quinta-feira, 13 de setembro de 2012

O MARXISMO ESTÁ MORTO

Para José Guilherme Merquior, o ensaísta e embaixador do Brasil no México, a teoria marxista não tem nenhuma perspectiva e não se sutenta à luz da razão (entrevista publicada em 1987)

André Singer


A morte de Marxismo é o mote preferido das últimas intervenções do ensaísta José Guilherme Merquior, 46, embaixador do Brasil no México e hoje, talvez, o maior polemista ativo na cultura brasileira. Merquior, cujo último livro é "O Marxismo Ocidental" (Nova Fronteira), vem assestando sua metralhadora giratória sobre autores e conceitos básicos do marxismo, como mais-valia e alienação. Entre os principais atacados está o alemão Jurgen Habermas, considerado por muitos o maior filósofo marxista vivo. De passagem, lança farpas sobre o também ensaísta diplomata brasileiro Sérgio Paulo Rouanet, por suas tentativas de fazer "ligações" entre Habermas e Foucault.
Categórico, Merquior não vê nenhum horizonte para o marxismo. Tece elogios a um certo "marxismo analítico", desenvolvido em algumas universidades européias e norte-americanas, mas não sabe se isso pode mesmo ser considerado marxismo. Para ele o marxismo tem raízes religiosas e nenhuma de suas principais teses resiste ao exame da razão.
Há três meses morando na agradável residência oficial da embaixada brasileira na Cidade do México, Merquior concedeu lá esta entrevista, um dia antes da chegada do presidente Sarney à capital mexicana, há duas semanas. Foi uma pausa entre os preparativos para mais uma festa da "unidade latino-americana". Aliás, soa curioso ouvir o erudito Merquior, na Cidade do México, se referir a torto e a direito à tal "unidade latino-americana". Mesmo se dizendo dedicado "full time" à diplomacia, Merquior anuncia que já tem outro livro na gaveta.
A seguir os principais trechos da entrevista:
Folha: O sr. acha que existe uma crise do marxismo e do pensamento da esquerda, hoje?
José Guilherme Merquior - A crise do marxismo, tanto quanto eu possa ver, é permanente, quer dizer, eu não a sinto como uma conjuntura ou um modismo ideológico que, digamos, daqui a dez, quinze ou vinte anos estaria superado por uma possível revivescência, uma possível renascença do marxismo. Eu acho que o marxismo está, realmente, como proposta teórica, considerada no que lhe possa restar de unidade, num momento de liquidação. Os marxismos seriam um outro problema, porque o campo marxista se fracionou de tal maneira, teoricamente, que há marxismos. Eu posso contemplar alguns marxismos com capacidade de sobrevivência. Mas a questão de saber o grau de autenticidade marxista desses marxismos é uma questão muito cabeluda. Por exemplo, no chamado movimento do marxismo analítico, do qual pouco ou nada se tem falado no Brasil. Todo mundo se preocupa no Brasil com Habermas e outras tendências a meu ver infinitamente menos fecundas. Mas é perfeitamente possível que se diga que o marxismo analítico é apenas um marxismo pela metade ou marxismo sem luta de classe, marxismo sem profecias progressivas.
Folha: O que é o marxismo analítico?
Merquior - Eu chamo de marxismo analítico naturalmente esse movimento - que quase não é um movimento, o número de protagonistas ainda é reduzido, mas apesar de reduzido é muito brilhante -que se consubstancia em obras recentes, todas basicamente da década e de 80 ou do meio da década de 70 para cá, do John Elster, do Jerry Coehn, que são pessoas que reexaminaram em profundidade o conceito de exploração, o conceito de alienação e, sobretudo os instrumentos metodológicos que a tradição marxista utilizou, tanto Marx quanto seus sucessores da época da 2a. Internacional, ou posteriores, como os marxistas ocidentais, utilizaram. É um movimento de grande interesse intelectual, que eu acho que é o maior desafio intelectual hoje dentro do marxismo. Mas o que eu queria deixar claro é que o conjunto de conclusões a que alguns desses autores chegaram, como é certamente o caso do mais brilhante e produtivo deles que é o próprio Elster, são conclusões que o leitor inteligente e despreconcebido fica na dúvida se deve considerar conclusões marxistas ou conclusões pós-marxistas.
