM, Eric. Manifesto pela renovação da História. Le Monde Diplomatique, 1 dez. 2004.




O marxismo e a natureza humana (parte 2)


Valério Arcary
“Quem não cansa, alcança.” (Sabedoria popular portuguesa.)
A discussão da natureza humana reapareceu por intermédio de uma versão da biologia evolucionista. Esta posição admite que a natureza humana seria o produto da cultura. Mas ressalta que a cultura seria expressão, também, de uma natureza humana herdada. Ambas estariam condicionadas pela evolução. (RIDLEY, 1995). O argumento é circular.
A decodificação da seqüência do DNA tem alimentado até a esperança de identificar genes específicos, ou grupos associados de genes para explicar, tanto sobre a maior vulnerabilidade a doenças futuras, o que é animador, quanto sobre a probabilidade maior de tal ou qual comportamento humano, o que é mais do que preocupante. Especulou-se sobre o gene da violência, da homossexualidade, etc. Investigações estão sendo feitas nessa direção, ainda quando o tema seja muito polêmico no campo da própria biologia.
A maioria dos biólogos evolucionistas não propôs que a chave de explicação dos comportamentos humanos poderia ser encontrada nos genes. Somos humanos porque aprendemos e nos corrigimos. A provocação nos remete, contudo, à questão de saber se existiriam padrões constantes no comportamento social humano que teriam sido fixados ao longo da evolução.
Uma teoria evolucionista da história
Marx não ignorou, em seu tempo, que uma biologia evolucionista não só era compatível com uma teoria evolucionista da história, mas complementar. Acreditava que o homem, como ser social, tinha transformado a natureza à sua volta e, portanto, a si próprio, ou seja, sua própria morfologia. Dominou com as mãos a pedra, a madeira, o fogo, as peles e as fibras. Aprendeu a caçar em colaboração, e diversificou sua dieta. Aumentou seu cérebro, sua estatura, sua expectativa média de vida. A história das civilizações continuava e, inclusive, acelerava essa transformação da natureza e da humanidade.
Marx rejeitava vigorosamente uma interpretação da história baseada em padrões de comportamento social humano rígido. Argumentou que a humanidade reinventou permanentemente a si própria por meio do trabalho e da cultura. A natureza humana seria um processo ininterrupto de transformações adaptativas. Marx apresentou nos Manuscritos econômico-filosóficos a idéia de que uma essência humana imanente – um potencial de transformação – se expressou na ampliação das forças produtivas, ou seja, na invenção de novas necessidades.
Segundo Agnes Heller, uma das herdeiras de Lukács na chamada Escola de Budapeste: “Aceitamos a concepção do jovem Marx [...] tal como foi expressa pela análise de György Márkus. Segundo essa análise, as componentes da essência humana são, para Marx, o trabalho (a objetivação), a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade. A essência humana, portanto, não é o que “esteve sempre presente” na humanidade [...], mas a realização gradual e contínua das possibilidades imanentes à humanidade.” (HELLER, 2004, p.4)
O desenvolvimento das forças produtivas seria o desenvolvimento da riqueza da natureza humana como finalidade de si mesma. Embora esse desenvolvimento tenha sido feito na história à custa do sacrifício da maioria – das classes exploradas e oprimidas – esse crescimento da humanidade sobre a natureza, assim como o domínio sobre as relações sociais, cria a possibilidade de que esses antagonismos sociais sejam superados.
A ampliação desta riqueza da natureza humana foi a substância do progresso. Fizemo-nos mais rápidos que o guepardo e mais fortes que o elefante. Voamos mais alto que o condor e descemos a profundidades maiores que os peixes. Marx admitiu, no entanto, que existiam limites. Reconheceu que os homens transformavam a natureza e todas as suas relações sociais – a língua, as ferramentas do trabalho, suas relações uns com os outros, etc. – em condições naturais e sociais que não podia escolher, que eram alheias à sua vontade; mas não aceitava a premissa que condicionava a mudança da sociedade à mudança prévia do homem. Lutando pela transformação e pelo domínio consciente de suas relações sociais, a humanidade estaria transformando-se a si mesma.
