É a esquerda da mais-valia relativa quem mais tem contribuído para a expansão do capitalismo nos BRICS.
Os eixos fundamentais da esquerda da mais-valia relativa nos BRICS
Nos últimos anos muito se tem escrito
sobre a esquerda nacionalista portuguesa e sobre os impasses que ela
coloca. Ora, o maior perigo do nacionalismo no seio da esquerda não é
apenas a difusão de variadas formas de irracionalismo. É também o perigo
de, a pouco e pouco, levar os próprios contestatários a raciocinar nos
moldes preconizados pelos nacionalistas: a discussão centrada nos
assuntos do país de origem.
Para fugir a esta “armadilha” escrevi
este breve artigo sobre o facto de, neste século, ser uma parte da
esquerda (a esquerda da mais-valia relativa) quem mais tem contribuído
para a expansão do capitalismo em alguns dos países emergentes.
Combinando a mais-valia relativa com a mais-valia absoluta, sob a
hegemonia da primeira, e articulando o Estado central às prerrogativas
de expansão das empresas, é nos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e
África do Sul) que uma modalidade da esquerda dos gestores tem
conseguido fornecer oxigénio à modernização capitalista. Esta é a
esquerda dos gestores da mais-valia relativa, uma modalidade quase
ausente em Portugal.
Seria demasiada coincidência se a
ascensão dos BRICS não tivesse nada a ver com a presença de uma esquerda
da mais-valia relativa na governação destes países. Desde o caso do PT
no Brasil à reconversão do PC chinês, passando pela coligação de
esquerda que governa a África do Sul, sem esquecer os ex-KGBs que estão
no centro de poder da Rússia ou o governo do Partido do Congresso
Indiano que governo o país até Maio passado, parece-me que a
constituição de uma esquerda capaz de articular eficazmente o Estado e
as empresas é parte relevante no processo de evolução do capitalismo no
século XXI. Será da articulação entre Estados repressivos e ditatoriais
(como o caso chinês e russo) e da criação de condições para o
desenvolvimento pleno dos negócios das empresas (das ONGs às grandes
transnacionais) que o capitalismo encontrará fôlego para um novo ciclo
económico de expansão. A juntar a isto parece estar a ocorrer uma integração internacional cada vez mais interpenetrada e sólida tanto entre os BRICS, como entre cada uma destas economias e outros países emergentes.
Temos assim uma esquerda dos gestores,
uma esquerda que, sem esquecer a mais-valia absoluta, se tem centrado na
expansão da mais-valia relativa, precisamente porque se mostrou capaz
de, por um lado, absorver os protestos sociais e, por outro, fortalecer o
aparelho de Estado no sentido deste proporcionar melhores condições
infra-estruturais e de financiamento para as empresas. Parece aqui
contrariar-se a tese dicotómica e mecânica que contrapunha Estado e
mercado. Pelo contrário, o sucesso económico dos BRICS contraria esse
dualismo estéril, convocando a reflectir sobre as implicações e as reais
relações entre o aparelho de Estado e as empresas. Esquerda, Estado e
empresas são, nos BRICS, partes constitutivas e necessariamente
interdependentes de um mesmo sistema de poder. A esquerda tem sido nos
BRICS a vanguarda do Estado que, por sua vez, actua no sentido de
fornecer condições materiais e políticas para o avanço do poder e dos
investimentos das empresas.
Ao mesmo tempo, esta esquerda dos gestores tem sido inovadora política e socialmente.
Num primeiro âmbito repare-se que esta
esquerda não é uma mera cópia da tecnocracia europeia ou
norte-americana, apesar das suas cordiais relações de classe. Esta
esquerda dos gestores surgiu fundamentalmente em países que tiveram
algum tipo de movimentação operária de base nas décadas anteriores
(lutas operárias no final dos anos 80 no ABC paulista; lutas de base
aquando da Revolução Cultural tanto contra “elementos burgueses” como
contra o Estado maoísta; lutas contra o apartheid na África do
Sul; lutas no Leste europeu contra a burocracia soviética; lutas
seculares camponesas na península indiana) e soube utilizar o recuo das
lutas sociais para introduzir elementos da lean production toyotista em variados sectores.
