sábado, 1 de março de 2014

Valério Arcary: O marxismo e a natureza humana (parte 1 2 3)

O marxismo e a natureza humana (parte 1)


Valério Arcary
” Se se entende que toda transgressão contra a propriedade, sem entrar em distinções, é um roubo, não será um roubo toda a propriedade privada? Acaso minha propriedade privada não exclui a todo terceiro desta propriedade? Não lesiono com isso, portanto, seu direito de propriedade?” (Karl Marx, Os debates na Dieta Renana sobre as leis castigando os roubos de lenha.)
O argumento que defende a justiça da propriedade privada foi sempre a pedra angular do liberalismo. Se o direito à propriedade privada fosse ameaçado, argumentaram os liberais, a liberdade seria destruída. Se a possibilidade de acumulação ilimitada de capital fosse reduzida, ou o direito de herança condicionado, as restrições à busca do enriquecimento teriam conseqüências catastróficas: o crescimento econômico seria sacrificado, a inovação tecnológica inibida e o espírito de iniciativa amputado. A sociedade estaria condenada ao atraso, à estagnação e até à preguiça.
Depois da restauração capitalista na Rússia e no Leste Europeu, inventaram-se eufemismos para garantir dignidade a valores desmoralizados diante da sociedade na etapa histórica anterior pela experiência social. Depois da derrota do nazi-fascismo a idéia da solidariedade humana tinha estabelecido raízes sólidas na maioria das sociedades urbanizadas. Para desqualificar os princípios mais elementares de justiça e solidariedade, a ganância foi validada como ambição legítima. A cobiça foi promovida a aspiração de aquisitividade. A rivalidade ganhou ares respeitosos como competição pela eficiência. E a ostentação foi reconhecida como exibição da prosperidade.
O homem como lobo do homem
Remetendo as formas econômicas da organização social contemporânea às características de uma natureza humana invariável – o homem como lobo do homem –, o liberalismo fundamentava a justificação do capitalismo na desigualdade natural. A rivalidade entre os homens e a disputa pela riqueza seriam um destino incontornável. Um impulso egoísta ou uma atitude comodista, uma ambição insaciável ou uma avareza incorrigível definiriam a nossa condição. Eis o fatalismo: o individualismo seria, finalmente, a essência da natureza humana. E a organização política e social deveria se adequar à imperfeição humana. E resignar-se.
Uma humanidade dominada pela mesquinhez, pela ferocidade, ou pelo medo precisaria de uma ordem política disciplinada, portanto, repressiva, que organizasse os limites de suas lutas internas como uma forma de “redução de danos”.
Resumindo e sendo brutal: o direito ao enriquecimento seria a recompensa dos mais empreendedores, ou mais corajosos, ou mais capazes e seus herdeiros. A propriedade privada não seria a causa da desigualdade, mas uma conseqüência da desigualdade natural. É porque são muito variadas as habilidades e disposições que distinguem os homens que, segundo os defensores de uma natureza humana rígida e inflexível, existe a propriedade privada, e não o inverso. A diversidade entre os indivíduos, inata ou adquirida, seria o fundamento da desigualdade social. Em consequência, o capitalismo seria o horizonte histórico possível e o limite do desejável. Porque com o capitalismo, em princípio, qualquer um poderia disputar o direito ao enriquecimento. Os liberais sempre se apressaram em admitir que nem todos o conseguirão, por certo, para mascarar sua defesa com um tempero de realidade.
Esses argumentos não têm, no entanto, o mais mínimo fundamento científico. Em oposição à visão de uma natureza humana inflexível, o marxismo nunca defendeu a visão simétrica e ingênua de uma humanidade generosa e solidária. Nem fundamentou a necessidade da igualdade social em uma suposta igualdade natural. O que o marxismo afirmou é que a natureza humana tem dimensão histórica e, portanto, se transforma. O que o marxismo preservou foi a idéia de que a diversidade de capacidades não permite explicar a desigualdade social que nos divide. É a exploração de uns pelos outros a causa da desigualdade, e não o contrário.
O capitalismo não é meritocrático
A injustiça do mundo que nos cerca não repousa em critérios meritocráticos. A diferença de talentos e a variedade de capacidades não têm relação direta com o lugar que cada ser humano ocupa nas sociedades estratificadas em classes. Não há nenhum mérito em nascer em uma família burguesa, proletária ou de classe média. Não há nenhum valor em nascer na Nigéria ou na Noruega, na Grécia ou na Alemanha.
Na sociedade contemporânea, a condição de classe é determinada pelo direito de herança, na mesma proporção em que em outras épocas era garantida pelo berço familiar. Pior, na maior parte do mundo, as oportunidades de ascensão social ou permaneceram estagnadas ou vieram diminuindo no último quarto de século. A geração mais jovem desconfia que não irá melhorar suas condições de vida, comparativamente, às de seus pais.
