terça-feira, 17 de março de 2015

O reascenso do conservadorismo no Brasil. Será este o saldo político da governança lulo-petista?

O conservadorismo político e cultural que é o óvulo fecundado do incesto entre os aparelhos ideológicos dominantes e da força da tradição encontraram na governança  lulo-petista a barriga de aluguel adequada para o desenvolvimento do feto conservador que re-nasceu para as ruas neste dia 15 de março de 2015. Um verdadeiro Frankenstein político.

Um espectro ronda o país: é o espectro da direita conservadora. A direita conservadora tem posto a cara a mostra, e pela primeira vez em 50 anos, tem tomado as ruas e ameaçado determinar os rumos da política brasileira.             Formada pela burguesia econômica, classe média alta e setores da classe média baixa, uma amontoado de componentes políticos, econômicos, culturais, étnicos, regionais e ético/morais, tem dado o tom do seu avanço nos mais diferentes segmentos da sociabilidade brasileira. Embora, muito diversa em suas manifestações e representações sociais, tem ganhado notável coesão nos últimos anos. O antipetismo e com ele a refutação de todas as expressões políticas e culturais de esquerda – direitos humanos, liberdades individuais, pautas minoritárias, políticas sociais, etc. – têm sido o nexo mais evidente de seu momento ofensivo prático.
            Faz-se necessário palmilhar os desdobramentos societários do transformismo sociometabólico brasileiro ao longo dos últimos 50 anos, a fim de que possa-se compreender minimamente alguns componentes históricos que fundaram essa nova objetividade social.  
Roberto Schwarz, num pequeno ensaio escrito entre 1969/70 – Cultura e política, 1964-1969, alguns esquemas[1] – chama a atenção para uma indelével anomalia na sociedade brasileira do período, que, apesar da ditadura da direita, havia relativa hegemonia cultural da esquerda no país. Concentrada nos grupos diretamente ligados à produção ideológica, ele cita estudantes, artistas, jornalistas, parte dos sociólogos, e economistas, arquitetos, a parte raciocinante do clero, etc., a ocupar inúmeros santuários da cultura burguesa. Esta situação criara no interior da pequena burguesia uma geração massiçamente anticapitalista e democrática. Tal hegemonia, circunscrita ao aspecto da produção e formação cultural – já que a ditadura civil militar detinha o domínio político, econômico e social – produziu uma geração de lutadores contra a ditadura, pela redemocratização do país e em defesa da justiça social.
Pode-se dizer que esta hegemonia cultural da esquerda durou até o final dos anos 1990, e junto com o ascenso do movimentos de massa e o catolicismo progressista da passagem 1970/80, cumpriu papel fundamental para o processo de democratização do país. Além, de criar um caldo político/social que retardou em torno de dez anos a implantação das políticas neoliberais no Brasil. A derrota de Lula em 1989 e o desmonte neoliberal da década seguinte marcaram seu declínio.  Talvez seu último grande suspiro hegemônico tenha se dado em torno das lutas no último biênio do governo FHC. O início do governo Lula parecia dar um alento de sobrevida, o que não acabou acontecendo.
Desde então, verifica-se o reflorescimento de dois eixos centrais do conservadorismo: o primeiro, é o orgânico, aquele clássico da burguesia com todos os componentes da iniciativa privada, meritocracia, teologias da prosperidade, teologias da auto-estima e empreendedorismo, teologias do consumo de marcas[2], liberalismo econômico, defesa do status quo, mérito de origem, etc. desenvolve-se a partir da mídia especializada, nas escolas e universidades, igrejas, etc.; o segundo, é difuso, compõem a formação histórico/cultural e abrange as classes populares, e tem haver com o machismo, homofobia, racismo, fundamentalismo religioso, moral, padrão de costumes, etc. Desenvolve-se pela força da tradição no cotidiano e também é estimulado e difundido por agentes especializados nos mídias, igrejas, universidades, e outros.
Quais os elementos fundamentais que demarcaram a queda da hegemonia cultural da esquerda e o desenvolvimento do ativismo político da direita conservadora?
É preciso deixar claro de antemão que a direita nunca esteve ausente da cena social-política da sociedade brasileira, mas seu ativismo nas ruas esteve ausente durante 51 anos, quando retorna quase nas vésperas de completar aniversário. A dura derrota sofrida pela esquerda na eleição de 1989, junto com a queda da União Soviética, e a consolidação da hegemonia neoliberal no mundo todo, marcou a violenta inflexão do predomínio cultural da esquerda no Brasil.
O desmonte neoliberal dos anos 1990, e sua agenda ideológica de personificação do capital, esterilizaram dos aparelhos ideológicos burgueses, as principais possibilidades de reprodução e desenvolvimento de todo aquele potencial cultural que solidificara a hegemonia cultural da esquerda nas artes, nas universidades, nos teatros, cinemas, escolas, etc. O cerco à produção e a circulação das expressões culturais de esquerda se tornou ofensivo. Aos poucos, sobre  os auspícios da mercantilização que tomou conta de todas as esferas da cena cultural, todos os artistas, produtores e intelectuais foram, ou sendo adequados aos novos padrões da reprodução artística, voltadas exclusivamente a venda de um produto rentável com a expurgação do elemento crítico, ou posto a margem do processo produtivo e de circulação cultural. Junto com a eliminação do elemento crítico, a criatividade artística e intelectual também sofrera um duro golpe. Isso não quer dizer que não tenham havido importantes produções de profundo valor estético, artístico e intelectual a partir de então, a hipótese sugere que  num período de transição, essas manifestações passaram a ser marginais.  Os santuários da cultura burguesa, onde outrora a esquerda dava o tom, foram um a um sendo reapropriados culturalmente pelo complexo ideológico/cultural burguês/conservador. Desarmando o antídoto político do conservadorismo que passou a desenvolver-se livremente.
