Consumismo,
individualismo, imediatismo, exibicionismo parecem ser as molas mestras
de um enorme apassivamento social, banhado em satisfação compradora.
Há
duas vertentes críticas para pensar as transformações culturais e os
valores imperantes nas últimas décadas, e elas são complementares. A
primeira vertente aborda o aspecto profundo – e, portanto, mais
imediatamente incômodo e gritante – que foi a imposição de extensos
processos de expropriação (terra, direitos sociais, direitos
trabalhistas, sementes, etc.), acoplada a uma gigantesca concentração de
riqueza em todo o mundo (e o Brasil não foi exceção, com seus muitos
milionários). As privatizações dos serviços públicos foram acompanhadas
pela expansão de empresas privadas de saúde, de educação, previdência e
outras, além da generalização de formas de contratação de trabalhadores
com escasso futuro. As enormes demissões dos anos 90 intimidaram os que
mantêm seus empregos. Assim como os demais trabalhadores, os
temporários, bolsistas, precarizados de múltiplas formas, terceirizados
(que sabem que seus contratos assinados em carteira não embutem
carreiras), PJs, etc., contam com escassa segurança para o futuro.
Para
o grande capital, em ritmo alucinado, trata-se de capturar o mais
rápido possível as exacerbadas (e longamente contidas) necessidades de
extensas parcelas da população, e a massiva propaganda midiática é sua
arma ideológica.
Os
vínculos mais ou menos precários de trabalho e vida não impedem o
acesso a crediários e empréstimos a cada dia mais imediatos e fáceis.
Precisamos comprar o máximo o mais rápido possível, antes que ocorra a
próxima reviravolta ou a demissão. Juntam-se duas pontas do drama: os
que precisam de muitas coisas mas sabem de suas limitações encontram os
que precisam vender muito, em escala crescente, e de qualquer forma.
Instala-se uma espiral na qual os valores humanos esfumam-se nos preços,
nas reluzentes prateleiras, nos aparelhos tornados infernalmente
necessários mas descartáveis. Comprar se torna urgente, angustiante,
fictício, estimulante e anestésico. Urgente, pois precisamos suprir
necessidades reais, em geral fora de alcance do bolso. Angustiante, uma
vez que a exacerbação da oferta e das propagandas (atingindo
principalmente as crianças) é impossível de ser saciada. Comprar se
torna solução fictícia porém estimulante: a impotência frente aos
problemas efetivos parece diluir-se na compra de substitutivos (em lugar
da saúde, o tranquilizante; em lugar do alimento, a comida envenenada;
no lugar do encontro entre pessoas, as vitrines; no lugar da beleza, a
contrafação química ou cirúrgica). Converte-se no pior anestésico, pois a
compra inútil aplaca a tensão mas repõe e aprofunda a espiral.
Se
esfumaça também a democracia, realizando as piores e mais cínicas
antecipações dos liberais, para os quais ela se reduz a um mercado
eleitoral, onde se vendem produtos votáveis. Entre uma e outra eleição,
segue a gestão dos grandes interesses monopolizadores. As aspirações de
transformação social parecem ajustar-se ao cenário conformista, atuando
nas brechas de pequenos possíveis.
Consumismo,
individualismo, imediatismo, exibicionismo parecem ser as molas mestras
de um enorme apassivamento social, banhado em satisfação compradora. A
humanidade se dilui no shopping. A dominação parece perfeita. O capital
parece ter obturado os poros da história, vedando-a para outros futuros.
Os mais altos valores, se não estão à venda, ficaram fora de moda.
Dessa
desolação se descortina a segunda vertente, a que procura pescar dos
elementos objetivos e subjetivos apresentados acima o que é contradição,
movimento, processo e, portanto, possibilidade. O rebaixamento das
expectativas sociais ocorreu no compasso da mais impactante socialização
do processo produtivo já ocorrida na história, onde o menor objeto
disposto na prateleira do shopping solicitou trabalho de milhares de
seres sociais, dispersos no planeta mas integrados sob a coordenação
milimétrica, difusa porém tirânica, de proprietários de enormes
capitais, que em proporção gigantesca precisam valorizá-lo.
Valores
solidários e reivindicações igualitárias e não desapareceram, ao
contrário: estão contidos por massas crescentes de valor precisando
valorizar-se. As aspirações emancipatórias perduram. Para que continue
agindo a contenção anestésica e aparente do consumismo, submerso até o
pescoço em sofrimento e dívidas, tal como um dique prestes a ruir, é
preciso abrir vias de escape. Responsabilidades sociais empresariais,
empreendedorismos, terceiras vias, capitalismo verde, rehumanizações
impossíveis do capitalismo são requentadas às pressas, de maneira a
tentar converter a energia transbordante de humanidade que quer mais e
além do shopping, mais e além do planeta devastado e da vida sem
sentido. Constituem-se novas modalidades de empurrar para a frente a
valorização, aprofundando as dívidas, procurando converter inquietações
em adequação passiva. O termo conversão é importante: é porque
existem lutas a irromper com teores para além do capital, que as
diferentes burguesias precisam convertê-las em filetes contidos,
redirecionados para encher ainda mais a escandalosa represa do capital a
valorizar-se.
Por
essa mesma razão, não hesitam sequer a utilizar as expressões das lutas
populares (a solidariedade, a participação, a igualdade),
cuidadosamente esvaziadas do conteúdo original, a substituir por
mercantil-filantropia e por pobretologias que ocultam cuidadosamente as
formas de produção da pobreza e da desigualdade. Para essa operação,
contaram com uma esquerda que, formada na luta de classes e ágil na
retórica, abandonou seu campo original e se oferece como a melhor
qualificada para essa conversão.
Os
valores não desapareceram sob os grotões ou nas grandes cidades. É por
existirem que a conversão é necessária. No entanto, esse é um jogo
perigoso. O reservatório transbordante de capitais e de energias
reconvertidas não pode assegurar essa forma de política hoje hegemônica.
A crise ronda. Pode retomar formas truculentas, como a ascensão de uma
velha direita na Europa; pode se defrontar com o recrudescimento das
verdadeiras lutas de classes, agora dispostas a destruir esse dique.
Fonte:MCP
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