Walter Fontana, ou
Waltinho, como era chamado pela família, fizera na surdina um levantamento da
compra e da venda de ações da Sadia nos últimos tempos. O resultado da enquete
era o trunfo que exibiria naquela manhã aos parentes com assento no conselho da
empresa. Expondo uma sequência de gráficos, ele demonstrou que sim, Osório
Furlan havia realmente comprado papéis da Sadia. Mas, em vez de repassá-los
para a fundação, anexara uma parte substanciosa deles ao seu portfólio.
Sem que ninguém no clã
soubesse, Osório ultrapassara o teto de 10% das ações que cabiam
individualmente a cada sócio controlador. Abocanhara 14% das ações e, caso
seduzisse alguns familiares, mandaria na empresa. Nada mal para Osório, que
fora garçom em Concórdia, a cidadezinha catarinense onde nascera a Sadia, antes
de se casar com a filha mais velha de Attilio Fontana e virar diretor da
empresa.
"Moleque,
mentiroso!", berrou Osório Furlan ao ouvir o relato do sobrinho Walter
Fontana. "Moleque e incompetente!", continuou urrando, enquanto
socava a mesa com os punhos. Raul dos Reis, um dos genros de Attilio Fontana,
entrou na briga: "Moleque é você, Osório. Você é um velhaco que enganou a
todos." Osório passou a mão num cinzeiro e o jogou em Raul dos Reis. O
cinzeiro se espatifou na mesa e quebrou o tampo de vidro. Reis revidou atirando
uma xícara de café contra Osório Furlan. Atingiu-o no supercílio, que começou a
sangrar.
Ao sentir o sangue nas
têmporas, Furlan deixou a sala, correu até seu escritório e pegou um revólver
na gaveta da escrivaninha. Foi contido antes de voltar para a sala do conselho.
Levado para fora do prédio, anunciou aos gritos que daria queixa à polícia.
Dias depois, houve outra
reunião do conselho de administração. Apaziguador, Osório Furlan disse ao
sogro: "Seu Attilio, o senhor pode votar também com as minhas ações, me
abstenho de votar sobre a minha situação aqui." Attilio Fontana, que aos
83 anos tinha a palavra final, respondeu secamente: "Pois então o senhor
se considere fora da empresa com o voto de 100% dos acionistas." Ao ouvir
a sentença, Furlan encarou cada um dos sócios, com quem trabalhava há quase
quarenta anos, e, dramático, vaticinou: "Um dia eu volto."
Attilio Fontana não se
dava muito bem com Osório Furlan. Tolerava-o na empresa por ser o pai de Luiz
Fernando, o neto predileto, a quem considerava o seu delfim. Menino, Luiz
Fernando Furlan acompanhava o avô por todo lado e, durante anos, foi seu
secretário particular. Era o neto mais parecido com o patriarca não só no
físico (ambos altos e delgados, de lábios finos e sorriso inexpressivo) como no
temperamento mais político. Na briga, porém, Luiz Fernando Furlan se alinhou
com o pai, que sempre considerou injustiçado. Embora continuasse na Sadia,
manteve distância da família. E nunca perdoou o primo Walter Fontana. Mais de
25 anos depois do voo do cinzeiro e da xícara, os dois se falam
protocolarmente.
A cizânia acionária levou
os donos da Sadia a abrirem, em 1986, uma corretora. Deram-lhe o nome de
Concórdia em homenagem ao berço da companhia e na esperança de que apaziguasse
o clã. A ideia inicial era de que operasse apenas com as ações da empresa. Mas
ela obteve resultados tão bons que acabou oferecendo serviços a terceiros.
Saiu-se bem também nessa seara e se consolidou. O sucesso inicial da Concórdia
no mercado financeiro serviu de impulso para que, duas décadas depois, a Sadia
fosse incendiada por papéis podres.
Attilio Fontana
desconfiava do mercado financeiro. Todas as vezes que um banco lhe oferecia
ganhos fantasmáticos com papéis, ele dizia não. Um dos herdeiros da Sadia me
contou que, certa vez, após ter recusado um investimento, Fontana reuniu os
conselheiros da companhia, à época todos da família, e perguntou: "Essa
empresa existe para quê?" Ele mesmo respondeu: "Para vender frango,
vender peru e fazer solsicha. Se é
para fazer diferente, é melhor abrir um banco. Mas não quero ter um banco,
quero ter um frigorífico."
Quarenta anos antes, numa
fria manhã de 1943, Attilio Fontana entrou na sede do Moinho Concórdia, uma
construção amarela, de telhados triangulares e janelas brancas, para participar
de uma assembleia de acionistas. O prédio ficava no centro de um terreno plano,
de terra batida, que durante a estação das chuvas virava uma lama espessa,
difícil de atravessar. Fontana pediu a palavra e, para surpresa dos sócios,
anunciou sua saída do negócio.
Ele era um comerciante
bem-sucedido e com um bom nome em Concórdia e nos arredores, o oeste de Santa
Ca-tarina. Atendera ao pedido do prefeito da cidade para entrar na sociedade e
evitar a falência da s.a. Indústria e Comércio de Concórdia, nome oficial da
empresa, que incluía também um frigorífico. A companhia, um empreendimento
ousado para uma cidade de apenas 3 mil mora-dores, fora criada dois anos antes
por empresários locais. O negócio não deu lucro. Com a entrada de Attilio, o
moinho saiu do vermelho.
