Guy Debord e a Sociedade do Espetáculo
“A Sociedade do Espetáculo” é um filme que não iremos encontrar facilmente nas locadoras.
Para assistirmos essa obra, ou algumas das outras obras cinematográficas do pensador, poeta, cineasta e ativista político Guy Debord, teremos que nos valer da internet, ou mesmo de cópias feitas por integrantes da imensa legião de admiradores que ele tem em todo mundo. Além de seus filmes, também é difícil ter acesso as suas publicações , e, só recentemente, uma editora em Paris resolveu publicar suas obras completas, num volume de 2.000 páginas.
Mas, por incrível que pareça, as suas ideias e mesmo sua militância política encontram cada vez mais ressonância no mundo atual.
Segundo o filosofo alemão Anselm Jappe, autor do livro “Guy Debord”, isto se dá devido ao fato de que sua obra como um todo é inaceitável para aqueles que dominam a mídia em todo o globo, e, quando são divulgadas, suas ideias são banalizadas , como por exemplo, a voz corrente nos bancos escolares e nos estúdios de televisão, sobre o que é a sociedade do espetáculo.
Recorrendo a Anselm Jappe, diria também: “devemos lamentar essa desinformação? Quando li Marx pela primeira vez fiquei surpreendido por não ter ouvido falar dele nas escolas. Quando comecei a entender Marx, isso deixou de me surpreender.”
Também as teorias de Marx foram deturpadas, ou reduzidas a uma simples doutrina econômica acerca do empobrecimento pretensamente inevitável do proletariado, para em seguida, por isso não se dar plenamente, ser denunciada como uma teoria sem valor.
No caso de Debord, o entendimento de sua teoria vai muito além da constatação de ser ele um expoente das vanguardas artísticas, como os integrantes do seu grupo “A Internacional Situacionista, que queriam superar a própria arte através do “detournement” (desvio), ou mesmo da “teoria da deriva”, que se tornou famosa, inclusive, aplicada nas escolas de urbanismo em todo o mundo.
Detournement seria então, um procedimento utilizado na maioria de suas obras, inclusive na “A Sociedade do Espetáculo”, que consistiria na utilização de imagens retiradas de filmes variados, documentários históricos, spots publicitários, que são compartilhados por textos lidos em off, dentro da concepção de que a arte tem um valor universal, não cabendo a privatização de seus elementos por direitos autorais.
Seus filmes não eram comerciais, e tinham claramente um sentido político. Por isso, seu amigo Lebovici, que editou a maior parte de sua obra, antes de ser assassinado misteriosamente, chegou, inclusive, a comprar um pequeno cinema no Quartier Latin, onde durante um tempo seriam exibidos somente filmes de Debord.
Dentre muitas experiências nessa área, inclusive com a realização de filmes sem imagens, destaca-se o último de seus filmes que é : In girum imus nocte et consumimur igni , ( movemo-nos na noite sem saída e somos devorados pelo fogo), polídromo latino que pode ser lido da mesma forma, da direita para a esquerda.
Para compreendermos a teoria de Guy Debord precisamos saber, preliminarmente, o que é, de fato, aquilo que chamamos de Sociedade do Conhecimento- conceito que é amplamente aceito para nomearem-se as principais características de um tipo de sociedade que vai emergindo e substituindo a sociedade industrial, que conhecemos até então.
Esta sociedade, fruto da revolução tecnológica que tomou força a partir dos anos 50, tem, grosso modo, como principais características:1. globalização das economias e dos costumes, moldando um mundo cada vez mais igual, onde é reproduzindo o modus viventis da matriz ideológica – a sociedade americana;2. rápidas mudanças tecnológicas, fazendo com que o tempo útil da mercadoria seja cada vez menor, acentuando nela o seu valor de troca; 3. desmaterialização das mercadorias, aonde o mercado dos intangíveis vai substituindo o dos tangíveis, fazendo com que a imagem do produto tome o lugar dele próprio, como objeto de consumo;4. customização dos produtos, onde o consumo é cada vez mais dirigido, criando-se tribos definidas para este fim, além, é claro, da estrema concorrência à nível global.
Mas, o conceito de Sociedade do Conhecimento, por si só, não é suficiente para que possamos ter uma compreensão exata do mundo em que vivemos. Para isto teremos que utilizar outros conceitos, mais específicos e menos abrangentes do que o da Sociedade do Conhecimento.