A mobilidade social foi reduzida, tanto no centro como na periferia do capitalismo. As possibilidades de melhorar de vida pelo talento ou pelo esforço vieram sendo reduzidas. A inteligência ou a perseverança, a criatividade ou a audácia são aptidões que podem ser encontradas em todas as classes. Porém, a ironia é que será encontrada, com maior freqüência, entre os trabalhadores.
Estas qualidades serão descobertas em maior número entre os filhos do trabalho manual pela mesma razão que entre eles se encontrarão, também, a maioria dos que têm gripe, a maioria dos estrábicos ou a maioria dos que têm nariz grande: porque são as maiorias. A desigualdade do mundo que nos cerca não é nem justa, nem racional. Sua explicação, para os socialistas, é o capitalismo. Ser socialista é ser um inimigo irreconciliável do direito ilimitado à propriedade privada.
A causa mais elevada do tempo que nos coube viver
O interesse pelo tema da natureza humana ressurgiu nos primeiros anos do século XXI provocado por novas linhas investigativas da biologia evolucionista e da antropologia cultural. Não foi a primeira vez que os caminhos da biologia se cruzaram com os da história. A tese de Darwin de que a espécie humana teria sido desenhada pelo seu passado revolucionou a biologia a partir de 1859, quando da publicação da Origem das espécies, e foi uma das maiores realizações científicas de todos os tempos. Mudou profundamente a percepção que a humanidade tinha sobre si própria.
A descoberta de que a escala da vida nos remete a um processo de muitas centenas de milhões de anos não desvalorizou a humanidade; ao contrário, ofereceu-nos um sentido de proporções da responsabilidade com a nossa sobrevivência. A maioria das formas de vida que existiram na Terra já foi à extinção, e por mais de uma vez. A revelação de uma ascendência comum com os símios colocou de pernas para o ar a perspectiva de uma humanidade predestinada a ser a coroação da vida. A vida é frágil. Não há um destino à nossa espera. O amanhã nos reserva muitos perigos. Sabemos que a centelha de consciência que nos define foi o produto de uma aventura grandiosa.
As espantosas sugestões da biologia evolucionista não diminuíram as perspectivas de futuro da humanidade. Ajudam a compreender a imponência das realizações humanas na história. Construímos uma civilização tecnológica e, culturalmente, complexa. Mas, podemos nos autodestruir. Se não encontrarmos soluções para os impasses do mundo contemporâneo, com suas terríveis lutas de classes, poderemos perecer. A causa mais elevada do nosso tempo é a defesa da humanidade. Nada é mais importante. Para os socialistas, a permanência do capitalismo é a principal ameaça à vida civilizada.
Contra o determinismo biológico
O darwinismo deixou-nos um extraordinário alerta. A vida é delicada e a extinção não é excepcional. A extinção é o padrão mais regular. Porém, o darwinismo exerceu também uma influência duradoura – e desastrosa – sobre as ciências sociais. Os nacionalismos exaltados das potências européias, no final do século XIX, apropriaram-se abusivamente da idéia de uma competição individual pela sobrevivência dos mais adaptados, para justificar a conquista de um Estado sobre outros. Não fosse isso o bastante, defenderam a idéia abjeta do domínio de uma civilização sobre outras e, no limite mais repulsivo do nazismo, de uma suposta raça superior sobre outras. Os mais desenvolvidos economicamente seriam os mais capazes.
A idéia de uma seleção sexual dos mais aptos – aqueles que superaram os obstáculos e foram capazes de deixar descendência – foi transportada para a economia para justificar o mercado como forma mais eficiente, e até natural, de regulação de recursos. A desigualdade social seria, também, natural. E o que é natural, seria irremediável.
No final do século XX, a biologia viveu uma nova revolução científica que coincidiu, em muitas das suas conclusões, com hipóteses sugeridas pela história. Esses avanços científicos estão ampliando as possibilidades da pesquisa histórica e são muito animadores, como alertou Hobsbawm (2004): “Para resumir, a revolução do DNA invoca um método particular, histórico, de estudo da evolução da espécie humana [...] Em outros termos, a história é a continuação da evolução biológica do homo sapiens por outros meios.”
O projeto Genoma enterrou as teorias racistas ao demonstrar, definitivamente, que não existem raças humanas, e as pequenas variações entre as populações de ascendência americana, européia, africana ou asiática são muito recentes. Poderia não ter sido assim, se o intervalo de separação dos grupos humanos tivesse sido mais longo, mas as poucas dezenas de milhares de anos de isolamento, interrompido há 500 anos, não foram suficientes para a fixação de diferenças significativas.