Ao ouvir o apelo dos
sócios para que não os abandonasse, Attilio lhes disse que aceitaria ficar,
desde que tivesse mais de 50% do negócio e se tornasse o controlador. E lhes
apresentou a conta: todos os sócios teriam que vender a ele suas ações pela
metade do preço, com a opção de saírem e receberem o dinheiro à vista, ou
continuarem como cotistas minoritários. Para sua surpresa, todos concordaram. E
a maioria optou por permanecer na sociedade.
"Nem de longe eu
podia imaginar que, naquela assembleia, estivesse decidindo o passo fundamental
da minha carreira de empresário", relatou Attilio Fontana em seu livro de
memórias, História da Minha Vida,
escrito às vésperas de seus 80 anos. O passo fundamental, que ensaiava há anos,
era deixar o comércio e virar industrial.
O gaúcho Attilio Fontana
nasceu em 1900, em Santa
Maria da Boca do Monte. Foi o oitavo dos doze filhos de
Thereza Dalle Rive e Romano Fontana, originários do Vêneto, que chegaram da
Itália no final do século xix, compraram uma fazendola e botaram os filhos para
trabalharem a terra. O menino Attilio alfabetizou-se no dialeto do Vêneto, foi
usar sapato pela primeira vez aos 15 anos e nunca perdeu o sotaque da colônia:
dizia caro em vez de carro e solsicha no lugar de salsicha. Recém-casado,
se mudou para Santa Catarina e prosperou no comércio.
Seu primeiro desafio como
sócio majoritário da s.a. Indústria e Comércio de Concórdia foi dar um jeito no
frigorífico, que precisava de maquinário. Com o mundo em guerra, os oceanos
transformados em palco de batalha, era impossível importar qualquer equipamento
da Europa ou dos Estados Unidos. Attilio Fontana soube que um frigorífico em
Guaporé, no Rio Grande, havia falido e os donos queriam vender as máquinas. Foi
para lá e fechou o negócio.
Um dos empregados do
frigorífico falido era o jovem Vittorio Galeazzi, a quem coube desmontar
algumas das velhas máquinas que seriam levadas para Concórdia. Fontana se
impressionou com a destreza do rapaz de 22 anos e o convidou a mudar de
emprego. "O seu Attilio andava muito arrumado e estava de terno cinza,
gravata e chapéu quando me chamou para trabalhar com ele", disse Galeazzi
numa manhã chuvosa, em setembro, na sede da Associação dos Aposentados de
Concórdia.
Ele embarcou no caminhão
que levava o maquinário e chegou a Concórdia três dias depois, no final da
tarde de sexta-feira. Cinco meses depois, no dia 22 de novembro de 1944, as
máquinas entraram em operação. "Eu sangrei o primeiro porco",
disse-me Galeazzi, que hoje tem 87 anos. "Os outros empregados ficaram
olhando porque não sabiam como usar aqueles equipamentos. Sangrei trinta porcos
só no primeiro dia. Eles vinham pendurados numa roldana e aí eu passava a
faca." Os porcos eram destrinchados em mesas de madeira onde viravam
linguiça, salsicha, salame e banha. Em seis meses, o frigorífico abatia 200
porcos diariamente. Attilio Fontana mudou o nome da empresa: combinando as
iniciais da s.a. Indústria e Comércio com a sílaba final de Concórdia, criou a
Sadia.
O odor dos animais mortos
chegava até a casa de Fontana, a poucos metros do frigorífico, separado da rua
apenas por uma cerca de arame. Quando sua filha Maria Therezinha, adolescente,
reclamava do mau cheiro, ele respondia: "Minha filha, isso é cheiro de
dinheiro, cheiro de vestido novo, de sapato novo." A dedicação ao negócio
era total. "Às vezes, trabalhávamos quinze horas por dia, e os diretores,
quase todos da família, ficavam lá com a gente", contou Galeazzi.
"Acreditávamos que estávamos participando de uma coisa muito grande.
Chamávamos a empresa de Família Sadia."
A chegada de Victor Fontana, so-brinho de
Attilio, deu um novo elã ao frigorífico. Victor se formara em engenharia
química, em Porto Alegre,
e trouxe técnicas de higiene e de conservação de carnes que reduziram as
perdas. O passo seguinte foi o investimento em frangos e perus congelados.
Atrás de novas ideias, a empresa começou a enviar funcionários aos Estados
Unidos e Europa para estudar a produção de alimentos semiprontos e congelados.
Abriu escritórios e fábricas no Paraná e em São Paulo.
Duas décadas depois de
criada, os patrões ainda mantinham proximidade com os funcionários.
"Alguns diretores jogavam truco com a gente na hora do almoço",
contou Valdir Schumacher, que trabalhou trinta anos na companhia. "O
trabalho era pesado, mas tínhamos a sensação de que os donos se importavam com
os empregados, e isso nos fazia sentir parte da companhia. Fazíamos qualquer
coisa pela Sadia."