As desproporções dos dois processos que são a substância da história tornaram-se assustadores. O domínio técnico-científico alcançado está em contradição com o capitalismo. O gigantismo das forças produtivas atuais está aprisionado dentro de relações sociais capitalistas que ficaram estreitas demais. A potência contida nas forças produtivas é explosiva. Se não for libertado das amarras que as contêm ameaça destruir a civilização. O domínio da natureza sem uma solução socialista dos terríveis antagonismos que dividem os homens em classes colocou a natureza e a própria humanidade na beira do abismo.
A naturalização dos conflitos humanos nunca foi, politicamente falando, inocente. O que é natural não pode ser alterado, ou só se modifica em uma escala tão lenta que estaria além das dimensões possíveis da política. É a maldição do escorpião. Etnocentrismo para justificar o racismo, seguidismo da liderança para justificar os Estados militarizados, xenofobia para justificar as guerras territoriais, ambição para justificar a desigualdade social. A procura de um padrão inflexível de comportamento contraria a história, e diminui a conduta humana à pressão de forças que escapam à sua vontade. Foi a história que nos condicionou, favorecendo a plasticidade. Nos fizemos adaptativos, e não rígidos.
Natureza ou cultura é a forma que assume o dilema que, nesses termos, é falso. Somos os filhos de uma herança cultural que transformou nossa natureza. Fazemos a nossa história, mas não escolhemos as condições. A tentativa de explicar uma constância da natureza humana por meio de centenas de milhares de anos de pré-história e história por um determinismo biológico voltou, disfarçada de ciência. Uma condição humana perversa e/ou imutável tem sido o argumento para denunciar o projeto socialista como uma utopia não só fora da história, mas da natureza. Mas a disjuntiva trágica, colaboração e conflito, que encontramos em toda a história, permitem imaginar um futuro em aberto.
Iguais e ao mesmo tempo diversos
O marxismo não aceitou a idéia de uma condição humana inalterável, criticando critérios anti-históricos que naturalizavam a exploração dos homens uns pelos outros. A exploração humana não é natural. Como todo fenômeno social, é histórica e, portanto, transitória. As idéias socialistas estão hoje na contracorrente, mas os pioneiros do liberalismo não eram tão reacionários quanto seus herdeiros atuais. Adam Smith, por exemplo, não sentiu embaraço em sentenciar:
Na realidade, a diferença de talentos naturais em pessoas diferentes é muito menor do que pensamos; a grande diferença de habilidade que distingue entre si pessoas de diferentes profissões, quando chegam à maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas antes o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre as personalidades mais diferentes, entre um filósofo e um carregador comum da rua, por exemplo, parece não pro vir tanto da natureza, mas antes do hábito, do costume, da educação ou formação. Ao virem ao mundo, e durante os seis ou oito primeiros anos de existência, talvez fossem muito semelhantes entre si, e nem seus pais nem seus companheiros de folguedo eram capazes de perceber nenhuma diferença notável. (SMITH, 1988, cap. 2, p. 25)
O marxismo afirmava que os homens eram, ao mesmo tempo, iguais e desiguais. Reconhecia que a humanidade era diversa. Os seres humanos possuem capacidades e talentos diferentes. Uns são mais ágeis e outros mais articulados, uns são mais musicais e outros mais enérgicos, uns são mais impulsivos e outros mais reflexivos. Porém, as necessidades materiais e culturais mais intensas são comuns a toda a humanidade. A necessidade de abrigo e alimento, de segurança e lazer, de informação e reconhecimento, é universal.
