domingo, 7 de junho de 2015

Assalto à Gameleira

Nos debates sobre temas considerados urgentes para o país, muitos pontos podem ser levantados, mas quase todos nascem e morrem a partir de duas perspectivas básicas. Uma vê o mundo como algo distante e alheio da porta de casa para fora. Outro observa a própria casa como parte integrante do mundo. Este se preocupa com o que acontece a quilômetros de sua porta porque não ignora um pressuposto: o vento soprado à distância ganha força ao chegar em nossa janela. A definição, com outras palavras, é do filósofo Gilles Deleuze e consta de um pequeno vídeo sobre o que é ser esquerda hoje (prometo usar outros termos para evitar restrições gástricas e cognitivas).
No ranking das preocupações do país, designou-se que a impunidade sobre jovens infratores, eleitos os responsáveis pelo clima de insegurança dentro e fora de nossas casas, consta da lista das causas urgentes a serem resolvidas. A abordagem envolve dois pressupostos que se anulam. Uma diz: “quero uma solução, mas este não é um problema meu”. A outra responde: “quero (também) uma solução, mas este é um problema nosso”.
Ninguém, em sã consciência, diria ser natural ver um adolescente apontar uma arma na cabeça de quem quer que seja. Ou participar, desde muito cedo, da violenta cadeia da produção e distribuição de drogas. Há, porém, pontos e pontos a serem levantados. O índice de adolescentes armados é realmente alarmante? São eles os responsáveis pela insegurança de um país composto por jovens, adultos e idosos? Existe mesmo impunidade? Cadeia resolve? Medidas restritivas resolvem? Quando passamos a ser responsáveis pelos nossos atos?
Nesses debates, é comum ouvir sentenças inabaladas e nem sempre aberta aos fatos ou contrapontos – e quem vê a casa como uma entidade isolada do mundo costuma escorregar na própria ânsia.
Listo abaixo algumas das falas mais comuns ouvidas após escrever sobre a questão na semana retrasada:
“É só não fazer merda”.
“É a certeza da impunidade que leva o adolescente a praticar o crime”.
“O ECA protege bandido”.
Confortável em uma suposta distância higiênica de qualquer desvio, o sujeito que diz trabalhar, estudar e pagar impostos costuma usar sua própria zona de segurança para lavar as mãos.
O discurso triunfalista tenta fechar numa caixa escura um canhão luminoso do nosso fracasso. Sim: nosso. Esse fracasso começa de muitas formas, mas termina quase sempre num arremedo: “não me importo com o mundo que eu patrocino e contribuo para a (in)segurança das crianças, mas quero solução urgente caso essas crianças precocemente amadurecidas ameacem minha segurança”.
Olhada de casa para dentro, a violência pode ser só uma questão de escolha: apertar o gatilho ou não. Os caminhos que levam até a arma é que são ignorados. Vejamos o caso do “Assalto à Gameleira”, documentário de conclusão de curso em Jornalismo da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul sobre o assalto a uma propriedade rural em Campo Grande, capital do estado. No filme, dirigido por André Patroni, os estudantes tiveram a coragem de fazer o básico: ouvir os personagens. Assaltado, assaltantes, amigos, familiares, carcereiros, polícia, pedagogos, especialistas, professores, direção escolar, apresentadores de TV…todos são chamados para participar do filme. Todos, direta ou indiretamente, estão envolvidos em uma tragédia maior.
O resultado não é, como poderiam supor os alarmistas, um monumento ao vitimismo ou à mão indulgente sobre a cabeça de criminosos. No documentário, o crime é tratado como crime. O mérito do documentário é mostrar o mundo, o de casa e o exterior, como um mesmo mundo: um mundo de veredas que se perdem e se bifurcam.
A conclusão causa um desconforto considerável. Entre o mundo ideal, digno e seguro, e uma ação considerada execrável (um assalto, que de fato é condenável), existem uma série de pequenas tragédias de urgências proteladas: alcoolismo, violência doméstica, machismo, omissão, leis não aplicadas, despreparo do poder público, das autoridades, das escolas.
Em meio a tanta opinião formada por quem jamais leu o Estatuto da Criança e do Adolescente, os responsáveis pelo filme fizeram um trabalho aparentemente simples: mostraram que o documento, que completava 20 anos em 2010, ano da produção do documentário, era simplesmente ignorado não apenas pelos criminosos, ignorantes sobre seus direitos ou deveres, mas também pela sua família, seus amigos, o sistema carcerário e pela direção da escola onde estudavam os condenados.
A condenação, mostra o filme, começara muito antes de o carcereiro fechar as grades da unidade de ressocialização – uma unidade tomada pelo tédio, pelo descaso e pelas baratas.