Já na cúpula da Sadia as
relações eram conflituosas. Victor Fontana, que assumira a diretoria industrial,
defendia que o trabalho dos operários não fosse interrompido, para que os
produtos não estragassem na linha de pro-dução. Osório Furlan, que cuidava da
administração, discordava: não queria que a empresa gastasse mais com horas
extras. Um dia, depois de Osório ter dispensado os funcionários, Victor os
chamou de volta. Os dois se atracaram na frente dos operários. Foram parar na
sala de Attilio Fontana, que deu razão ao sobrinho. A briga deu origem ao rumor
de que Osório Furlan urinava na banha para arruinar o trabalho de Victor
Fontana.
Attilio Fontana usou o
que ganhou na Sadia para se projetar na política. Em 1946, elegeu-se vereador,
foi depois deputado e chegou a senador. "Ainda que não estivesse todo
tempo na Sadia, ele mantinha a empresa sob seu comando", disse um dos seus
herdeiros. "Quando não gostava de alguma coisa dizia: 'Non, isso aqui non', e todo mundo obedecia." Quando visitava as fábricas, ia
direto para a linha de produção e passava horas conversando com os operários.
"Ele sabia tudo o que se passava na empresa através do chão de
fábrica", contou o herdeiro.
Só havia algo que Attilio
não tolerava. Que seus empregados falassem mal do seu partido, primeiro o psd e
depois, na ditadura militar, a Arena. "Se alguém dizia que era do mdb, era
demissão na certa", contou Iburici Fernandes, que trabalhou 33 anos na
companhia.
No começo dos anos 50, a Sadia ainda sofria com
as perdas de produtos perecíveis. Elas ocorriam, sobretudo, no transporte, por
causa do longo trajeto de caminhão de Concórdia até os centros consumidores.
Mortadelas, presuntos cozidos e salsichas chegavam ao destino com o prazo de
validade quase vencido. Omar, filho do meio de Attilio Fontana, teve a ideia de
transportarem a carga por avião. E a Sadia alugou um Douglas dc-3, da Panair.
Como a Panair só cedia o
avião aos domingos, a Sadia o comprou. Mas surgiu um novo problema: o alto
custo do combustível. Para ter acesso aos benefícios fiscais que o governo dava
às companhias aéreas, entre eles redução no preço do querosene de aviação, Omar
Fontana sugeriu que se arrendassem mais dois aviões, caracterizando assim a
existência de uma empresa aérea. Com essa pequena frota foi criada, em 1955, a Sadia Transportes
Aéreos.
Como no caso da corretora
Concórdia, o departamento criado para atender uma necessidade interna da Sadia
teve grande sucesso. O transporte por avião deu uma vantagem competitiva à
Sadia: seus produtos chegavam aos consumidores mais rápido do que os de seus
concorrentes. Nas horas ociosas, os aviões foram usados para servir a
terceiros. Com o tempo, a Sadia Transportes Aéreos virou a Transbrasil, que
chegou a ter mais de vinte jatos e rotas para o exterior. A essa altura, a
Sadia não usava mais o transporte aéreo: com o surgimento de caminhões
refrigerados e a melhoria das estradas, ficou mais barato fazer o transporte
por terra. No ano 2001, depois da morte de Omar Fontana, a Transbrasil quebrou.
Já no reinado dos
caminhões frigo-ríficos, houve um atrito de monta entre Osório Furlan e os
familiares. Uma vistoria burocrática descobriu que os caminhões da Sadia
transportavam também produtos de uma distribuidora de bebidas, a Frederico
Bruck, que Osório Furlan acabara de comprar. Foi acusado de usar a Sadia em
proveito próprio.
Attilio Fontana, que
ocupava a presidência de honra do conselho, morreu em 1989. Deixou registrada
no seu livro de memórias a esperança que depositava nos descendentes:
"Eles são o meu orgulho. A eles confio o legado do meu nome e da minha
memória, bem como o fruto do meu trabalho." Um acordo de acionistas
serviria, em tese, para manter os herdeiros unidos. Segundo o documento, as
ações dos controladores só podiam ser vendidas para outros descendentes. Mas,
em situação igualitária, nenhum deles, individualmente, tinha condições de
comprar ações do outro. Com isso, muitos continuaram na empresa quase à força,
sem ter o que fazer na prática, a não ser dar palpites. As brigas entre eles
fermentaram.
Em 1994, o comando da
companhia foi transferido para a terceira geração, a dos netos do patriarca.
Luiz Fernando Furlan, o predileto, o filho de Osório, assumiu a presidência do
conselho de administração. Walter Fontana Filho, que denunciara Osório, a
presidência executiva. A escolha dos dois foi decidida pelas nove famílias dos
filhos do fundador, além das dos sobrinhos. (A Sadia tem hoje quase 100
herdeiros.) Havia consenso de que os dois eram os mais indicados para os
cargos. Luiz Furlan fora preparado pelo avô para sucedê-lo no conselho e,
embora nunca tivesse tocado a operação, conhecia bem os números da companhia e
passava credibilidade aos acionistas. Walter Filho, o Waltinho, passara por
todos os setores da fábrica, da produção até a logística e a administração.