A minha tendência pessoal é considerá-las conclusões pós-marxistas porque resta muito pouco do sistema marxiano depois dessa filtragem crítica realizada pelo marxismo analítico. Essencialmente o que restaria aquilo que o Raymond Aron gostava de chamar do senso dos determinismos. Aquilo que Raymond Aron quase que poeticamente chamava de tema da infra-estrutura, que eu acho, aliás, que é uma coisa de muita substância e que realmente, nós devemos, na história das idéias, principalmente a Marx. Marx, não é à toa, continua a ser, com toda justiça, considerado como um dos principais fundadores da ciência social. Por quê? Por causa da ênfase posta no tema da infra-estrutura, quer dizer, a proposta do materialismo histórico, como enfoque de baixo para cima, como um enfoque que busca, na tentativa de explicar fenômenos sociais, um conjunto de determinismo, um conjunto de condicionamentos, no sentido forte da palavra evidentemente, mas não necessariamente na sua interpretação dogmática, transformando esse condicionamento numa espécie de lei universal, de "passpar tout" de lei universal da explicação histórica que, de resto é uma coisa contra a mal o próprio Marx se rebelou muitas vezes.
Esse marxismo analítico eu considero que tem condições de sobrevivência. Num plano que seria, digamos, entre o plano do conhecimento e o plano da política, mas, talvez, mais no plano da ação política do que no plano do conhecimento, eu acho que em determinadas áreas do mundo contemporâneo há um outro tipo de marxismo que também tem condições de sobrevivência apreciáveis que é, a meu ver, o que para simplificar eu chamaria de tendências neo-gramscianas. Acho que, especialmente em países como o Brasil essas tendências jogam uma carta historicamente ainda prenhe de possibilidades. E por quê? Porque justamente elas arquivam tudo o que pudesse haver e de demasiadamente isolacionista, intransigente, dogmático e sectário em postulações marxistas anteriores.
O meu caro amigo e principal neo-gramsciano brasileiro - creio que seja ele o principal de longe - Carlos Nelson Coutinho, numa carta muito recente concluía, voltando de uma recentíssima viagem à Itália, feita neste verão italiano, que na Itália o gramscianismo está em fracionamento, dispersão e mesmo sofrendo um adiantado estágio de negligência - coisa que, naturalmente, não o agradou, como fiel gramscianista que é. E se ele tem razão, eu diria que há outras áreas do globo que podem transformar o nosso querido Carlos Nelson em alguém bem menos pessimista e mais otimista quanto às posições gramscianas. E essa área é, de uma maneira geral a nossa área, por exemplo, latino-americana, onde as propostas neo-gramscianas têm um charme, um tipo de apelo e de charme que, se elas não estão tendo na Europa neste momento, podem ter em outros quadrantes.
Procurei dar dois exemplos de possíveis sobrevivências do marxismo: uma teórica, que é o marxismo analítico, mas com um vasto ponto de interrogação que, palavra de honra, não é absolutamente um preciosismo de minha parte, é uma questão muito séria, que tenho colocado nos meus próprios escritos sobre marxismo, no meu livro sobre marxismo ocidental, em particular. É a questão de saber se...bom, tudo bem com o marxismo analítico, eu concordo com quase 90% das suas conclusões. O problema é que essas conclusões são tão demolidoras do edifício marxista no seu conjunto, que as pessoas têm todo o direito de se perguntar se isso ainda é marxismo ou se seus autores se dizem marxistas por uma espécie de fidelidade sentimental. Já houve quem dissesse isso, já quem diga isso de John Elster, que ele é marxista porque ele acha bonito.
Você não precisa ser marxista para ter preocupações de justiça social, para ter preocupações até humanitárias, enfim, para querer corrigir abusos, onde quer que eles se manifestem, em qualquer estrutura social. O marxismo, afinal de contas nunca teve monopólio dessas posições e não há porque ter daqui por diante. Certamente não é agora que ele sofre um descrédito intelectual bem maior do que no passado que ele vai ter esse monopólio. Mas de qualquer maneira é o exemplo de possível sobrevivência de uma corrente que se auto-rotula, se autointitula de marxista, mas é uma corrente naturalmente muito rarefeita. Uma corrente que tem um pé em Oxford, um pé na Escandinávia, um pé nas universidades da Costa Atlântica, nos Estados Unidos.
A outra corrente que é bem menos teórica e bem mais política e não é tão rarefeita, seria a sobrevivência possível do neo-gramscianismo.
Folha : Qual é a vertente de pensamento que pode ser uma alternativa ao marxismo? O pensamento liberal, que historicamente tem origem antes do próprio marxismo?