Satisfazê-las, plenamente, foi impossível até que o capitalismo liberou as forças produtivas da revolução industrial. A igualdade das necessidades nos definiu e pressiona. A esperança em formas de sociabilidade mais colaborativas repousa nessa aposta. Sabemos que é possível.
Referências bibliográficas
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
RIDLEY, Matt. The red Queen: sex and the evolution of human nature. Nova York: Penguin Books, 1995.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. v. I. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os economistas).




O marxismo e a natureza humana (parte 3)


Valério Arcary
“A essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais.” (Karl Marx, VI Tese sobre Feurbach.)

Os liberais alicerçaram sua argumentação sobre a condição humana em uma idéia chave: a premissa de que não haveria liberdade sem direito à propriedade. Liberdade e propriedade seriam indivisíveis. Seriam direitos inseparáveis um do outro, intrínsecos, portanto, essenciais. A natureza humana se definiria pela busca egoísta do enriquecimento através da garantia da propriedade como forma de amor à liberdade.
O marxismo afirmava que não poderia haver liberdade entre desiguais. Igualdade e liberdade seriam indivisíveis. Seriam direitos complementares, portanto, um condicionaria o outro. A liberdade seria a consciência da necessidade.
Aqueles que não sabem quais são os seus interesses não poderiam ser livres. Os marxistas defendiam a idéia de que aqueles que acumulam a riqueza concentram, invariavelmente, o poder. E os que controlam o poder têm melhores condições de apropriação e acumulação.
A preservação do capitalismo, apesar dos diferentes regimes políticos de dominação – variadas soluções institucionais de tipo democrático-eleitorais ou bonapartistas-ditatoriais –, seria a continuidade de um sistema de exploração do trabalho pelo capital. O programa do marxismo era a socialização da propriedade privada e a regulação da alocação de recursos pelo planejamento democrático.
O marxismo reconhece ou não a existência de uma natureza humana?
O marxismo não afirmou que a condição humana seria a generosidade ou a solidariedade. Tampouco defendeu que seria impossível reconhecer as características de uma essência humana. O que distinguiu o marxismo de outras tendências igualitaristas foi a insistência na idéia de a condição humnana só poderia ser compreendida como um processo de evolução histórica das relações sociais. Relações sociais imersas em um processo de mudança. Um processo que deixa em aberto muitas possibilidades. A humanidade transformou a sua relação com a natureza, e transformou-se a si própria através do trabalho.
Ao reconhecer que a natureza humana só poderia ser compreendida a partir das relações sociais, ou seja, a partir das relações que a humanidade estabelece em cada época histórica com a natureza, e dos homens e mulheres uns com os outros, concordou que existem determinações que se alteram, e outras que permanecem mais ou menos constantes por um período histórico, que pode ser mais ou menos longo, até que estas também, evoluem.
Dizer que a essência humana está condicionada pela forma das relações sociais dominantes significa reconhecer que, se estas favorecem a inveja e a boçalidade, então uma maioria dos seres humanos terão comportamentos gananciosos e brutos. Mas não quer dizer que essas ações respondam a impulsos inatos. Colaboração e conflito estiveram sempre presentes nas relações sociais, em graus variados, ao longo do processo de evolução histórica. Não só somos seres sociais, somos uma das formas de vida mais sociais. Se não existisse a capacidade de colaboração não teríamos sobrevivido.
O tema já foi, porém, muito polêmico. Nos anos sessenta, as correntes mais importante do marxismo, tanto no movimento operário quanto na academia, ainda eram o estalinismo e a socialdemocracia. Na sequência do impacto do relatório Kruschev e das denúncias dos crimes de Stalin, o marxismo acadêmico europeu sofreu duas fortes pressões. De um lado, a influência do que ficou conhecido como humanismo marxista que buscava inspiração nos Manuscritos econômico-filosóficos, então publicados (MARX, 2004). De outro lado, a influência do estruturalismo, em particular da corrente althusseriana francesa, que realizou uma vigorosa negação da possibilidade de compatibilizar a noção de natureza humana com a obra do Marx maduro. O argumento foi a defesa de um corte epistemológico científico na obra do Marx d’O Capital com as obras de juventude. Uma resposta instigante à crítica althusseriana pode ser encontrada na obra de Norman Geras, Marx and human nature, refutation of a legend (GERAS, 1983).