Entre 1994 e 2003, no
entanto, a Sadia viveu uma situação insólita: o presidente do conselho e o
presidente-executivo mal trocavam palavras. As ordens de um e as contraordens
do outro, e vice-versa, se sucediam, deixando atônitos executivos graduados.
A companhia tornou-se
errática. As últimas filiais de peso que a Sadia abriu - Tóquio, Milão e Buenos
Aires - datam do começo dos anos 90. Com Luiz Furlan e Walter Fontana Filho se
trombando no comando, a empresa fez poucas aquisições. As mais importantes
datam de 1999: a Miss Daisy, de sobremesas congeladas, e a Granja Rezende, de
pesquisa genética e produção de aves e suínos.
As divergências entre
eles não tinham, para os que não estavam alinhados com um ou outro, motivações
estratégicas. "Começou a ficar cada vez mais marcada a diferença entre o
clã Furlan e o clã Fontana", contou-me um herdeiro. "Os Furlan se
comportavam como se não fossem da família. Eles eram fechados no seu grupo, não
acreditavam que os Fontana pudessem administrar qualquer coisa."
A primeira herdeira a
expor as divergências do clã foi Yara Fontana D'Ávila, neta de Attilio Fontana.
Ela trabalhou na companhia num plano de benefícios para os funcionários e
montou um programa de controle do alcoolismo que, posteriormente, teve algumas
partes adotadas pela Organização Mundial de Saúde. Passou nove anos na empresa,
segundo contou, confinada a uma "salinha sem janela". Raramente tinha
acesso a reuniões de cúpula. Sentindo-se marginalizada, entrou em depressão e
se demitiu.
Fora da Sadia, atacou o
machismo de seus primos Walter e Luiz Fernando, e também o do seu próprio irmão,
Eduardo, então diretor industrial da empresa. Fez tudo isso num livro chamado Como Fritar as Josefinas: a Mulher nos
Bastidores da Empresa Familiar Brasileira, que publicou em 1996. Josefina
era o nome de uma linguiça fabricada pela Sadia e a sua fritura, no livro, é
uma referência à falta de consideração com que eram tratadas as herdeiras.
Num dos capítulos, Yara
lista sete razões para uma empresa familiar quebrar. Uma das mais importantes é
a ganância: "Dentro de um grupo familiar, a ganância é responsável pelas
piores brigas, por mais poder, mais dinheiro, mais status, mais direitos. Esse
pecado atropela a competência. A ganância faz o ganancioso dar o passo maior do
que as pernas. E, quando a esperteza é demais, engole o esperto."
Apesar das desavenças, a
Sadia crescia. As exportações saltaram de 500 milhões de dólares em 1994 para
2,3 bilhões em 2007. E o seu valor de mercado passou de 450 milhões para 3,8
bilhões de dólares no final de 2007. Nesse ano, a companhia pagou 74 milhões de
dólares em dividendos. O
avanço financeiro, no entanto, não encontrava correspondência no negócio
concreto da Sadia. Negócio que, segundo Attilio Fontana, era fazer salsicha.
Nesse mesmo período,
começou a recuperação da sua maior concorrente, a Perdigão. Fundada pela família
Brandalise, também de imigrantes italianos, a empresa estava à beira da
falência em 1994, quando foi comprada por nove fundos de pensão, entre eles a
Previ, dos funcionários do Banco do Brasil. Ironicamente, a Perdigão chegou a
ser oferecida primeiro à Sadia, que não se interessou pelo negócio.
Para a presidência
executiva da Per-digão, os fundos chamaram Nildemar Secches, um executivo
egresso do bndes. Reorientada, a empresa atingiu o valor de 4,6 bilhões de
dólares, em 2007, su-perando a Sadia pela primeira vez na história das duas
companhias. No en-tendimento de seus fornecedores e dos grandes atacadistas, a
Sadia, apesar de se sair melhor que a Perdigão em termos de variedade de
produtos e marketing, continuava com uma gestão confusa.
O diretor-financeiro da
empresa, Adriano Ferreira, por exemplo, se reportava ao presidente do conselho
de administração, Walter Fontana, em vez de se subordinar diretamente ao
presidente-executivo, Gilberto Tomazoni - o que era visto como uma aberração
corporativa.
Hoje os sócios da
Perdigão consideram Walter Fontana um excelente profissional na área de
logística. E acham Luiz Furlan um empresário com bom trânsito junto a governos
e associações de classe. Já Gilberto Tomazoni não desfruta de boa reputação.
"Se nem a Sadia confiava nele, a ponto de desvincular a diretoria
financeira da presidência executiva, por que nós confiaríamos?", explicou
um sócio da Perdigão.
No entendimento da
Perdigão, o maior erro de Tomazoni foi impor uma administração contrária aos
princípios que nortearam a Sadia durante décadas. Ele era adepto de modismos
administrativos, ditados por gurus corporativos. "Tomazoni contratou a
consultora Betania Tanure e queria adotar uma política de resultados como a da
Ambev, quando a cultura da Sadia era a do comprometimento", contou um
ex-superintendente da empresa. Foi a época dos programas de treinamento em
Atibaia, no interior paulista. "Eles ficavam lá andando de jipe, fazendo
trilha, subindo em árvore, gastando uma fortuna, enquanto na fábrica nós
tínhamos que economizar até nas luvas dos funcionários", disse o
ex-superintendente.