Ora, tornou-se um lugar comum dizer que uma teoria tem caráter científico quando ela é demonstrável e pode ser aplicada numa realidade universal.
Num caso específico da filosofia, e da forma de se observar a sociedade capitalista contemporânea, parece-me que as idéias desenvolvidas por Debord no livro que denominou “Sociedade do Espetáculo”, e que é relatada através do filme do mesmo nome, podem ser plenamente demonstráveis no mundo contemporâneo: ele nos diz que a mercadoria é o nexo que estrutura a sociedade contemporânea – o mundo do presente-vivido, e me parece que este é um conceito concreto, visível a todos, passível de levarmos em consideração.
Vemos nos tempos atuais o capitalismo completar o seu ciclo final, após ter-se globalizado totalmente, banindo da terra outros modos de produção, que ainda insistiam em sobreviver.
Podemos dizer que ele parte agora para um novo momento- seu momento mais importante, o ápice da sua existência: a conquista das almas de todos os seres humanos.
A idéia é a de uma sociedade em que tudo se torna descartável. A busca por objetos é incessante e parte de uma equação que diz que ter esses objetos é sinônimo de felicidade. O consumo, então, acaba por reger nosso modelo de vida atual, definida pelo excesso de ofertas, demandas vorazes e liquidez destes mesmos objetos.
A atualidade seria, então, marcada por uma “cultura das sensações”, na qual imperaria o culto ao corpo e a beleza e certo hedonismo: tendência a querer obter permanentemente o prazer e evitar o sofrimento.
Desta forma, vemos o capitalismo tornar à todos consumidores, com objetos customizados para todos os gostos, com preços plenamente alcançáveis para aqueles que estão dentro do mercado de consumo, onde o conceito de “ter” que antes tinha substituído completamente o conceito de “ser”, dá lugar ao conceito do “parecer”, isto é: não é mais necessário se possuir um produto se uma cópia perfeita pode me dar a mesma sensação de satisfação, dentro do grupo social que freqüento, pois o que importa é a sensação que aquela mercadoria me dá.
Tal característica do capitalismo dá contas então de um dos maiores problemas estruturais de seu modo de produção, que é a existência constante das crises de superprodução. Globalizando os mercados e transformando a humanidade como um todo num exército de consumidores, o capitalismo abriu mão do trabalho como o elemento determinante da sua existência, através do uso continuado e cada vez mais incessante da tecnologia, notadamente da tecnologia digital, sucessora da tecnologia analógica. A descaracterização do trabalho e a transformação de todos em meros consumidores, eis aí a base de entendimento desta nova sociedade.
Regra geral, a observação das características desse tipo de sociedade foram feitas pelo filósofo francês Guy Debord, na década de 60, influenciando os jovens nas barricadas de Paris e em todo mundo.
Naquela ocasião, ele tornou claro que o espetáculo, adjetivo com que nomeava esta nova característica da sociedade contemporânea, seria o resultado e o projeto do modo de produção existente -que entendo eu ser o modo de produção capitalista- erigido para um novo momento da humanidade, uma a visão de mundo ( weltanschauung) da burguesia liberal que, em última instância, desenvolveu até as ultimas conseqüências os preceitos do mundo esclarecido.
Portanto, o espetáculo seria o elemento mais importante da atual sociedade produtora de mercadorias: como todo intercâmbio entre os indivíduos só se realiza por intermédio das mercadorias, então os indivíduos converter-se-iam em espectadores do movimento autônomo das coisas, tornando-se, inclusive, eles próprios mercadorias.
No espetáculo já não predominaria simplesmente a produção mercantil, mas a imagem. A separação, ou alienação do trabalho, consumada no âmbito da produção capitalista retornaria como falsa unidade no plano da imagem.
O espetáculo seria a autonomização das imagens, doravante contempladas passivamente por indivíduos que já não vivem em primeira pessoa. Ali, a imagem não reflete apenas a mercadoria, como numa banal teoria pseudocrítica do consumo, mas o conjunto da relação social capitalista baseada na separação. Por isso, o espetáculo não seria simplesmente um conjunto de imagens, um abuso do mundo visível, e sim um tipo particular de relação social entre pessoas mediada por imagens.