As descobertas do DNA permitiram, por exemplo, por meio da marcação das mitocôndrias (uma molécula herdada em todos os seres humanos por linhagem materna), um novo método de datações. Já está sendo rediscutido que o povoamento original das Américas, pouco antes do fim da última glaciação, teria sido realizado em sucessivas vagas por populações geneticamente mais variadas do que até então se presumia.
As premissas anti-históricas criacionistas de uma natureza humana invariável, e ainda por cima cruel, sinistra e malvada, embora ainda exerçam alguma influência sobre o senso comum, são inaceitáveis.
A humanidade compartilhou a capacidade de amar e odiar, confiar e temer, identificar e repudiar, desejar e rejeitar, admirar e querer, sorrir e desprezar, invejar e imitar, ou seja, todo um repertório de ações e reações dos homens uns com os outros – colaboração e conflito –, impulsionadas pela necessidade de sobrevivência na natureza, que resultaram em experiências históricas, e se concretizaram em relações sociais. Transformamos valores e costumes, através da história, da mesma maneira que melhoramos nossas ferramentas, e podemos sonhar nas mudanças que ainda estão por vir.
A história foi um processo cultural de readaptação da humanidade. Essa capacidade de autotransformação foi uma das constantes que oferecem coerência interna à própria história, e permitem que ela seja compreendida. Por isso, a esperança triunfará.
Referências bibliográfias:
HOBSBAWM, Eric. Manifesto pela renovação da História. Le Monde Diplomatique, 1 dez. 2004.




O marxismo e a natureza humana (parte 2)


Valério Arcary
“Quem não cansa, alcança.” (Sabedoria popular portuguesa.)
A discussão da natureza humana reapareceu por intermédio de uma versão da biologia evolucionista. Esta posição admite que a natureza humana seria o produto da cultura. Mas ressalta que a cultura seria expressão, também, de uma natureza humana herdada. Ambas estariam condicionadas pela evolução. (RIDLEY, 1995). O argumento é circular.
A decodificação da seqüência do DNA tem alimentado até a esperança de identificar genes específicos, ou grupos associados de genes para explicar, tanto sobre a maior vulnerabilidade a doenças futuras, o que é animador, quanto sobre a probabilidade maior de tal ou qual comportamento humano, o que é mais do que preocupante. Especulou-se sobre o gene da violência, da homossexualidade, etc. Investigações estão sendo feitas nessa direção, ainda quando o tema seja muito polêmico no campo da própria biologia.
A maioria dos biólogos evolucionistas não propôs que a chave de explicação dos comportamentos humanos poderia ser encontrada nos genes. Somos humanos porque aprendemos e nos corrigimos. A provocação nos remete, contudo, à questão de saber se existiriam padrões constantes no comportamento social humano que teriam sido fixados ao longo da evolução.
Uma teoria evolucionista da história
Marx não ignorou, em seu tempo, que uma biologia evolucionista não só era compatível com uma teoria evolucionista da história, mas complementar. Acreditava que o homem, como ser social, tinha transformado a natureza à sua volta e, portanto, a si próprio, ou seja, sua própria morfologia. Dominou com as mãos a pedra, a madeira, o fogo, as peles e as fibras. Aprendeu a caçar em colaboração, e diversificou sua dieta. Aumentou seu cérebro, sua estatura, sua expectativa média de vida. A história das civilizações continuava e, inclusive, acelerava essa transformação da natureza e da humanidade.
Marx rejeitava vigorosamente uma interpretação da história baseada em padrões de comportamento social humano rígido. Argumentou que a humanidade reinventou permanentemente a si própria por meio do trabalho e da cultura. A natureza humana seria um processo ininterrupto de transformações adaptativas. Marx apresentou nos Manuscritos econômico-filosóficos a idéia de que uma essência humana imanente – um potencial de transformação – se expressou na ampliação das forças produtivas, ou seja, na invenção de novas necessidades.
Segundo Agnes Heller, uma das herdeiras de Lukács na chamada Escola de Budapeste: “Aceitamos a concepção do jovem Marx [...] tal como foi expressa pela análise de György Márkus. Segundo essa análise, as componentes da essência humana são, para Marx, o trabalho (a objetivação), a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade. A essência humana, portanto, não é o que “esteve sempre presente” na humanidade [...], mas a realização gradual e contínua das possibilidades imanentes à humanidade.” (HELLER, 2004, p.4)
O desenvolvimento das forças produtivas seria o desenvolvimento da riqueza da natureza humana como finalidade de si mesma. Embora esse desenvolvimento tenha sido feito na história à custa do sacrifício da maioria – das classes exploradas e oprimidas – esse crescimento da humanidade sobre a natureza, assim como o domínio sobre as relações sociais, cria a possibilidade de que esses antagonismos sociais sejam superados.