Certa vez, Tomazoni
convocou alguns de seus executivos, traçou um risco no chão e os desafiou:
"Quem quer crescer com a Sadia quer ficar de qual lado do risco? Ou estão
comigo ou estão fora." A ideia era replicar o exercício nas fábricas.
"Queriam que fizéssemos isso com os peões", disse um superintendente
da unidade de Chapecó. "Recusamos porque, por ser tão ridículo, era capaz
de todos ficarem do lado errado da linha." Ao mesmo tempo em que
acreditava na motivação, Tomazoni mal cumprimentava os funcionários quando
visitava as fábricas. Isso era desagregador para uma companhia cujo dono e
antigos diretores costumavam almoçar com os trabalhadores.
Os superintendentes e gerentes
da Sadia passaram a reclamar da competição que foi criada entre as unidades.
Eles eram obrigados a fazer relatórios intermináveis sobre o cumprimento de
metas. "Ficávamos preenchendo papel em vez de acompanharmos a
produção", disse um deles. A unidade que se saísse pior perdia os bônus,
que eram repassados para as de melhor desempenho. O resultado foi que as
unidades começaram a maquiar seus resultados, para não perder os bônus. A
competição interna abalou a política de cooperação na qual a companhia se
baseara durante décadas.
O economista Oscar
Malvessi deixou a carreira de executivo, em 1998, para fazer doutorado em
economia na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. Sua tese
buscou estudar os motivos que fizeram com que as em-presas brasileiras perdessem
valor, no final do século passado. Ele analisou dezenas de grandes companhias,
entre elas a -Sadia e a Perdigão. Em 2002, mostrou as conclusões de seu
trabalho ao conselho de administração da Sadia, que incluía então executivos de
fora do clã. Na apresentação, Malvessi chamou a atenção para o excesso de
operações financeiras feitas pela companhia. Demonstrou em um PowerPoint que
desde 1996 o lucro da Sadia vinha, em grande parte, de transações com papel, e
não mais com frango e peru.
O recurso às aplicações
financeiras se deu quando o presidente do conselho era Luiz Fernando Furlan. Em
2003, ele deixou o cargo para se tornar ministro do Desenvolvimento de Luiz
Inácio Lula da Silva. Antes de sair, ele fez cumprir o vaticínio de seu pai, em
1983: Osório voltou para a companhia como representante dos Furlan no conselho.
Oscar Malvessi fez mais duas apresentações na
Sadia, a última em 2007. Nessa, disse que o lucro operacional - o que vem da
venda dos produtos - representava 57% dos ganhos da empresa. Os outros 43%
provinham de transações financeiras. "A Sadia estava totalmente fora da
curva", me disse Malvessi, em agosto, em seu escritório, na avenida
Paulista. Nas grandes companhias, os ganhos em operações com papéis não
ultrapassam 10% do lucro total.
Para Malvessi, uma olhada
ligeira nos números da indústria alimentícia era suficiente para perceber que
havia algo de muito errado na Sadia: entre 2002 e 2007, as vendas da Perdigão
haviam crescido 73% a mais que as da concorrente. "Todos estavam conscientes
do risco que a Sadia corria", afirmou. "Quando acabei minha
exposição, os conselheiros me olharam sem qualquer espanto. Como se tudo aquilo
fosse a coisa mais normal do mundo."
Yara Fontana é uma mulher
alta, sorridente e jovial. Seu sorriso desaparece quando comenta o desmanche da
Sadia. Encontrei-me com ela em um restaurante, em São Paulo. Contou-me
que, em 2007, num almoço familiar, teve uma discussão com seu irmão Eduardo,
que ocupava a vice-presidência do conselho de administração, e questionou os
ganhos anormais da companhia no mercado financeiro: "Ele me disse para eu
não reclamar da administração da empresa porque nunca tínhamos ganhado tantos
dividendos na vida."
O gestor de um grande fundo de investimentos
me disse que a Sadia "era useira e vezeira" em fazer operações de
risco. Perdeu muitas vezes, mas conseguiu escapar porque as crises não foram
longas e nem profundas. "Eles jogavam muito com o caixa da empresa e todo
o mercado sabia", disse. "Por isso, há muito tempo o meu fundo não
operava mais com ações da companhia. Aquilo era crônica de uma morte
anunciada."
Ao meio-dia de 12 de
setembro do ano passado, Walter Fontana Filho reuniu-se com os executivos da
cúpula da Sadia. O encontro foi na sala de reuniões do escritório central da empresa,
em São Paulo. Os
diretores se sentaram em volta de uma mesa de mármore negro para fechar a
proposta de compra do frigorífico Frangosul, do grupo francês Doux, o maior
produtor europeu de aves e embutidos. Havia um cartaz na parede com a política
da companhia, assinado por Walter Fontana Filho. O primeiro compromisso era
"contribuir para a sobrevivência da Sadia, pro-porcionando o retorno
adequado dos investimentos". O valor de compra da Frangosul foi fechado em
1,2 bilhão de reais. A carta-proposta foi despachada naquele mesmo dia para
Charles Doux, presidente da companhia na França.