Merquior - Eu diria o seguinte: primeiro, o marxismo como fecundante da ciência social ou da busca de mecanismos sociais, da busca de condicionamentos sociais, enfim, da aspiração a um projeto de explicação da mudança social, permanece como um exemplo muito instigante. Na esfera econômica, o edifício da teoria econômica marxista, quer dizer, do próprio Marx, para não falar de marxistas posteriores, está carcomido por um defeito de base, que é a própria teoria nuclear, a própria teoria da mais-valia. Eu não vejo mais intelectual de real preeminência no terreno econômico se aprestar mais em defendê-la. É uma teoria caduca. É uma teoria - eu não direi nem mais agonizante - simplesmente morta.
O marxismo analítico talvez tenha sido o elegante golpe de misericórdia nessa teoria. Se se atribui -como eu acho que só pode ser correto atribuir- à teoria da mais-valia lugar central no pensamento econômico de Marx, o pensamento econômico de Marx fica automaticamente arquivável. Agora, o marxismo, de qualquer maneira, era uma teoria globalista demais, uma teoria com a vocação de ser uma explicação global - muita gente pensa até erroneamente que por ser uma explicação global é uma explicação tão totalizadora que explicaria tudo, a forma dos pés daquela cadeira, a curva de um arco gótico e assim por diante.
O marxismo, de Marx, pelos menos, jamais se propôs a ser tão assim enciclopédico; não era uma chave para a explicação de cada detalhe do mundo. Mas sem dúvida nenhuma era uma explicação global como hoje nós não mais nos atrevemos a construir - intelectualmente falando. Daí o problema de saber se nós não nos atrevemos a construir porque somos simplesmente inferiores, intelectualmente falando, a Marx ou a Hegel, que era tão globalista quanto Marx. Ou se, ao contrário, pertence à própria natureza das coisas essa nossa impossibilidade moderna de abarcarmos tanto. Eu me inclino, sinceramente, à segunda resposta. Acho que o mundo moderno se tornou ao mesmo tempo mais complexo na realidade e mais sofisticado intelectualmente para poder se permitir essa visão tão globalizante, que ainda tem uma marca religiosa, mesmo em espíritos tão pouco religiosos quanto Marx ou tão religiosos, mas de uma maneira muito especial, que não é a maneira confessional, quanto Hegel. Eu acho que o mundo moderno aposentou os sistemas, aposentou toda espécie de tentativa tão grandiosa de abarcar a explicação da história no seu conjunto.
Folha : Qual a sua opinião sobre a tentativa globalizadora de Habermas?
Merquior - Acho que o Habermas é intelectualmente falando, um conservador. É claro que no terreno político-social ele é um bravo social-democrata de esquerda; não estou empregando a etiqueta conservadora noutro sentido, mas apenas no sentido dos seus quadros mentais. Acho que nos seus quadros mentais realmente existe uma tentativa quase grandiosa como tentativa, mas muito pouco convincente a meu ver como resultado. É uma tentativa de restauração intelectual, porque é uma espécie de tentativa de ser o Hegel das Ciências Sociais, de construir uma suma totalizante a partir de resultados de várias disciplinas. Em conjunto, o resultado denota uma profunda ambivalência ante a modernidade, porque por um lado Habermas, com grande coragem, recusa a condenação barata do mundo moderno que nós encontramos em toda uma série de pensadores contemporâneos de grande prestígio e influência. Acho que nisso ele tem toda razão e é uma atitude muito válida e valente de sua parte - essa recusa desse repúdio à modernidade. E não posso concordar com aqueles brilhantes intelectuais que às vezes tentam concordar ao mesmo tempo com Habermas e com algumas dessas figuras que ele sem hesitação condena, como é o caso, por exemplo, do meu caro amigo Sérgio Paulo Rouanet, que pensa que é possível, ao mesmo tempo, você dar a mão direita a Habermas e a mão esquerda a Foucault.
Estou profundamente e convencido de que não é possível; é preciso você optar contra um, a favor de outro. Se você quiser ficar com Foucault você não pode ser habermasiano, se você quiser ser fiel à lição de Habermas você não pode dar a mão a Foucault - dar a mão intelectualmente falando, evidentemente, porque não estou pondo em questão o brilho da personalidade filosófica de Foucault; estou pondo em questão, certamente, o bem fundado das suas teses. Mas acredito que apesar de Habermas, por este lado, ser válido - a lado pelo que ele recusa a condenação barata da modernidade -, por outro lado a sua própria maneira de conceber essa modernidade ainda está profundamente determinada por uma desconfiança básica em relação ao "ethos" do homem moderno e portanto, ao espírito da modernidade. É muito difícil ser preciso quando a gente se move no terreno das idéias de Habermas, porque se há um pensador que é ao mesmo tempo plúmbeo na expressão e bastante nebuloso na concepção, é ele mesmo. Um escritor de graça quase elefantina e, naturalmente, de idéias possivelmente nebulosas. Mas tentando lançar um raio de sol nessa névoa toda, eu diria que o pensamento de Habermas ainda está profundamente dominado pela categoria da alienação. O conceito de alienação ainda é absolutamente central em Habermas. Ora uma série de resultados no trabalho filosófico - de um lado - e no trabalho sociológico - de outro -, que eu preciso muito na cena intelectual contemporânea, me levam à idéia de que o conceito de alienação precisa ser urgentemente revisto. Não é que não haja nada atrás do conceito de alienação, evidentemente .