A ampliação desta riqueza da natureza humana foi a substância do progresso. Fizemo-nos mais rápidos que o guepardo e mais fortes que o elefante. Voamos mais alto que o condor e descemos a profundidades maiores que os peixes. Marx admitiu, no entanto, que existiam limites. Reconheceu que os homens transformavam a natureza e todas as suas relações sociais – a língua, as ferramentas do trabalho, suas relações uns com os outros, etc. – em condições naturais e sociais que não podia escolher, que eram alheias à sua vontade; mas não aceitava a premissa que condicionava a mudança da sociedade à mudança prévia do homem. Lutando pela transformação e pelo domínio consciente de suas relações sociais, a humanidade estaria transformando-se a si mesma.
As desproporções dos dois processos que são a substância da história tornaram-se assustadores. O domínio técnico-científico alcançado está em contradição com o capitalismo. O gigantismo das forças produtivas atuais está aprisionado dentro de relações sociais capitalistas que ficaram estreitas demais. A potência contida nas forças produtivas é explosiva. Se não for libertado das amarras que as contêm ameaça destruir a civilização. O domínio da natureza sem uma solução socialista dos terríveis antagonismos que dividem os homens em classes colocou a natureza e a própria humanidade na beira do abismo.
A naturalização dos conflitos humanos nunca foi, politicamente falando, inocente. O que é natural não pode ser alterado, ou só se modifica em uma escala tão lenta que estaria além das dimensões possíveis da política. É a maldição do escorpião. Etnocentrismo para justificar o racismo, seguidismo da liderança para justificar os Estados militarizados, xenofobia para justificar as guerras territoriais, ambição para justificar a desigualdade social. A procura de um padrão inflexível de comportamento contraria a história, e diminui a conduta humana à pressão de forças que escapam à sua vontade. Foi a história que nos condicionou, favorecendo a plasticidade. Nos fizemos adaptativos, e não rígidos.
Natureza ou cultura é a forma que assume o dilema que, nesses termos, é falso. Somos os filhos de uma herança cultural que transformou nossa natureza. Fazemos a nossa história, mas não escolhemos as condições. A tentativa de explicar uma constância da natureza humana por meio de centenas de milhares de anos de pré-história e história por um determinismo biológico voltou, disfarçada de ciência. Uma condição humana perversa e/ou imutável tem sido o argumento para denunciar o projeto socialista como uma utopia não só fora da história, mas da natureza. Mas a disjuntiva trágica, colaboração e conflito, que encontramos em toda a história, permitem imaginar um futuro em aberto.
Iguais e ao mesmo tempo diversos
O marxismo não aceitou a idéia de uma condição humana inalterável, criticando critérios anti-históricos que naturalizavam a exploração dos homens uns pelos outros. A exploração humana não é natural. Como todo fenômeno social, é histórica e, portanto, transitória. As idéias socialistas estão hoje na contracorrente, mas os pioneiros do liberalismo não eram tão reacionários quanto seus herdeiros atuais. Adam Smith, por exemplo, não sentiu embaraço em sentenciar:
Na realidade, a diferença de talentos naturais em pessoas diferentes é muito menor do que pensamos; a grande diferença de habilidade que distingue entre si pessoas de diferentes profissões, quando chegam à maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas antes o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre as personalidades mais diferentes, entre um filósofo e um carregador comum da rua, por exemplo, parece não pro vir tanto da natureza, mas antes do hábito, do costume, da educação ou formação. Ao virem ao mundo, e durante os seis ou oito primeiros anos de existência, talvez fossem muito semelhantes entre si, e nem seus pais nem seus companheiros de folguedo eram capazes de perceber nenhuma diferença notável. (SMITH, 1988, cap. 2, p. 25)
O marxismo afirmava que os homens eram, ao mesmo tempo, iguais e desiguais. Reconhecia que a humanidade era diversa. Os seres humanos possuem capacidades e talentos diferentes. Uns são mais ágeis e outros mais articulados, uns são mais musicais e outros mais enérgicos, uns são mais impulsivos e outros mais reflexivos. Porém, as necessidades materiais e culturais mais intensas são comuns a toda a humanidade. A necessidade de abrigo e alimento, de segurança e lazer, de informação e reconhecimento, é universal.
Satisfazê-las, plenamente, foi impossível até que o capitalismo liberou as forças produtivas da revolução industrial. A igualdade das necessidades nos definiu e pressiona. A esperança em formas de sociabilidade mais colaborativas repousa nessa aposta. Sabemos que é possível.
Referências bibliográficas
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
RIDLEY, Matt. The red Queen: sex and the evolution of human nature. Nova York: Penguin Books, 1995.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. v. I. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os economistas).




