quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Qual verdade?

Por Edson Teles.
O Congresso Nacional deve aprovar hoje, em regime de urgência urgentíssima, o Projeto de Lei do Executivo que trata da criação da Comissão Nacional da Verdade. Supostamente, esta instituição teria como função apurar os crimes de graves violações de direitos humanos ocorridos durante a ditadura militar. Contudo, ao ler o Projeto com um mínimo de atenção, verifica-se que a verdade sobre a violenta repressão durante os governos militares, os quais contaram com forte apoio civil, torna-se um objeto raro neste processo.
O governo brasileiro busca impor um projeto de lei sobre a Comissão da Verdade sem ouvir a sociedade brasileira, em especial sem dar voz às vítimas e seus familiares e, ressalte-se, por meio de um ato de exceção: a votação em regime de urgência urgentíssima, pelo qual são dispensadas as formalidades regimentais devido ao caráter inadiável ou emergencial do tema em questão. Ora, como pode ser inadiável um assunto que por mais de 30 anos tem sido ocultado por acordos necessários e emergenciais? Será que depois de mais de 25 anos de democracia a sociedade brasileira não tem vida política qualificada o suficiente para discutir como quer abordar sua história e suas consequências para o presente? Por que tanta pressa? O que torna a Comissão da Verdade uma votação inadiável neste momento?
É muito provável que a urgentíssima necessidade de aprovação do projeto esteja vinculada à questão de qual verdade ou quanto dela a Comissão irá apurar. O projeto do governo, amplamente anunciado como aceito pelas Forças Armadas, indica em seu primeiro artigo todo o problema colocado. Vejamos como este artigo começa: “Fica criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade (…)”. No Artigo 10º se esclarece o que isto quer dizer: a Comissão da Verdade não terá estrutura, orçamento e funcionamento autônomo em relação ao poder Executivo. Ela dependerá do “suporte técnico, administrativo e financeiro” da Casa Civil. A Comissão prevista não terá independência e autonomia para a realização de seus trabalhos.
Segue o Artigo 1º: a Comissão será criada “(…) com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas (…)”. Praticadas por quem? Será que já não é evidente para a história do país que houve uma grave e violenta ditadura no país? Por que não consta do Projeto as palavras “responsável” ou “responsabilidade”?
Bem, talvez o Estado ditatorial não tenha sido nomeado para que o restante do artigo esclareça a questão da responsabilidade. Retornemos à leitura do Artigo 1º: “(…) praticadas no período fixado no Artigo 8º. do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (…)”. O que será este Ato? Seu teor diz: “É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição (ou seja, 1988), foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares (…)” (grifos e comentário nossos). Como assim? A ditadura não foi de 1964 a 1985 (ou 1988, se a referência for a nova Constituição; ou ainda, 1989, se for a primeira eleição direta para presidente)? Então, quais violações de direitos humanos serão examinadas e esclarecidas entre 1946 e 1988?
Segundo documento do Ministério Público Federal (“Nota Técnica sobre o Projeto de Lei que cria a Comissão Nacional da Verdade”, de abril de 2011), “tal enfoque amplia demasiadamente o objeto da Comissão”, com “um risco de que a Comissão perca o foco”. O documento do Ministério Público informa que o Artigo 8º. do Ato é um dispositivo que “estipulou normas diversas (…) , pois o resultado final era o mesmo: anistia para perseguidos políticos, independente da natureza da perseguição”. Novamente, parece que o desejo de conhecer a história do país está sendo escamoteado.
O Artigo 1º do Projeto do governo continua: a Comissão irá “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos (…) a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (grifo nosso). Qual reconciliação? Ainda vivemos o conflito da época da ditadura? O projeto de lei do governo, este mesmo que anuncia o Brasil como uma democracia consolidada e de economia forte, está dizendo que as relações entre civis e militares ainda existem? Que há algo de autoritário no Estado de Direito?
Resta algo da ditadura em nossa democracia que surge na tutela militar da política e expõe uma indistinção entre o democrático e o autoritário no estado de direito. A violência originária de determinado contexto político mantém-se seja nos atos de tortura ainda praticados nas delegacias, seja na suspensão dos atos de justiça contida no simbolismo da anistia, aceita pelas instituições do Estado como recíproca, agindo em favor das vítimas e dos opositores, bem como dos torturadores.
A memória dos anos de repressão política, por terem sido silenciados nos debates da transição, delimita um lugar inaugural de determinada política, cria valores herdados na cultura e que permanecem, tanto objetivamente, quanto subjetivamente, subtraídos dos cálculos da razão política. Se alguns países latino-americanos dedicam-se à criação de novos investimentos em direitos humanos, o Brasil mantem-se como modelo de impunidade e não segue sequer a política da verdade histórica.
Houve aqui uma grande ditadura, mas os arquivos do regime de exceção não foram abertos, não apuraram as circunstâncias dos crimes e a localização dos desaparecidos.
Merecedor de nota foi o casuísmo no trâmite do projeto da Comissão da Verdade apresentado ao Congresso Nacional, em maio de 2010, dois dias antes de iniciar o julgamento do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). Neste processo, o Brasil foi condenado a apurar as circunstâncias dos assassinatos e tortura de militantes da Guerrilha do Araguaia (1972-1975), localizar os corpos desaparecidos e punir os responsáveis por tais crimes. Da mesma maneira casuística temos hoje a necessidade urgentíssima de aprovação do Projeto que ocorre próximo à reunião da Corte da OEA, momento em que será avaliado se a sentença está sendo cumprida; e, não menos intrigante, simultâneo ao discurso da presidente Dilma Rousseff na ONU.
As ambiguidades do projeto de lei do governo constituem bloqueios da política e da justiça e demonstram a urgência da participação da sociedade civil na formulação de qual Comissão teremos e de quanta verdade o Brasil suporta.
***
Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010).

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