No campo do trabalho e da organização social as transformações da era neoliberal não foram menos dramáticas. A flexibilização e precarização das condições de trabalho e o desemprego crônico quebraram a espinha dorsal da estrutura sindical criada nos anos 1980. Soma-se a isso um processo intenso de onguização da sociedade civil e a burocratização dos aparelhos sindicais e partidários, retirando os potenciais progressistas e viabilizando um profundo transformismo nos setores predominantes da esquerda organizada.
A partir da eleição de Lula setores da burguesia e a classe média tradicional se rebelam contra a afluência social, mesmo que estanque. O que em 1964 foi contra as reformas e o “comunismo”, a partir de 2003 passa a ser contra as políticas sociais focalizadas e o “bolivarianismo”[3]. No entanto, no caso brasileiro, a afluência social fraca e despolitizadora aprofundaram o intenso desmonte que as organizações da classe trabalhadora já vinham sofrendo desde os anos 1990.
O lulismo como resultado de uma política de alianças deveras heterogênea e interesseira, acimenta um campo político incapaz de fazer reformas estruturais – portanto, incapaz de mobilizar e politizar a classe trabalhadora – e compila uma gama de políticas sociais contingentes, voltadas para a expansão do mercado interno. Intensificando a entrada de amplos setores das classes subalternas na lógica estritamente mercantil pelo aumento do consumo[4], criando novas e eficientes pontes de integração do conservadorismo político com o cultural. Relegando aos aliados conservadores a tutela política de contingentes importantes das massas populares, em troca de apoio político. Evidências como estas da Convenção Nacional das Assembléias de Deus[5], em que o Pr. Marcelo Crivella, ao lado do então Ministro Gilberto Carvalho, proferiu para 3.000 pastores que eles deveriam aplaudir Lula e Dilma por ajudarem os pobres, assim eles pagavam mais dízimo[6].
O “choque de capitalismo” promovido na era lula, no intuito de cumprir sua tarefa de reparação do atraso empreendeu um programa de desenvolvimento prenhe das maiores contradições, demarcando seu próprio limite de transformação e potencializando seu campo opositor mais ferrenho. Estava em curso uma nova etapa da modernização conservadora, retardatária e decadente.  Que apesar das melhoras pontuais, mas muito importantes, das condições de vida dos amplos estratos mais vulneráveis da população, abandonou-os politicamente aos ditames da sociabilidade mercantil, sob a tutela da agitação política e ideológica dos antigos e novos agentes conservadores, com seus robustos e eficientes aparelhos privados de hegemonia. Aos poucos a miséria econômica que vai sendo reduzida a patamares menos trágicos vai sendo contemplada por novas misérias humanas decorrentes da aceleração da vida social nos complexos urbanos, criando novas inquietações existências e carecimentos radicais[7] nas individualidades pessoais de classe.
A partir da segunda metade de 2011, com a ampliação das manifestações das frações da classe trabalhadora mais precarizada, um complexo sistema repressivo é montado pelo governo Dilma. As repressões cruéis nos pátios das grandes obras, nas periferias das grandes cidades, no trato da questão indígena, nos protestos estudantis de 2013 e nos protestos contra a Copa no Brasil, transformam-se na maior política social da presidenta Dilma. Encarregada de gerir o esgotamento programático da gestão lulo-petista.
Incapaz de mobilizar progressistamente as forças sociais da esquerda, o lulo-petismo, como um monocultivo de eucalipto[8], impede que qualquer força alternativa à esquerda se desenvolva em seu território. Esta esterilização é exclusiva para forças progressistas potencialmente autônomas, inclusive as existentes em sua própria base política (PT, CUT, UNE, MST, etc). Quando mobiliza o que resta de sua base política histórica, o faz sob a mais absoluta falta de honestidade, como nos três casos recentes: a campanha da Constituinte Exclusiva, nascida num blefe da presidenta Dilma em Junho de 2013, uma impossibilidade completa diante da correlação de forças atuais, além de ser um risco sério de regressão; na campanha eleitoral de 2014 com a peça publicitária do Coração Valente, imediatamente desvelado sob um pacote de ajuste fiscal e retirada de direitos; e a última, que aconteceu no dia 13 de março de 2015, com a realização de várias manifestações em defesa do governo acuado frente à ofensiva da direita, blindando qualquer possibilidade de uma crítica contundente ao seu pacote neoliberalizante, o único Golpe realmente em curso no Brasil.
O conservadorismo político e cultural que é o óvulo fecundado do incesto entre os aparelhos ideológicos dominantes e da força da tradição encontraram na governança  lulo-petista a barriga de aluguel adequada para o desenvolvimento do feto conservador que re-nasceu para as ruas neste dia 15 de março de 2015. Um verdadeiro Frankenstein político com os mais variados matizes: liberal clássico, liberal democrático, sociais liberais, trabalhadores e comerciantes autônomos e descontentes com o governo federal, liberal conservador, liberal porra-loca, fascista, neonazista, autoritários, xenófobos, trogloditas abomináveis (Bolsonaro), skinhead de direita, golpistas, racistas, etc. Fica-se a torcida para, ao menos que sejam hegemônicos os setores menos conservadores, e que mais medidas regressivas do governo federal com sua total falta de habilidade política não joguem ainda mais frações populares nesse turbilhão bizarro.
A peça de humor no estilo Sensacionalista[9] aplicada nas redes sociais neste domingo fatídico, em que numa suposta entrevista, o cantor Latino[10] afirmaria não estar preocupado com um novo Golpe Militar, pois se isto acontecesse, ele seria o Chico Buarque da nova ditadura, não é de todo descabido. Aliás, é deveras sintomático da tragédia social em que se encontra a esquerda brasileira cinco décadas depois em plena ditadura civil militar ela ter mantido firme a hegemonia cultural de valorosa qualidade.
Será este o saldo político da governança lulo-petista?