No dia seguinte, às oito
e vinte da manhã, o diretor-financeiro Adriano Ferreira entrou chorando na sala
de Walter Fontana Filho. Disse-lhe para esquecer a compra da Frangosul e
anunciou: havia perdido o controle das operações de câmbio e a Sadia estava com
5 bilhões de dólares a descoberto no mercado de derivativos. A empresa tinha
fechado posições de câmbio a 1,60 real, apostando que o dólar não subiria. Mas,
naquele dia, a moeda já havia ultrapassado 1,80 e essa diferença, pelo contrato
com os bancos, tinha que ser paga em dobro. São as chamadas operações 2 por 1: a cada
subida do dólar, a Sadia tinha que fazer um depósito na Bolsa de Mercadorias e
de Futuros para honrar seus compromissos. Como era obrigada a zerar diariamente
essas posições, o caixa da empresa e sua liquidez estavam ameaçados.
A Sadia sangrava desde o
dia 8 de setembro, quando, com a implosão do mercado imobiliário americano, o
dólar começara a subir. Mas Adriano Ferreira mantivera as perdas em sigilo,
acreditando que o quadro reverteria. Já havia pago mais de 500 milhões de
reais, usando o capital de giro da companhia. Naquele 12 de setembro, a Sadia
estava à beira de ficar sem dinheiro em caixa.
Atônito, Walter Fontana
Filho convocou uma reunião de emergência com o núcleo da direção. Foram
chamados Cássio Casseb, ex-presidente do Banco do Brasil, Eduardo D'Ávila,
vice-presidente do conselho de administração, e Roberto Faldini, conselheiro
responsável pelo comitê de auditoria. Vieram ainda José Antônio Gragnani, da
corretora Concórdia, e João Ayres Rabello, um executivo contratado meses antes
para ser presidente de um projeto que era a menina dos olhos da cúpula da
empresa: a criação do Banco Concórdia. Antes mesmo da aprovação do Banco
Central, os controladores da Sadia haviam providenciado uma sede monumental
para a nova instituição, na Torre Eldorado, em São Paulo.
A equipe ficou reunida
até as oito horas da noite, quando conseguiu reduzir a exposição da Sadia de 5
bilhões para 3,4 bilhões de dólares. João Rabello sugeriu que sacassem dos
cofres da Fundação Attilio Fontana, que tinha um patrimônio de 1,5 bilhão de
reais. O presidente da fundação, Darcy Primo, reagiu dizendo que ali ninguém
colocava a mão: Attilio investira 30% de seu patrimônio pessoal para
capitalizá-la. "Ele dizia que a fundação era a sua filha mais nova",
contou um ex-diretor da companhia.
No sábado, dia 13, Walter
Fontana convocou para a segunda-feira seguinte uma reunião extraordinária do
conselho. No mesmo dia, Carla, a filha mais nova de Attilio Fontana e
presidente do acordo de acionistas, foi avisada do rombo. Coube a ela contar
aos outros herdeiros, muitos acima dos 80 anos e há décadas dependentes dos
dividendos da companhia, que a Sadia estava à beira da falência. "Foi um
choque para todo mundo", contou um dos herdeiros. "Como poderíamos
imaginar que a maior empresa de alimentos do país tinha falido do dia para a
noite? Era quase a história do Titanic."
Walter Fontana Filho foi
obrigado a fazer o que jamais imaginara: pedir ajuda ao primo Luiz Fernando.
Dono de 23% das ações da companhia, Furlan saíra do governo meses antes, não
retornara à companhia e se envolvera num projeto ambientalista na Amazônia.
Furlan estava no Japão, onde participava de uma reunião do conselho da
Panasonic.
Nos dias que se seguiram,
os executivos escalados por Walter se fecharam com Adriano Ferreira em sua sala
para tentar entender o estrago. A cada chamada da bm&f - quando a empresa
tinha que fazer novos depósitos em garantia -, eles se apavoravam com as
dimensões do rombo. Um levantamento feito às pressas mostrava que a Sadia vinha
tendo perdas desde dezembro de 2007. Mas foi em agosto de 2008 que as
transações com derivativos saíram do controle. Uma das operações, com apenas um
banco, o inglês Barclays, era de 720 milhões de dólares. O padrão das operações
era 2 para 1, ou seja, quando perdia, a Sadia perdia em dobro. Só ao Barclays a
Sadia teria de pagar 1,4 bilhão de dólares.
Depois de horas de
conversas, o banco inglês concordou em desfazer a transação. Mas a Sadia
precisou pagar uma multa de 150 milhões de reais. Em meados da semana do dia
15, o caixa da Sadia, que no começo do mês era de 1,8 bilhão de reais, minguara
para 300 milhões. "A empresa estava entrando em colapso, e em pouco tempo
quebraria por falta de capital de giro", contou um ex-diretor da
companhia.