Liberdade e propriedade não são indivisíveis, mas contraditórios
Os liberais admitiam que o direito à liberdade era relativo. Reconheceram que o direito de cada um acabava onde começava o direito à liberdade do outro. Os liberais responderam ao desafio socialista asseverando que a luta pela igualdade destruiria, inexoravelmente, a liberdade. Porque o que contrarai a naturza humana não pode ser realizado senão pela força. Denunciaram a ambição coletivista do igualitarismo como incompatível com o direito à busca individual da felicidade, ou seja, da propriedade que protege o enriquecimento, incentiva o progresso, e favorece a inovação.
A premissa da desigualdade natural, inata ou adquirida, ou de uma natureza humana inflexível, rígida e inalterável condenava logo de saída qualquer projeto igualitarista ao uso da violência contra os mais tenazes ou arrojados. Sendo os homens desiguais, toda tentativa de construir a igualdade social seria artificial, e só poderia ser erguida recorrendo à força do Estado. Esta argumentação ideológica, embora tenha coerência interna, não é verdadeira. Não resiste à confrontação com a realidade. Não é difícil de ser refutada.
O programa socialista inscreveu na história a necessidade da luta contra a propriedade privada para defender o direito à vida, a primeira e mais decisiva das liberdades humanas. Afirmava que o direito indefinido de alguns à propriedade privada e ao direito de herança ilimitada, ou seja, a fortaleza jurídica que defende o capital, seria incompatível com o direito à vida de todos.
Por quê? A vida estaria em perigo? Sim, a vida de quem nasce na miséria sempre esteve em perigo ao longo da história da humanidade, e permanece assim. O direito à alimentação, ao abrigo, à educação e à saúde e até ao trabalho, entre outros, definem o que significa o direito à vida, e deveriam ser direitos inalienáveis de todos. Não são. Poderiam ser? Ou reivindicar essas garantias elementares seria utópico? Defender que a satisfação destas necessidades universais em plena aurora do século XXI seria utópico não faz sentido. A capacidade produtiva presente é mais do que suficiente para erradicar a miséria. O obstáculo que nos impede de realizar a maior façanha da história da humanidade não é a escassez, a penúria, mas o capitalismo.
A liberdade só é possível com a satisfação das necessidades
O socialismo elevou o direito ao trabalho, o direito a moradia, transporte e lazer, enfim, o direito à satisfação das necessidades humanas mais sentidas, como a missão fundamental da vida civilizada, e o sentido da história pelo qual vale a pena lutar. Ao longo do século XIX, o marxismo precisou lutar contra outras tradições igualitaristas antes de conquistar a posição de corrente mais influente nos movimentos operários europeus.
Polemizou com o cooperativismo francês inspirado em Proudhon, com o estatismo reformista alemão da corrente de Lassale e com o anarquismo russo antipolítico de Bakunin. Argumentou contra Proudhon que as cooperativas poderiam ser uma escola política de construção da solidariedade, mas não haveria como impedir sua ruína econômica ou sua absorção pelo mercado. Respondeu ao estatismo de Lassale recordando que o capitalismo poderia conviver com um estado intervencionista, diferenciando socialização de estatização. Uma empresa estatal pode ser tão capitalista quanto uma empresa privada. Socialização não é somente propriedade estatal, mas propriedade social, ou seja, submetida ao controle democrático dos trabalhadores por intermédio de um planejamento submetido às suas necessidades. Contestou Bakunin afirmando a necessidade da política e da luta pelo controle do Estado, embora reconhecendo a necessidade de uma transição em que, gradualmente, iriam se dissolvendo as estruturas estatais.