Tratar-se-ia, evidentemente, das relações de produção capitalistas, radicadas na alienação do trabalho, isto é, na total indiferença da produção em relação à vontade e ás necessidades dos produtores. A contemplação passiva das imagens, que foram escolhidas por outros, substituiria o vivido e próprio poder de determinar o futuro do indivíduo. O espetáculo torna-se o capital concentrado a tal ponto que se transforma ele próprio em imagem.
O espetáculo é, portanto, o capital que esgotou a fase de acumulação primitiva – dissolução dos últimos laços pré-capitalistas que ainda restavam como limites exteriores do capitalismo – e passa a reproduzir essa mesma acumulação como seu elemento interior e incessantemente renovado.
A separação dos homens de suas condições de vida foi estendida agora ao mundo todo e completada, não restando ao capital outra saída senão intensificar esta separação, privando do homem dos seus aspectos mais elementares – seus desejos, afetos, seus sonhos. Isolados, separados num mundo onde não tem mais nenhum papel ativo, sucumbe o homem a uma total dominação, invisível e implacável. Seria o racionalismo pleno de um mundo onde até o sonho é previsível e controlado.
Sou da opinião de que esta forma de observar o mundo, este pensamento de Guy Debord, insere-se na vertente das obras iniciadas, no inicio do século XX com os pensadores da Escola de Frankfurt, ou do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Frankfurt ,onde eles fazem a crítica do valor, de forma diferenciada da escola marxista oficial, presente principalmente nos partidos comunistas europeus.
Embora em nenhum momento, Debord, tenha comungado abertamente das teses dessa escola, suas idéias, assim como suas atitudes políticas, nos levam a ver similitudes no pensamento de muitos teóricos daquela escola, que acabam revendo os conceitos gerais elaborados pelo iluminismo, que servem de base para o pensamento ocidental da atualidade, e dão suporte para a sociedade da mercadoria.
Uma das obras mais conhecidas desta Escola e que nos leva a repensar esses conceitos é a “A Dialética do Esclarecimento” de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. Editada em 1947, em pleno pós-guerra, transformou-se em importante documento de análise filosófica da história humana, e em particular, sobre os conceitos gerais do iluminismo, que aqui eles chamam de esclarecimento.
O resultado de suas obras levava a um caminho diferente do marxismo oficial, profundamente integrado ao pensamento leninista e mais tarde ao estalinismo, que dominava a maioria dos partidos comunistas do mundo. Seus estudos utilizavam-se tantos dos pressupostos teóricos marxistas como da psicanálise freudiana, integração que irá perpetuar-se ao longo da produção teórica da maior parte dos membros do Instituto.
A Dialética do Esclarecimento é uma obra que tem um inestimável valor, por procurar responder as perguntas freqüentes que assolam o homem contemporâneo: por que após o avanço inquestionável da ciência que deu ao homem condições de superar a maioria dos males que afligem a sua existência, como a fome, a desigualdade, o medo e a exploração do homem pelo homem, ao invés de conduzir-se para um mundo de plena emancipação, dá testemunho do curso de uma nova barbárie?
Os autores, num escrito que desenvolveram propositalmente de forma assistemática, num texto complexo e difícil, nos fazem mergulhar nessa problemática, levando-nos para as origens da civilização: vendo nos mitos e na civilização clássica grega a gênese do esclarecimento, colocando-o como uma forma de libertação que o homem encontrou da natureza.
Deixando de abordar a gênese do esclarecimento à partir do pensamento ilustrado dos filósofos do século XVIII, notadamente dos conceitos de Kant, que criou na modernidade as bases racionais da sociedade em que vivemos, Adorno e Horkheimer partem do axioma de que “o mito já é o esclarecimento e esclarecimento acaba por reverter à mitologia”, e por isto o retornar de aspectos da interpretação da Odisséia de Homero, mormente os relacionados ao drama de tipo prometeico entre autoconservação e sacrifício, que de certa forma aborda a racionalidade humana, presente na civilização moderna.
No estudo dos conflitos dos homens com os deuses e na sua luta pela libertação, e condução de sua história, longe das amarras das forças naturais, subjugando-a aos seus propósitos, o texto nos leva a entender que longe de se tornar livre o homem cria para si um novo senhor, que o aprisiona: a lógica cientifica, a forma racional de ver e se relacionar com a natureza, que o afasta do mundo real.