Num segundo âmbito percebe-se que esta
esquerda utiliza o Estado como trave central da sua actuação
estratégica. Mas seria um erro reduzir a actuação desta esquerda a um
estatismo clássico de nacionalizações e de recurso à violência para
reprimir manifestações de rua. Pelo contrário, esta esquerda tem sido
capaz de, num mesmo passo, financiar ONGs e movimentos sociais e
introduzir elementos dirigentes destas estruturas na cadeia central de
poder. Associado a isto, esta esquerda da mais-valia relativa diverge da
esquerda estatista europeia na medida em que o Estado não se expande
por via da retracção da iniciativa privada, mas procurando o crescimento
de ambas. Esta articulação institucional expressa-se, no plano
internacional, na facilidade com que a tecnocracia dos BRICS participa
em investimentos transnacionais junto da tecnocracia norte-americana e
europeia. É, portanto, no pulsar dos processos de transnacionalização
global com os blocos europeu e norte-americano e dos processos de
transnacionalização intra-BRICS e com os restantes países emergentes que
esta esquerda dos gestores tem desempenhado um papel incontornável para
a expansão do capitalismo. Uma expansão de um ponto de vista mais vasto
(peso tendencialmente crescente dos BRICS na taxa de crescimento do PIB
mundial), mas também ao nível da implementação de sistemas de
organização eficientes no interior das suas maiores empresas. Neste
momento, os BRICS parecem estar mais avançados na consolidação de
alianças económicas entre si do que, por exemplo, o acordo de comércio
livre entre a União Europeia e os Estados Unidos. Ao nível económico, a
União Europeia, constituída por Estados com muito maior proximidade
geográfica, cultural e política, não tem conseguido finalizar o seu
projecto de integração económica e política a um ritmo desejável, que
lhe permita acompanhar os seus competidores. Portanto, a evolução das
economias deve quase tudo a dinâmicas de índole socioeconómica. A
discussão no plano cultural ou geoestratégico só serve para obscurecer
as dimensões político-estruturais e económicas em causa.
Com efeito, na próxima secção vou
abordar muito sucintamente dois episódios concretos mas que, vistos numa
perspectiva estrutural, apresentam alguns dos contornos fundamentais do
papel da esquerda da mais-valia relativa na basculação do toyotismo
para novos pólos de acumulação capitalista.
Dois exemplos de como a conjuntura se articula com a estruturaHá pouco mais de um mês ocorreram importantes greves na China :
«Simplesmente,
ainda não houve uma greve desta dimensão e magnitude na China moderna.
Enquanto as greves na China normalmente terminam assim que há resposta
às reivindicações sobre um determinado assunto, esta greve é indefinida e em escalada: uma espécie de negociação coletiva através do motim.
Aqui as reivindicações são mais estruturais; os trabalhadores
rejeitaram as migalhas caídas da mesa dos patrões e o protesto alastra
às províncias vizinhas. As mudanças na produção chinesa podem
repercutir-se na produção global. Como assinalou Jacques Rancière: “A
dominação do capitalismo a nível global depende da existência de um
Partido Comunista Chinês que fornece às empresas capitalistas
deslocalizadas trabalho barato e preços baixos, privando os
trabalhadores do direito à auto-organização”. Devido às greves, o
salário médio na China subiu 17% por ano desde 2009, e é hoje cinco
vezes maior do que era em 2000».
Não vou aqui discutir o seu potencial de
elevação das lutas para os próximos tempos, mas como este tipo de
mobilizações sociais se insere na estrutura mais vasta que tenho vindo a
comentar.