O socialismo dos marxistas defendia a posição de que, enquanto alguns poucos possuíssem o capital – portanto, as melhores terras, as fábricas, os bancos –, não haveria forma de construir a igualdade social, e que era necessária uma estratégia revolucionária para deslocar o Estado capitalista, aparentemente invisível atrás dos diferentes regimes políticos.
Liberdade e democracia
O liberalismo diminuiu a liberdade reduzindo-a ao direito à propriedade privada e amesquinhando-a como a luta pelo enriquecimento individual. Locke, um liberal que viveu em uma época histórica em que a luta contra a tirania absolutista era um horizonte revolucionário, confessou, há mais de 200 anos, a legitimidade da luta armada pela defesa da propriedade privada da minoria contra o Estado:
“Mas se qualquer desses atos ilegais se estendeu à maior parte do povo – ou se o malefício e a opressão atingiram somente a alguns, mas em casos tais que os precedentes e as conseqüências pareçam a todos ameaçar, estando eles persuadidos intimamente de que as leis e com elas as propriedades, liberdades e vidas estão em perigo e talvez até mesmo a religião –, não estou em condições de dizer como se poderá impedi los de resistir à força ilegal de que se faz uso contra eles.” (LOCKE, 1989, p. 91)
Se as leis que protegem a propriedade estivessem em perigo, seria legítimo resistir à força. A defesa do direito de insurgência contra o Estado, ainda quando este fosse a expressão da vontade da maioria despojada contra a minoria privilegiada, estabeleceu o cerne do projeto liberal. Para os liberais, igualdade e liberdade seriam direitos não só contraditórios, mas antagônicos.
No afã da polêmica histórica os liberais tiveram amnésias convenientes, esquecendo que a luta democrática foi protagonizada pelo movimento operário e pelos socialistas. O direito ao voto universal, o direito de liberdade de imprensa, o direito de organização sindical e popular foram conquistados em lutas heróicas encabeçadas pelos socialistas. O liberalismo – mesmo admitindo-se a variedade ampla de liberalismos segundo a época e os países – nunca teve maior compromisso com as liberdades democráticas, nem no terreno teórico nem na prática histórica.
Ao estudar a revolução inglesa do século XVII, os liberais defenderam o direito de rebelião do Parlamento liderado por Cromwell contra o Estado absolutista inglês. A revolução puritana foi feita sob uma bandeira: não poderia haver taxação sem aprovação da representação. Argumentaram que impostos que não haviam sido votados pelo Parlamento não tinham legitimidade, e a insurgência estaria justificada. Não reconheceram aos socialistas no século XX, contudo, o mesmo direito de insurgência contra ditaduras terríveis, sempre e quando os interesses do capital estavam assegurados.
Durante os dois séculos seguintes à revolução inglesa, até meados do XIX, os liberais identificaram a liberdade com o direito individual de autodefesa contra o Estado, de onde surgiu sua máxima: não se devem aceitar impostos sem que sejam votados pela representação do Parlamento, e não devem votar representantes senão os que pagam impostos. Domenico Losurdo estudou as ambigüidades das relações da tradição liberal com o sufrágio:
“Somos capazes de compreender melhor o significado da discriminação censitária que acompanhou tenazmente a história da tradição liberal. Sieyés, que teoriza a distinção entre cidadãos ativos e passivos, considera como um fato [...] que “a multidão sem instrução” seja obrigada a um trabalho “forçado” e, portanto, seja “privada de liberdade”; também propõe, como sabemos, introduzir na França o trabalho servil ou semi-servil, a que deviam ser submetidos os cidadãos passivos [...] o porta-voz do Terceiro Estado e da burguesia liberal francesa fala da “maior parte dos homens” como “instrumentos humanos da produção” ou como “instrumentos bípedes”, retomando em última análise a categoria de que se serve Aristóteles para definir o trabalho servil.” (LOSURDO, 2004, p. 45)
A democracia liberal na Europa nasceu censitária, excluindo a maioria pobre que não pagava imposto. Eram excluídos, também, as mulheres, os jovens, os analfabetos e os estrangeiros. Nos Estados Unidos, excluíam-se os escravos. A liberdade dos liberais não era igual para todos. Os liberais preferiam reconhecer que os homens deveriam ser iguais diante de Deus e, no máximo, diante da lei – cuja interpretação ficava reservada a uma justiça de classe que eles se reservavam o direito de controlar –, mas irredutivelmente desiguais entre si.