Para evitar a bancarrota,
Cássio Casseb ligou para o presidente do Banco do Brasil e pediu uma linha de
crédito emergencial. Naquela altura, com a quebra do Lehman Brothers, no dia
15, nos Estados Unidos, todas as linhas de crédito para o Brasil estavam
fechadas. Só restava a ajuda dos bancos brasileiros. O Banco do Brasil aprovou
um empréstimo de emergência de 911 milhões de reais. No dia 25 de setembro,
quando foi assinado o contrato com o Banco do Brasil, a Sadia divulgou uma
informação oficial - o "fato relevante" - estimando suas perdas, em
derivativos, em 720 milhões de dólares.
Adriano Ferreira é um
moreno alto de 39 anos. Encontrei-me com ele, em agosto, num casarão na avenida
Brasil, em São Paulo.
Ali funciona a assessoria de imprensa que ele contratou para
ajudá-lo. Vestia calça bege e camisa listrada de vermelho e azul. Também estava
presente um de seus advogados. Ao me dizer sua idade, Ferreira perguntou, de
cara, preocupado: "Você acha que aparento 39 anos?" Respondi que
parecia mais jovem. "Tem certeza que não fiquei enrugado?", insistiu.
Diante da nova negativa, disse: "Ainda bem, porque com toda essa crise
fiquei com medo de ter envelhecido."
Baiano, Adriano Ferreira
formou-se em economia pela Universidade Católica de Salvador. Começou a
carreira na empreiteira Odebrecht, como analista financeiro. Depois, mudou-se
para Madri para trabalhar na Atento, uma empresa de call center da Telefónica de España, onde chegou a diretor de
tesouraria. Voltou ao Brasil por pressão da mulher, advogada tributarista, que
não queria mais morar no exterior. No final de 2002, logo após a eleição de
Lula, foi contratado como gerente financeiro da Sadia, através de uma firma de head hunter.
"Um dos requisitos
era ter boa experiência em operações financeiras porque a companhia tinha uma
corretora de valores, a Concórdia, embaixo dela", disse. "Isso chamou
minha atenção, porque não é comum uma indústria ter uma corretora." Na
empresa, espantou-se com o fato de a Sadia ter uma grande quantidade de títulos
brasileiros em sua carteira. "Estranhei porque, naquela época, com o medo
que o mercado tinha do Lula, ninguém queria ter títulos brasileiros. Se a
empresa precisasse de dinheiro, não ia poder dispor daqueles títulos." Uma
das suas primeiras medidas, disse, foi diversificar a carteira de
investimentos. "Não se pode colocar todos os ovos no mesmo cesto",
explicou.
A Sadia tinha planos de
dobrar de tamanho em cinco anos. Suas exportações cresciam aceleradamente por
causa da doença da vaca louca na Europa, Canadá e Estados Unidos. Adriano
Ferreira pegou uma folha de papel e rabiscou alguns números. "Quando eu
entrei, a empresa faturava 6 bilhões de reais ao ano. Quando saí, faturava 12
bilhões", contabilizou, atribuindo ao seu trabalho grande parte desse
sucesso.
Por que se atirou com
tanta voracidade nos derivativos? "Era um período de bonança e os bancos
começaram a oferecer diversos produtos financeiros", ele respondeu.
"Todos eles foram testados e utilizados pela Sadia, mesmo porque a empresa
tinha experiência nisso. Quem poderia imaginar que o mundo entraria em
crise?" Em 2006, ele foi promovido a diretor-financeiro. "Tive
diversas promoções", afirmou. Esteve no centro nervoso da companhia e,
segundo conta, nunca teve sua estratégia contestada: "Decidimos expandir
as atividades financeiras do grupo. O primeiro passo seria a abertura do banco.
O estudo foi capitaneado por mim. Eu fora escalado para ser o supervisor da holding: a empresa, a corretora e o
banco."
Tenso, Adriano Ferreira
deu a sua versão para o setembro negro da Sadia. Disse que, desde o final de
agosto, quando o dólar começou a subir, tentou se desfazer das operações de
derivativos. Mas, com o agravamento da crise, no dia 8 de setembro, a situação
se deteriorou rapidamente. No dia 25, ficou acordado até uma e meia da
madrugada, tratando do empréstimo com o Banco do Brasil.
Às 8h30, voltou à Sadia
para assinar o contrato. Ao meio-dia e meia, assim que saiu para almoçar
recebeu um telefonema da secretária. Nervosa, ela contou que o pessoal da
administração entrara na sua sala e levara seu computador. "Perdi o
chão", contou ele. "Eu estava na empresa há seis anos. Era pessoa de
confiança da família. Não tinha o menor sentido o que estavam fazendo comigo.
Como, de uma hora para outra, eu posso ter virado um louco, um
irresponsável?"
Ferreira não voltou à
companhia naquele dia. No final da tarde, após a Sadia soltar o fato relevante,
sua secretária voltou a ligar. "Ela me avisou que o teor da nota não era
nada bom para mim", prosseguiu. "Eu não só fora demitido como estava
sendo declarado culpado pela situação." Só no dia seguinte ele foi
comunicado oficialmente da decisão anunciada na véspera ao mercado: "O
Eduardo Fontana me chamou e me demitiu."