O marxismo e a natureza humana (parte 3)


Valério Arcary
“A essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais.” (Karl Marx, VI Tese sobre Feurbach.)

Os liberais alicerçaram sua argumentação sobre a condição humana em uma idéia chave: a premissa de que não haveria liberdade sem direito à propriedade. Liberdade e propriedade seriam indivisíveis. Seriam direitos inseparáveis um do outro, intrínsecos, portanto, essenciais. A natureza humana se definiria pela busca egoísta do enriquecimento através da garantia da propriedade como forma de amor à liberdade.
O marxismo afirmava que não poderia haver liberdade entre desiguais. Igualdade e liberdade seriam indivisíveis. Seriam direitos complementares, portanto, um condicionaria o outro. A liberdade seria a consciência da necessidade.
Aqueles que não sabem quais são os seus interesses não poderiam ser livres. Os marxistas defendiam a idéia de que aqueles que acumulam a riqueza concentram, invariavelmente, o poder. E os que controlam o poder têm melhores condições de apropriação e acumulação.
A preservação do capitalismo, apesar dos diferentes regimes políticos de dominação – variadas soluções institucionais de tipo democrático-eleitorais ou bonapartistas-ditatoriais –, seria a continuidade de um sistema de exploração do trabalho pelo capital. O programa do marxismo era a socialização da propriedade privada e a regulação da alocação de recursos pelo planejamento democrático.
O marxismo reconhece ou não a existência de uma natureza humana?
O marxismo não afirmou que a condição humana seria a generosidade ou a solidariedade. Tampouco defendeu que seria impossível reconhecer as características de uma essência humana. O que distinguiu o marxismo de outras tendências igualitaristas foi a insistência na idéia de a condição humnana só poderia ser compreendida como um processo de evolução histórica das relações sociais. Relações sociais imersas em um processo de mudança. Um processo que deixa em aberto muitas possibilidades. A humanidade transformou a sua relação com a natureza, e transformou-se a si própria através do trabalho.
Ao reconhecer que a natureza humana só poderia ser compreendida a partir das relações sociais, ou seja, a partir das relações que a humanidade estabelece em cada época histórica com a natureza, e dos homens e mulheres uns com os outros, concordou que existem determinações que se alteram, e outras que permanecem mais ou menos constantes por um período histórico, que pode ser mais ou menos longo, até que estas também, evoluem.
Dizer que a essência humana está condicionada pela forma das relações sociais dominantes significa reconhecer que, se estas favorecem a inveja e a boçalidade, então uma maioria dos seres humanos terão comportamentos gananciosos e brutos. Mas não quer dizer que essas ações respondam a impulsos inatos. Colaboração e conflito estiveram sempre presentes nas relações sociais, em graus variados, ao longo do processo de evolução histórica. Não só somos seres sociais, somos uma das formas de vida mais sociais. Se não existisse a capacidade de colaboração não teríamos sobrevivido.
O tema já foi, porém, muito polêmico. Nos anos sessenta, as correntes mais importante do marxismo, tanto no movimento operário quanto na academia, ainda eram o estalinismo e a socialdemocracia. Na sequência do impacto do relatório Kruschev e das denúncias dos crimes de Stalin, o marxismo acadêmico europeu sofreu duas fortes pressões. De um lado, a influência do que ficou conhecido como humanismo marxista que buscava inspiração nos Manuscritos econômico-filosóficos, então publicados (MARX, 2004). De outro lado, a influência do estruturalismo, em particular da corrente althusseriana francesa, que realizou uma vigorosa negação da possibilidade de compatibilizar a noção de natureza humana com a obra do Marx maduro. O argumento foi a defesa de um corte epistemológico científico na obra do Marx d’O Capital com as obras de juventude. Uma resposta instigante à crítica althusseriana pode ser encontrada na obra de Norman Geras, Marx and human nature, refutation of a legend (GERAS, 1983).
Liberdade e propriedade não são indivisíveis, mas contraditórios
Os liberais admitiam que o direito à liberdade era relativo. Reconheceram que o direito de cada um acabava onde começava o direito à liberdade do outro. Os liberais responderam ao desafio socialista asseverando que a luta pela igualdade destruiria, inexoravelmente, a liberdade. Porque o que contrarai a naturza humana não pode ser realizado senão pela força. Denunciaram a ambição coletivista do igualitarismo como incompatível com o direito à busca individual da felicidade, ou seja, da propriedade que protege o enriquecimento, incentiva o progresso, e favorece a inovação.