O voto censitário, porque limitado aos cidadãos ativos – identificando como passivos a maioria pobre que, no final o século XVIII, ainda não pagava impostos –, foi inscrito na Constituição francesa de 1791. Foi por intermédio de longas lutas políticas – cartistas na Inglaterra, a revolução de 1848 na França – encabeçadas pelos socialistas que o direito de voto se universalizou. Os liberais temiam que, com a extensão do direito de voto aos não-proprietários, fosse eleita uma maioria de deputados que ousaria desafiar a propriedade privada.
Essa resistência política ao voto universal durante o século XIX, expressão do horror social burguês à massa subalterna, demonstrou-se, entretanto, historicamente infundada porque, ao longo do século XX, os regimes democrático-liberais lograram atrair para sua órbita os partidos de base operária burocratizados: primeiro a social-democracia, depois o stalinismo e, finalmente, a maioria dos movimentos nacionalistas revolucionários na periferia, como sandinistas e tupamaros.
Liberdade e igualdade são indivisíveis
O movimento operário nos últimos 150 anos foi o protagonista social da mais decisiva transformação da história humana: a aventura épica por um controle consciente sobre os destinos da sociedade, levando até o fim a promessa inscrita na Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade.
O socialismo foi o programa que inspirou a epopéia das revoluções do século XX. Os marxistas argumentaram que o sentido da luta dos trabalhadores consistiu, historicamente, em levar às últimas conseqüências a luta pela igualdade e liberdade como valores indissociáveis, portanto, que se definem um ao outro. Afirmaram que não poderia haver igualdade sem liberdade e vice-versa. Uma condicionaria a outra. Essa é também a opinião de Wallerstein:
“Que significa realmente o slogan ‘liberdade, igualdade, fraternidade’? O slogan da Revolução Francesa é familiar a todo mundo. Ele parece fazer referência a três fenômenos diferentes, cada um situado em três domínios entre os quais estamos acostumados a dividir nossas análises sociais: a liberdade no campo político, a igualdade no campo econômico e a fraternidade no campo sociocultural. E estamos igualmente habituados a debater a respeito de sua importância relativa, em particular entre a liberdade e a igualdade. A antinomia da liberdade e da igualdade parece-me absurda. Tenho dificuldades em ver como podemos ser “livres” se há desigualdade, já que aqueles que têm mais têm sempre mais opções que não são possíveis àqueles que têm menos e, por conseqüência, estes últimos são menos livres. E, do mesmo modo, tenho dificuldades em ver como a igualdade pode existir sem a liberdade uma vez que, na ausência de liberdade, alguns têm mais poder político que outros, donde se segue que há desigualdade. Não estou sugerindo nenhum jogo de palavras aqui, mas a rejeição da distinção entre liberdade-igualdade. Liberdade-igualdade é um único e mesmo conceito.” (WALLERSTEIN, 1989.)
Os revolucionários pequeno-burgueses mais radicais do final do século XVIII colocaram-se como desafio a conquista da liberdade política e da igualdade jurídica de todos os cidadãos. O horizonte social da revolução democrática era a eqüidade, porque ela seria o fundamento da fraternidade. O programa político da revolução democrática era a cidadania. Mas, liberdade e igualdade são indivisíveis. Em uma sociedade baseada na exploração do trabalho, ninguém é livre. Não há liberdade possível entre desiguais. A liberdade humana só é possível com o fim da exploração capitalista.