Para começar, reafirmo que é nos países
de crescimento da mais-valia relativa que ocorrem as maiores lutas
sociais. Os trabalhadores lutam mais quando há crescimento económico e
vêem que, como diz o texto, «as migalhas caídas da mesa dos patrões» não
chegam para satisfazer o direito a uma vida digna. Pelo contrário, em
períodos de crise económica os trabalhadores, justificadamente, têm medo
de perder o emprego, de perder salários, querem agarrar-se ao que ainda
os pode “safar”. As crises económicas geram movimentos de força da
classe dominante e ampliam a fragmentação dos trabalhadores. Por isso é
que a resposta dos trabalhadores nas crises é genericamente pontuada
pelo erguer das bandeirolas nacionais e dos patrioteirismos. Neste caso
na China, pelo contrário, o que anima a luta daqueles trabalhadores é a
reivindicação concreta laboral e não as tretas da soberania ameaçada e
da ingerência externa. São a vida e as suas condições concretas que
mobilizam as lutas que ou rompem com o capitalismo ou o modernizam,
obrigando as empresas a fazer concessões mas a aumentar a produtividade
do trabalho.
Por isso é que as lutas sociais
autónomas são sempre positivas. Na melhor das hipóteses podem desaguar
numa nova sociedade. Na pior das hipóteses, obrigam os gestores a
reformular os mecanismos de extracção do excedente económico.
De referir que o sucesso do capitalismo
chinês se deve à inovadora articulação entre os mecanismos mais modernos
da mais-valia relativa (investimento massivo, lean production,
empresariado moderno, internacionalização da economia) e os mecanismos
mais terríveis da mais-valia absoluta (sectores com baixos salários,
repressão laboral, Estado totalitário, ausência de liberdades
democráticas). Ao mesmo tempo, como as lutas sociais não conseguiram
romper esta articulação, fornecem uma base sólida para obrigar as
empresas a responder às reivindicações laborais com um aumento da
produtividade, conferindo um ainda maior dinamismo ao sistema. Mas ainda
há quem à esquerda ache que o capitalismo está “ligado à máquina”…
Um segundo exemplo vem do Brasil, onde a Câmara dos Deputados aprovou um Plano Nacional de Educação
em que é estabelecida a meta de, em 2024, o Estado brasileiro atingir
um investimento de 10% do PIB em educação. Propaganda para ver se
contraria os protestos nas ruas antes e durante o Mundial de Futebol, ou
uma real intenção de prosseguir nos trilhos da mais-valia relativa?
Provavelmente as duas coisas, já que, em contextos de crescimento
económico, a consagração parcial de reivindicações é sempre parte
estruturante de uma nova alavancagem do desenvolvimento económico.
Se
esta proposta de Dilma Rousseff se concretizar, é mais um caso notável
de um partido e de uma governação de esquerda que souberam, num mesmo
movimento, revigorar a classe dos gestores, modernizar a economia e
qualificar a força de trabalho, aproveitando a contestação da rua como
motor relevante de todo este processo. A meu ver é impossível desligar a
força transformadora do PT no capitalismo brasileiro (e mundial) sem se
fazer referência, por um lado, ao papel dos movimentos sociais de 1985 a
2002 e, por outro, à capacidade que esse partido teve posteriormente
para ir contendo e absorvendo a contestação social que ocorreu fora dos
movimentos controlados pelos seus dirigentes. Pelo meio ainda conseguiu burocratizar e governamentalizar uma série de movimentos, bem como não tem tido grandes problemas em usar a força policial.
Mas o essencial do processo iniciado em 2002 com a eleição de Lula da
Silva passou pelo que escrevi na antepenúltima frase e que volto a
mencionar: é um caso notável de um partido e de uma governação de
esquerda que souberam, num mesmo movimento, revigorar a classe dos
gestores, modernizar a economia e qualificar a força de trabalho,
aproveitando a contestação da rua como motor relevante de todo este
processo. PT, a esquerda dos gestores da mais-valia relativa no Brasil.