Mas ou o conceito de alienação é passível de ser traduzido em termos empíricos bastante concretos e de fácil compreensão - a obra de Elster para citar uma última vez o principal nome do marxismo analítico, é um exemplo notável desse tipo de tendência - ou o conceito de alienação é uma tradução profunda, é uma tradição secularizada de um mito religioso, que o marxismo, na sua dimensão de escatologia revolucionária, herdou de um velho leito místico de um velho leito religioso ocidental. Evidentemente que o conceito de alienação nesse sentido místico é fascinante como tema de história das idéias e eu próprio me detive nele algumas vezes. Mas embora fascinante como tema de história das idéias, ele só é fascinante como qualquer grande veio do pensamento religioso - e se um pensamento religioso que exerceu muita influência é fascinante, não quer dizer que eu ache que aquilo é um instrumento de análise.
É fascinante para mim porque a cultura religiosa, especialmente a grande cultura religiosa que para mim pertence ao passado, e não ao presente da humanidade, é fascinante para o entendimento do que foi um sem número de aspectos da cultura humana no seu passado. Mas não como instrumento válido de análise. Como instrumento válido de análise o conceito de alienação nesse plano elevado -em que, segundo ele, se processa um verdadeiro drama para salvação e resgate da humanidade- me parece algo de muito bonito mas perfeitamente arbitrário, quando usado para a caracterização do homem em geral e do homem moderno em particular.
Eu noto que há um grande inconformismo em vários trabalhos filosóficos contemporâneos, especialmente de vinte anos para cá, em relação a isso. Há uma liquidação do conceito de alienação. Se você quer eu cito o caso de alguém exemplar nesse terreno -porque veio justamente do marxismo- que chegou a ser um brilhante representante do marcismo em seu país e sofreu uma evolução de abandono crítico do conceito de alienação: Lucio Coletti.
Folha : A fragmentação do conhecimento de que o sr. fala, a impossibilidade de globalização, seriam características do tal pós-moderno?
Merquior - Você aponta a possibilidade de um equivoco, baseado nessa aparente semelhança entre a idéia do pós-moderno e essas conclusões a respeito da morte do sistema e do esvaziamento do conceito de alienação. Durante muito tempo se nos quis vender uma certa tradição de filosofia, de corte alemão.
Quando nós fazemos um pouquinho de genealogia desta maneira de entender filosofia, que é muito mais sistêmica e totalizante do que analítica e fracionadora, nós deparamos com o quê? Nós deparamos com origens claramente teológicas.
Este tipo de pensamento alemão teve raízes claramente teológicas. Pensadores como Hegel são notórios casos desse impulso, desse ímpeto sistêmico e dessa visão totaliza que tinha como ponto de partida quadros mentais, categorias, claramente herdadas de uma tradição teológica. Não estou negando de maneira nenhuma, que haja interesse na contribuição poderosamente original que Hegel deu a determinados temas teológicos. O que eu estou tentando fazer notar é que há uma espécie de marca teológica de origem, há uma espécie de pecado original, para empregar justamente uma metáfora teológica, nesse tipo de pensamento, que faz com que ele esteja demasiado comprometido com uma ânsia de salvação e com um molde de pensamento onde a visão do todo é mais importante do que a filtragem crítica do conhecimento.
Há mais compromisso com a possibilidade de totalizar a visão e de atribuir a essa visão totalizante uma carga salvífica, uma carga de salvação, do que com a filtragem crítica, passo a passo do pensamento. Embora seja, a meu ver, ridículo colocar esse problema em termos de saber quem foi o maior, se um filósofo como Hegel ou sem um filósofo como Hume que representaria, digamos assim, o conjunto de hábitos mentais exatamente opostos aos de Hegel. Esse tipo de debate é ridículo, porque a obra de Hegel é riquíssima - e eu estou cada vez mais convencido da profunda riqueza temática da sua obra - mas eu não posso negar que, como modelo de rigor cognitivo, Hume está mais perto do nosso espírito moderno do que essa visão totalista, repito, de origem empírico-teológica, do pensamento de Hegel.

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