A premissa da desigualdade natural, inata ou adquirida, ou de uma natureza humana inflexível, rígida e inalterável condenava logo de saída qualquer projeto igualitarista ao uso da violência contra os mais tenazes ou arrojados. Sendo os homens desiguais, toda tentativa de construir a igualdade social seria artificial, e só poderia ser erguida recorrendo à força do Estado. Esta argumentação ideológica, embora tenha coerência interna, não é verdadeira. Não resiste à confrontação com a realidade. Não é difícil de ser refutada.
O programa socialista inscreveu na história a necessidade da luta contra a propriedade privada para defender o direito à vida, a primeira e mais decisiva das liberdades humanas. Afirmava que o direito indefinido de alguns à propriedade privada e ao direito de herança ilimitada, ou seja, a fortaleza jurídica que defende o capital, seria incompatível com o direito à vida de todos.
Por quê? A vida estaria em perigo? Sim, a vida de quem nasce na miséria sempre esteve em perigo ao longo da história da humanidade, e permanece assim. O direito à alimentação, ao abrigo, à educação e à saúde e até ao trabalho, entre outros, definem o que significa o direito à vida, e deveriam ser direitos inalienáveis de todos. Não são. Poderiam ser? Ou reivindicar essas garantias elementares seria utópico? Defender que a satisfação destas necessidades universais em plena aurora do século XXI seria utópico não faz sentido. A capacidade produtiva presente é mais do que suficiente para erradicar a miséria. O obstáculo que nos impede de realizar a maior façanha da história da humanidade não é a escassez, a penúria, mas o capitalismo.
A liberdade só é possível com a satisfação das necessidades
O socialismo elevou o direito ao trabalho, o direito a moradia, transporte e lazer, enfim, o direito à satisfação das necessidades humanas mais sentidas, como a missão fundamental da vida civilizada, e o sentido da história pelo qual vale a pena lutar. Ao longo do século XIX, o marxismo precisou lutar contra outras tradições igualitaristas antes de conquistar a posição de corrente mais influente nos movimentos operários europeus.
Polemizou com o cooperativismo francês inspirado em Proudhon, com o estatismo reformista alemão da corrente de Lassale e com o anarquismo russo antipolítico de Bakunin. Argumentou contra Proudhon que as cooperativas poderiam ser uma escola política de construção da solidariedade, mas não haveria como impedir sua ruína econômica ou sua absorção pelo mercado. Respondeu ao estatismo de Lassale recordando que o capitalismo poderia conviver com um estado intervencionista, diferenciando socialização de estatização. Uma empresa estatal pode ser tão capitalista quanto uma empresa privada. Socialização não é somente propriedade estatal, mas propriedade social, ou seja, submetida ao controle democrático dos trabalhadores por intermédio de um planejamento submetido às suas necessidades. Contestou Bakunin afirmando a necessidade da política e da luta pelo controle do Estado, embora reconhecendo a necessidade de uma transição em que, gradualmente, iriam se dissolvendo as estruturas estatais.
O socialismo dos marxistas defendia a posição de que, enquanto alguns poucos possuíssem o capital – portanto, as melhores terras, as fábricas, os bancos –, não haveria forma de construir a igualdade social, e que era necessária uma estratégia revolucionária para deslocar o Estado capitalista, aparentemente invisível atrás dos diferentes regimes políticos.
Liberdade e democracia
O liberalismo diminuiu a liberdade reduzindo-a ao direito à propriedade privada e amesquinhando-a como a luta pelo enriquecimento individual. Locke, um liberal que viveu em uma época histórica em que a luta contra a tirania absolutista era um horizonte revolucionário, confessou, há mais de 200 anos, a legitimidade da luta armada pela defesa da propriedade privada da minoria contra o Estado:
“Mas se qualquer desses atos ilegais se estendeu à maior parte do povo – ou se o malefício e a opressão atingiram somente a alguns, mas em casos tais que os precedentes e as conseqüências pareçam a todos ameaçar, estando eles persuadidos intimamente de que as leis e com elas as propriedades, liberdades e vidas estão em perigo e talvez até mesmo a religião –, não estou em condições de dizer como se poderá impedi los de resistir à força ilegal de que se faz uso contra eles.” (LOCKE, 1989, p. 91)
Se as leis que protegem a propriedade estivessem em perigo, seria legítimo resistir à força. A defesa do direito de insurgência contra o Estado, ainda quando este fosse a expressão da vontade da maioria despojada contra a minoria privilegiada, estabeleceu o cerne do projeto liberal. Para os liberais, igualdade e liberdade seriam direitos não só contraditórios, mas antagônicos.
No afã da polêmica histórica os liberais tiveram amnésias convenientes, esquecendo que a luta democrática foi protagonizada pelo movimento operário e pelos socialistas. O direito ao voto universal, o direito de liberdade de imprensa, o direito de organização sindical e popular foram conquistados em lutas heróicas encabeçadas pelos socialistas. O liberalismo – mesmo admitindo-se a variedade ampla de liberalismos segundo a época e os países – nunca teve maior compromisso com as liberdades democráticas, nem no terreno teórico nem na prática histórica.