Querendo ser livre o homem torna-se escravo da técnica e cria um mundo reificado aonde os valores humanos vão desaparecendo. O desencanto do mundo na verdade cria um mundo desumano. Para eles o mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento do seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder.
Debord também se preocupava com esta questão, isto é, a impossibilidade do homem moderno encontrar sua plena existência num mundo de ampla oferta de mercadorias.
Porém, o pensamento de Debord vai mais além do que os estudos dos filósofos da Escola de Frankfurt, pois o aspecto mais atual do seu pensamento está em interpretar esta situação do homem contemporâneo à luz da critica de Marx ao valor, partindo do estudo da visão marxiana desenvolvida na sua Crítica da Economia Política, colocando em relevo o conceito de fetiche da mercadoria.
Em ultima instância, entendemos o pensamento de Marx como uma constatação e uma critica da redução de toda a vida humana, no capitalismo, ao valor, isto é, à economia.
Opondo-se a interpretação dos partidários de Marx, que na sua geração, que viam a questão da exploração econômica como o mal maior do capitalismo e, desta forma, propunham uma nova sociedade onde a economia existiria mas não seria usada para a exploração de uma classe sobre a outra, Debord, remetendo ao próprio Marx, discorda desse conceito e concebe a esfera econômica, como ela própria, oposta a totalidade da vida. E ai está sua originalidade.
Recordando duas conseqüências da critica do fetichismo que Debord soube aprender com grande antecedência, assim nos diz Anselm Jappe : “em primeiro lugar, a exploração econômica não é o único mal do capitalismo, dado este ser, necessariamente, a negação da própria vida em todas as suas manifestações concretas. Em segundo lugar, nenhuma das inúmeras variantes no interior da economia baseada na mercadoria pode realizar uma mudança decisiva. Por isso é que seria totalmente inútil esperar uma solução positiva do desenvolvimento da economia e da distribuição adequada dos seus benefícios. A alienação e a expropriação constituem o núcleo da economia mercantil que, além do mais, não poderia funcionar de modo diferente, e os progressos da ultima são, necessariamente, os progressos das duas primeiras. Isso constitui uma autêntica redescoberta., considerando que o “marxismo”( refere-se aqui ao “marxismo” dito oficial), a par da ciência burguesa, não fazia “critica da economia política”, mas limitava-se a fazer economia política, levando em conta apenas os aspectos abstratos e quantitativos do trabalho, sem discernir ai a contradição com o seu lado concreto . Este marxismo já não via na subordinação da vida inteira às exigências da economia um dos efeitos mais desprezíveis do desenvolvimento capitalista,mas, pelo contrário,um dado ontológico cuja evidenciação até parecia um fato revolucionário.”
A “imagem” e o espetáculo de que fala Debord devem ser entendidas como um desenvolvimento posterior da forma-mercadoria. Têm em comum a característica de reduzir a multiplicidade do real a uma única forma abstrata e igual. De fato, a imagem e espetáculo ocupam em Debord, o mesmo lugar que a mercadoria e respectivos derivados ocupam na teoria marxiana.
Mas, é importante frisarmos que esses caminhos já tinham sido trilhados por György Lukás, no seu polêmico livro “História e Consciência de Classe, que sem dúvidas, influenciou o pensamento de Debord, pois foi o primeiro dos estudiosos de Marx que retomou o conceito de fetichismo da mercadoria.
Tal conceito que tinha aparecido em Marx na Crítica da Economia Política, foi relegado ao esquecimento pelos marxistas posteriores, tais como Engels Kautsky,Rosa de Luxemburgo, Lenine.E é esse conceito, a base do pensamento de Debord, quando elabora a teoria da Sociedade do Espetáculo.
Num momento em que vemos em todo o mundo uma repulsa de pessoas esclarecidas à “visão de mundo” da burguesia liberal, levar as ideias de Debord para a praça pública, através de seus filmes, importantes instrumentos didáticos para o entendimento das características do mundo contemporâneo, pode ser uma estratégia para aqueles que querem enxergar uma civilização pós capitalista, pois, como disse alguém: “se queremos mudar o mundo, é necessário primeiro entende-lo”.
Por: Arlindenor
Assistam ao filme ( legendado em português ) e reflitam sobre suas existências.
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