Um dos garotos detidos, por exemplo, ganharia R$ 1.500 no assalto, o dobro do que ganhava como ajudante na fazenda. Dizia não ter dinheiro para comprar fraldas da filha recém-nascida e, por isso, topou a empreitada. Não tinha ideia de que poderia obter o benefício com a ajuda da prefeitura – no mundo de livre circulação de conhecimento, o acesso a informações é o primeiro selo do privilégio. Ali os direitos sociais, embora restritos, chegaram antes dos direitos civis. A consequência é um fosso considerável entre uns e outros.
Da mesma forma, quem defende o armamento como direito do cidadão poderia ver no filme uma consequência da própria campanha. Um dos adolescentes, que perdera a perna num acidente de trem (problema dele, certo?) se cansa de ser humilhado em subempregos e começa a fazer pequenos serviços para o tráfico. Descobre, então, o que qualquer adolescente da sua idade aprendeu nas escolas, propagandas, lições de moral: a gente é o que a gente veste, compra, ostenta. Morto em conflito, ele legou aos seus irmãos, que nada tinham com a história, dívidas e ameaças. Onde o Estado não atua, o cidadão se arma: com medo dos traficantes e sem ter pra onde correr, os irmãos mais novos começam a se armar. É claro que a história do abandono não poderia acabar bem.
Alguns, atrás do muro de casa, poderiam dizer: bastava ter estudado para escapar da vida, certo? A USP, afinal, tem portas abertas a todos, garante o menino rico que só queria ter aula de microeconomia e não queria debater as ampliações de acesso à universidade. Pois o documentário mostra que, naquele bairro esquecido, a direção escolar e os professores não tinham a menor ideia do seu papel no mundo. A diretora, entre o deboche e o conforto, fala sem qualquer constrangimento que JAMAIS havia lido o Estatuto da Criança e do Adolescente. Naquele bairro, um pesquisador entrevistado no documentário mostra que ninguém ali jamais ouvira falar dos direitos, nem em casa nem em sala de aula, mas quase todos conheciam alguém que acabou preso.
“Aqui funciona o regimento interno”, diz a diretora a certa altura do filme. Nada mais simbólico: de regimento interno a regimento interno, perdemos o sentido das leis universais – as mesmas que nos garantiriam, entre humanos, viver em segurança. A escola, quando ignora esses princípios, torna-se um depositário de crianças. À medida que não propõe luz ou caminhos, torna-se também uma forma de aprisionamento.
O ECA protege criminosos, diz o senso comum de quem, trancafiado em casa, pede soluções urgentes para um problema que não reconhece como seu. Se assistisse ao documentário, este saberia que os rapazes detidos antes mesmo de nascer não têm ideia sequer do que está escrito no documento.
Vítima do assalto, o fazendeiro chora ao relembrar o episódio traumático, mas o revide sobrevoa o próprio muro: até quando vamos suportar escolas que fingem ensinar e governos que fingem proteger?
As perguntas podem ser ampliadas. Onde estava o Estado quando a mãe de um dos criminosos procurava ajuda para fugir das surras do dono da casa? Onde estavam os defensores da pena de morte para estupradores quando mandavam uma mãe violentada se vestir decentemente e obedecer ao marido? Onde estavam os defensores dos “humanos direitos” quando os meninos que sonhavam em fazer curso de informática para tirar a mãe da verdadeira prisão domiciliar passaram também a ser violentados? Ou quando a mãe morrera de tanto apanhar em silêncio? Onde estavam os soldados da guerra às drogas que não se sensibilizaram com a cachaça vendida no bar que alimentava as fúrias do patriarca da porta de casa para dentro? Onde estavam os meritocratas para explicam como é possível estudar e planejar o futuro com botinas e armas apontadas para a cabeça? Que tipo de futuro construímos em escolas que obedecem o regimento interno e desconhece qualquer noção de direitos e cidadania?
Em outro depoimento, um juiz da cidade se queixa da falta de estrutura do conselho tutelar da cidade (uma profissional para dezenas de milhares de habitantes) e pergunta: o que dá mais votos na eleição, um trabalho invisível de orientação e proteção à infância ou imagens de prisão e apreensão?
As perguntas sobrevoam nossas casas. Podemos tirar delas uma conclusão quase óbvia. Por exemplo, que o crime e os riscos de ser pego desgraçadamente ainda compensam quando a vida, dentro ou fora das grades, é rebaixada a quase nada. A outra opção é erguer muros para evitar que as perguntas atinjam a nossa mais arraigada convicção: a de que nós (escola, família, formadores de opinião, Estado) não temos culpa nessa tragédia chamada Brasil.



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