João Pessoa – PB, 16 de março de 2015
Luiz Fernando Ribeiro da Luz

[1] SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar – ensaios selecionados. Companhia das letras, São Paulo, 2014.  In.  http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/85141.pdf


[2] O professor Giovanni Alves usa essa terminilogia pra tratar das transformações sócio-metabólicas da sociabilidade brasileira na década de 2000 em Neodesenvolvimentismo e a nova miséria espiritual das massas no Brasil. “tríplice teologia do neodesenvolvimentismo, isto é, as teologias da prosperidade, as teologias da auto-estima e empreendedorismo; e as teologias do consumo de marcas.” http://blogdaboitempo.com.br/2014/07/07/neodesenvolvimentismo-e-a-nova-miseria-espiritual-das-massas-no-brasil/


[3] Hipotética possibilidade de integração latina-americana contra o imperialismo neoliberal. A década de 2000 apresentou a eleição de uma série de governos progressistas na América Latina, foi colocado em marcha pelo presidente venezuelano Hugo Chaves um projeto ambicioso de integração latino-america que tinha como eixo de desenvolvimento central a criação de um banco regional de desenvolvimento UNASUL. Lula nunca avalizou sua criação, mantendo-o em banho-maria. Consequentemente, estava dado aí o limite da expansão progressista sonhada por Chaves. Quase todas aquelas experiência passam hoje por uma crise grave, com nova ofensiva imperialista.

[4] O que Rodrigo Castelo vai chamar de Social Liberalismo. “... uma ideologia de manutenção da ordem capitalista que embasa uma série de intervenções políticas nas expressões da “questão social...”. CASTELO, Rodrigo. O social liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal. Expressão Popular, São Paulo, 2013. p. 276.

[5] Conjunto de Igrejas que difundem intensamente a teologia da prosperidade junto com outras doutrinações conservadoras.

[6] http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-e-dilma-ajudam-os-pobres-que-dao-mais-dizimo-diz-ministro-da-pesca,1012125

[7] As expressões são de Giovanni Alves.

[8] Também chamados de deserto verde, os monocultivos de eucaliptos são conhecidos por eliminar toda a fauna e a flora em sua área de abrangência.

[9] Um site de humor que parte nomes e assuntos em evidência para sugerir os contornos mais inusitados.

[10] Latino, curioso nome artístico de Roberto Souza Rocha (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de 1973) é um cantor de música pop brasileiro.

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