Ao estudar a revolução inglesa do século XVII, os liberais defenderam o direito de rebelião do Parlamento liderado por Cromwell contra o Estado absolutista inglês. A revolução puritana foi feita sob uma bandeira: não poderia haver taxação sem aprovação da representação. Argumentaram que impostos que não haviam sido votados pelo Parlamento não tinham legitimidade, e a insurgência estaria justificada. Não reconheceram aos socialistas no século XX, contudo, o mesmo direito de insurgência contra ditaduras terríveis, sempre e quando os interesses do capital estavam assegurados.
Durante os dois séculos seguintes à revolução inglesa, até meados do XIX, os liberais identificaram a liberdade com o direito individual de autodefesa contra o Estado, de onde surgiu sua máxima: não se devem aceitar impostos sem que sejam votados pela representação do Parlamento, e não devem votar representantes senão os que pagam impostos. Domenico Losurdo estudou as ambigüidades das relações da tradição liberal com o sufrágio:
“Somos capazes de compreender melhor o significado da discriminação censitária que acompanhou tenazmente a história da tradição liberal. Sieyés, que teoriza a distinção entre cidadãos ativos e passivos, considera como um fato [...] que “a multidão sem instrução” seja obrigada a um trabalho “forçado” e, portanto, seja “privada de liberdade”; também propõe, como sabemos, introduzir na França o trabalho servil ou semi-servil, a que deviam ser submetidos os cidadãos passivos [...] o porta-voz do Terceiro Estado e da burguesia liberal francesa fala da “maior parte dos homens” como “instrumentos humanos da produção” ou como “instrumentos bípedes”, retomando em última análise a categoria de que se serve Aristóteles para definir o trabalho servil.” (LOSURDO, 2004, p. 45)
A democracia liberal na Europa nasceu censitária, excluindo a maioria pobre que não pagava imposto. Eram excluídos, também, as mulheres, os jovens, os analfabetos e os estrangeiros. Nos Estados Unidos, excluíam-se os escravos. A liberdade dos liberais não era igual para todos. Os liberais preferiam reconhecer que os homens deveriam ser iguais diante de Deus e, no máximo, diante da lei – cuja interpretação ficava reservada a uma justiça de classe que eles se reservavam o direito de controlar –, mas irredutivelmente desiguais entre si.
O voto censitário, porque limitado aos cidadãos ativos – identificando como passivos a maioria pobre que, no final o século XVIII, ainda não pagava impostos –, foi inscrito na Constituição francesa de 1791. Foi por intermédio de longas lutas políticas – cartistas na Inglaterra, a revolução de 1848 na França – encabeçadas pelos socialistas que o direito de voto se universalizou. Os liberais temiam que, com a extensão do direito de voto aos não-proprietários, fosse eleita uma maioria de deputados que ousaria desafiar a propriedade privada.
Essa resistência política ao voto universal durante o século XIX, expressão do horror social burguês à massa subalterna, demonstrou-se, entretanto, historicamente infundada porque, ao longo do século XX, os regimes democrático-liberais lograram atrair para sua órbita os partidos de base operária burocratizados: primeiro a social-democracia, depois o stalinismo e, finalmente, a maioria dos movimentos nacionalistas revolucionários na periferia, como sandinistas e tupamaros.
Liberdade e igualdade são indivisíveis
O movimento operário nos últimos 150 anos foi o protagonista social da mais decisiva transformação da história humana: a aventura épica por um controle consciente sobre os destinos da sociedade, levando até o fim a promessa inscrita na Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade.
O socialismo foi o programa que inspirou a epopéia das revoluções do século XX. Os marxistas argumentaram que o sentido da luta dos trabalhadores consistiu, historicamente, em levar às últimas conseqüências a luta pela igualdade e liberdade como valores indissociáveis, portanto, que se definem um ao outro. Afirmaram que não poderia haver igualdade sem liberdade e vice-versa. Uma condicionaria a outra. Essa é também a opinião de Wallerstein:
“Que significa realmente o slogan ‘liberdade, igualdade, fraternidade’? O slogan da Revolução Francesa é familiar a todo mundo. Ele parece fazer referência a três fenômenos diferentes, cada um situado em três domínios entre os quais estamos acostumados a dividir nossas análises sociais: a liberdade no campo político, a igualdade no campo econômico e a fraternidade no campo sociocultural. E estamos igualmente habituados a debater a respeito de sua importância relativa, em particular entre a liberdade e a igualdade. A antinomia da liberdade e da igualdade parece-me absurda. Tenho dificuldades em ver como podemos ser “livres” se há desigualdade, já que aqueles que têm mais têm sempre mais opções que não são possíveis àqueles que têm menos e, por conseqüência, estes últimos são menos livres. E, do mesmo modo, tenho dificuldades em ver como a igualdade pode existir sem a liberdade uma vez que, na ausência de liberdade, alguns têm mais poder político que outros, donde se segue que há desigualdade. Não estou sugerindo nenhum jogo de palavras aqui, mas a rejeição da distinção entre liberdade-igualdade. Liberdade-igualdade é um único e mesmo conceito.” (WALLERSTEIN, 1989.)