Para terminar
Num outro artigo
escrevi que «dada a inseparabilidade do Estado e da economia
capitalista, a esquerda dos gestores, seja qual for a sua forma
histórica específica, situa-se dentro dos processos de reconversão
institucional do capitalismo a partir do aparelho de Estado». Não me
irei alongar sobre o assunto mas lembrar que, apesar de esta esquerda se
concentrar em postos-chave do Estado, isso não significa que seja este o
centro da acumulação de capital. Ao contrário das experiências
capitalistas de Estado do passado, há uma integração e uma ampliação de
interesses entre os gestores localizados no Estado central, nos
sindicatos, nos movimentos e nas empresas. É isso que permite que a
esquerda dos gestores esteja a ser bem-sucedida na internacionalização
das empresas. Uma lista das 100 empresas mais desafiantes compilada
pelo Boston Consulting Group incluía 58 provenientes do continente asiático, onde a China e a Índia despontavam. Em consonância, 83 das 500 empresas listadas pelo índice Fortune 500 localizam-se
nas economias emergentes asiáticas da China, Índia, Malásia e
Tailândia. Isto demonstra duas coisas. Primeiro, o capitalismo continua a
expandir-se e os países governados pela esquerda dos gestores estão na
vanguarda desse processo. Segundo, a integração mundial das economias
emergentes, especificamente as que são lideradas pela esquerda dos
gestores, não tem ocorrido com significativas fricções. Pelo contrário, a
integração económica tem sido acompanhada por uma integração dos
gestores. É a diversidade política, territorial e de origem que tem
fortalecido a classe capitalista dos gestores no plano global e não o
contrário. É a plasticidade social e institucional que proporciona aos
gestores actuar em cada vez mais tabuleiros territoriais e sociais e, a
partir daí, podem expandir as relações sociais capitalistas.
São Francisco que me perdoe, mas é de uma pobreza franciscana que ainda haja à esquerda quem ache
que na China apenas imperem «condições que abriram portas a que hoje um
chinês monte um computador a troco de uma tigela de arroz». O mais
poderoso dos BRICS tem crescido exponencial e ininterruptamente durante
três décadas e ainda há quem ache que isso apenas se deveria a aspectos
unicamente derivados da mais-valia absoluta. Hoje existem transnacionais
colossais de todos os BRICS precisamente porque articulam a mais-valia
absoluta com a mais-valia relativa, mas tendo esta como ponta-de-lança.
Seria impossível as transnacionais competirem internacionalmente e numa
tal vastidão de mercados e de investimentos se apenas se alicerçassem
nos mecanismos da mais-valia absoluta. Não é por acaso que, em conjunto,
a «China e a Índia esperam atingir, em 2020, cerca de 1 bilião de consumidores de classe média», o que representará um mercado de 10 triliões de dólares. São muitas tigelas de arroz…
Por outro lado, se o modelo chinês (como
o dos BRICS no seu conjunto) fosse apenas esse das tigelas de arroz,
então Tiananmen não teria sido um ponto de viragem no capitalismo chinês
mas o primeiro episódio para uma renovada stalinização da sua economia.
No seio dos mecanismos da mais-valia relativa os momentos de repressão
dos trabalhadores são isso mesmo, momentos para derrotar lutas sociais
pela violência para subsequentemente absorverem aspectos dessas lutas
para ampliar o sistema de extracção da mais-valia. Por exemplo, e
continuando na China, Tiananmen não apenas não se repetiu como doravante
explodiriam centenas de greves reivindicativas que permitiram ao Estado
e às empresas responder com o aumento da produtividade do trabalho. Num
contexto histórico em que os salários cresceram, só uma produtividade
mais elevada poderia compensar esse aumento de custos (momentâneos) para
os capitalistas. Ora, este é o mecanismo da mais-valia relativa, o da
modernização capitalista, o eixo prevalecente no desenvolvimento
económico dos BRICS.
Na Europa a esquerda dos gestores da
mais-valia absoluta continuará a apostar na divisão nacional dos
trabalhadores. Nos BRICS a esquerda dos gestores da mais-valia relativa
continuará a expandir as relações capitalistas. Numa parte do globo, os
gestores e candidatos a gestores fomentam a fragmentação dos
trabalhadores. Noutra parte do globo, a outra esquerda dos gestores tem
aproveitado as lutas sociais e o seu património passado para incrementar
a mais-valia relativa. É possível uma esquerda sem gestores?
Por: João Valente Aguiar
De: Passa Palavra
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