Se não formos todos livres, nenhum de nós será livre
A igualdade social é a condição da liberdade humana. A igualdade social não é a nivelação dos salários. O socialismo não é o aumento dos salários, mas a gradual extinção do dinheiro e da remuneração salarial. A igualdade social não é a uniformização das mercadorias. O socialismo é a ampliação e diversificação do consumo, e o fim da forma mercantilizada dos produtos. A igualdade social não é a diminuição das diferenças entre ricos e pobres, ou a divisão da propriedade. O socialismo é a satisfação das necessidades mais sentidas pelo controle social da produção da riqueza e o fim da propriedade privada.
Não podemos ser livres, enquanto não formos todos livres. Não há liberdade onde reina o medo. O medo do desemprego e da pobreza dilacera os trabalhadores, e o medo dos trabalhadores dilacera os capitalistas. Não estaremos livres do medo enquanto sobreviver um sistema que divide a humanidade em proprietários e assalariados.
A liberdade é uma síntese de direitos que só têm sentido se forem universais. Se não forem acessíveis a todos, são vantagens. O que são vantagens de somente alguns, são privilégios. Liberdade é o direito de opinião, de manifestação, de organização. É a liberdade de imprensa. É a liberdade religiosa. É a liberdade de ir e vir. É a liberdade sexual. Mas, direitos são sempre relativos, ou seja, são condicionados por outros direitos.
Não é difícil concluir que, em uma sociedade socialmente desigual, a liberdade de opinião dos que controlam a riqueza – e, claro, todas as outras liberdades – é maior do que a daqueles que não a possuem. A maior liberdade de alguns significa a perda de liberdade de outros. Onde não há igualdade, o direito unilateral de alguns é a usurpação do direito dos outros, portanto, a tirania. Não sendo universais, não são direitos, são privilégios.
Os liberais restringiam a igualdade possível à igualdade jurídica. Ou, na melhor das hipóteses, ampliavam-na apelando à eqüidade: a igualdade de oportunidades, a ambição de uma maior justiça diante da discriminação de chances dos ricos dos pobres. Os socialistas afirmavam que a liberdade só se completaria quando a humanidade fosse capaz de garantir a igualdade social. A igualdade social é um objetivo superior à igualdade de oportunidades.
Nunca existiu, evidentemente, em sociedade capitalista alguma, em lugar nenhum do mundo, a eqüidade, a não ser nos livros da lei. As relações de poder encarregaram-se de proteger os interesses da riqueza. A igualdade social só seria possível, segundo os socialistas, quando a humanidade se libertasse da propriedade privada e, portanto, da sanha do enriquecimento de uns à custa do empobrecimento dos outros, o que vale tanto para as relações entre as classes quanto entre as nações. Onde a exploração de uns sobre os outros se impõe, não pode haver igualdade.
A igualdade social – uma relação dos homens entre si – tem como premissa, portanto, o acesso à abundância para todos. E a liberdade humana – uma relação dos homens com a natureza – tem como premissa a satisfação das necessidades de todos. São um único e mesmo conceito que se desdobra em dois, se estabelecemos a relação dos homens entre si na sociedade ou com a natureza.
Liberdade e igualdade seriam, portanto, inseparáveis e estariam historicamente condicionadas pela possibilidade da abundância, da fartura, ou seja, pela capacidade social de gerar uma produção econômica que pudesse satisfazer às necessidades mais intensas de todos.
Para serem iguais entre si, os homens precisariam ser capazes de se emancipar da penúria ou, em outras palavras, libertar-se da opressão da natureza, desenvolvendo as forças produtivas para além das limitações materiais e culturais herdadas do passado.
Referências bibliográficas
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