Os revolucionários pequeno-burgueses mais radicais do final do século XVIII colocaram-se como desafio a conquista da liberdade política e da igualdade jurídica de todos os cidadãos. O horizonte social da revolução democrática era a eqüidade, porque ela seria o fundamento da fraternidade. O programa político da revolução democrática era a cidadania. Mas, liberdade e igualdade são indivisíveis. Em uma sociedade baseada na exploração do trabalho, ninguém é livre. Não há liberdade possível entre desiguais. A liberdade humana só é possível com o fim da exploração capitalista.
Se não formos todos livres, nenhum de nós será livre
A igualdade social é a condição da liberdade humana. A igualdade social não é a nivelação dos salários. O socialismo não é o aumento dos salários, mas a gradual extinção do dinheiro e da remuneração salarial. A igualdade social não é a uniformização das mercadorias. O socialismo é a ampliação e diversificação do consumo, e o fim da forma mercantilizada dos produtos. A igualdade social não é a diminuição das diferenças entre ricos e pobres, ou a divisão da propriedade. O socialismo é a satisfação das necessidades mais sentidas pelo controle social da produção da riqueza e o fim da propriedade privada.
Não podemos ser livres, enquanto não formos todos livres. Não há liberdade onde reina o medo. O medo do desemprego e da pobreza dilacera os trabalhadores, e o medo dos trabalhadores dilacera os capitalistas. Não estaremos livres do medo enquanto sobreviver um sistema que divide a humanidade em proprietários e assalariados.
A liberdade é uma síntese de direitos que só têm sentido se forem universais. Se não forem acessíveis a todos, são vantagens. O que são vantagens de somente alguns, são privilégios. Liberdade é o direito de opinião, de manifestação, de organização. É a liberdade de imprensa. É a liberdade religiosa. É a liberdade de ir e vir. É a liberdade sexual. Mas, direitos são sempre relativos, ou seja, são condicionados por outros direitos.
Não é difícil concluir que, em uma sociedade socialmente desigual, a liberdade de opinião dos que controlam a riqueza – e, claro, todas as outras liberdades – é maior do que a daqueles que não a possuem. A maior liberdade de alguns significa a perda de liberdade de outros. Onde não há igualdade, o direito unilateral de alguns é a usurpação do direito dos outros, portanto, a tirania. Não sendo universais, não são direitos, são privilégios.
Os liberais restringiam a igualdade possível à igualdade jurídica. Ou, na melhor das hipóteses, ampliavam-na apelando à eqüidade: a igualdade de oportunidades, a ambição de uma maior justiça diante da discriminação de chances dos ricos dos pobres. Os socialistas afirmavam que a liberdade só se completaria quando a humanidade fosse capaz de garantir a igualdade social. A igualdade social é um objetivo superior à igualdade de oportunidades.
Nunca existiu, evidentemente, em sociedade capitalista alguma, em lugar nenhum do mundo, a eqüidade, a não ser nos livros da lei. As relações de poder encarregaram-se de proteger os interesses da riqueza. A igualdade social só seria possível, segundo os socialistas, quando a humanidade se libertasse da propriedade privada e, portanto, da sanha do enriquecimento de uns à custa do empobrecimento dos outros, o que vale tanto para as relações entre as classes quanto entre as nações. Onde a exploração de uns sobre os outros se impõe, não pode haver igualdade.
A igualdade social – uma relação dos homens entre si – tem como premissa, portanto, o acesso à abundância para todos. E a liberdade humana – uma relação dos homens com a natureza – tem como premissa a satisfação das necessidades de todos. São um único e mesmo conceito que se desdobra em dois, se estabelecemos a relação dos homens entre si na sociedade ou com a natureza.
Liberdade e igualdade seriam, portanto, inseparáveis e estariam historicamente condicionadas pela possibilidade da abundância, da fartura, ou seja, pela capacidade social de gerar uma produção econômica que pudesse satisfazer às necessidades mais intensas de todos.
Para serem iguais entre si, os homens precisariam ser capazes de se emancipar da penúria ou, em outras palavras, libertar-se da opressão da natureza, desenvolvendo as forças produtivas para além das limitações materiais e culturais herdadas do passado.
Referências bibliográficas
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