A Sadia acabou perdendo
2,5 bilhões de dólares com derivativos, na sua avaliação, devido à demora dos
executivos em cancelarem as operações. Quando contou o problema para Walter
Fontana Filho, no dia 12, Adriano disse ter sugerido que encerrassem todos os
contratos antecipadamente. "Se tivéssemos feito isso, a perda para a
companhia teria sido, no máximo, de 900 milhões de dólares", avaliou.
Segundo ele, começou uma discussão em torno de duas alternativas. Uma era a
antecipação dos contratos. A outra, aguardar mais um pouco para ver se o dólar
caía.
"Era muita gente
dando palpite, inclusive o Luiz Furlan", disse Ferreira. "Quanto mais
tempo eles demoravam para tomar a decisão, mais o prejuízo aumentava. Eles
encerraram os contratos só em dezembro, quando o dólar já estava na casa dos
2,50 reais. Saíram no pior momento. Por isso o prejuízo foi tão grande."
Ao tomar conhecimento da
argumentação de Ferreira, um ex-diretor da Sadia reagiu: "Íamos pagar com
o quê se a empresa não tinha caixa nem para honrar os compromissos com os
produtores? Ele secou o caixa da companhia."
O administrador de um
grande fundo de investimentos explicou-me que o problema das empresas que se
metem a operar no mercado financeiro é a falta de conhecimento. "Os bancos
e os gestores de recursos têm uma inteligência voltada unicamente para analisar
essas operações. As empresas não. Cabe ao diretor-financeiro, que tem mil
outras coisas para cuidar, ficar brincando de operador", afirmou.
Walter Fontana Filho foi
afastado do comando da empresa no dia 4 de outubro do ano passado, menos de um
mês após a história ter vindo à tona. Estava deprimido e 5 quilos mais magro.
Coube a Luiz Fernando Furlan tomar a frente das negociações para tentar salvar
a Sadia. Seu primeiro passo foi procurar Lula. O presidente prometeu ajudar.
Mas não da forma como Furlan e os outros herdeiros da Sadia dese-javam: com um
aporte de capital do bndes. A preocupação do governo era que, mesmo com apoio
financeiro do banco, a Sadia ficasse vulnerável e fosse comprada por uma
multinacional. Lula e seus assessores queriam evitar a quebra da empresa e, ao
mesmo tempo, tirá-la das mãos dos Fontana e dos Furlan.
Luciano Coutinho, o
presidente do bndes, começou a estudar a possibilidade da compra da Sadia pela
Perdigão. Ele marcou uma reunião com Sérgio Rosa, o presidente da Previ - o
fundo é o maior acionista da Perdigão -, na sede da entidade, no Rio. Sérgio
Rosa mal podia acreditar que a Sadia estava lhe caindo nas mãos. Dois anos
antes, a Perdigão tinha sido alvo de uma oferta hostil da concorrente. Ou seja,
a Sadia saiu no mercado comprando ações da empresa para, dessa forma, se
apropriar dela. Sérgio Rosa liderou, junto com os outros sócios, uma
contraofensiva que barrou as pretensões da concorrente.
A tentativa de compra da
Perdigão manchou a imagem da Sadia não só pelo fiasco da investida. Foi,
principalmente, porque a empresa se envolveu em um grotesco caso de vazamento
de informação. Dias depois da oferta hostil, descobriu-se que o então
diretor-financeiro da Sadia, Luiz Murat, tinha comprado ações da companhia.
Murat foi demitido, respondeu a processo na Comissão de Valores Mobiliários e
na sec, a agência que controla o mercado financeiro americano. Foi condenado a
pagar uma multa pelos dois órgãos. Teve ainda que se expor a uma constrangedora
retratação. De pé, na frente de todo o conselho da companhia, confessou sua
culpa, pediu desculpas e demitiu-se. Adriano Ferreira foi chamado para assumir
o seu cargo.
Luiz Murat não foi o
único punido. Examinando o movimento anormal de compras de papéis da Sadia e
Perdigão no mercado americano, a sec chegou ao nome de Romano Ancelmo Fontana,
filho de Ancelmo Fontana, um sobrinho de Attilio que estava na Sadia desde a fundação.
Ancelmo Romano também comprou ações valendo-se de informações privilegiadas.
Retratou-se e deixou a Sadia, criando mais constrangimentos para a família.
As investigações sobre o
vazamento de informações ainda não se encerraram. A cvm averigua a compra, na
mesma época, de ações da Perdigão no mercado internacional pela Coinvalores, de
São Paulo. A empresa pagou 23 milhões de dólares pelas ações dois dias antes do
anúncio da oferta hostil, e as revendeu por 28 milhões pouco depois. Um dos
donos da Coinvalores é Fernando Telles, cunhado de Luiz Fernando Furlan.
Sérgio Rosa não esqueceu
a investida da Sadia na Perdigão, mas as relações da Previ com a empresa já
eram ruins há bem mais tempo. A Previ tinha uma participação de 5% na Sadia e,
durante anos, tentou ter assento no conselho. A direção da Sadia usou de vários
subterfúgios para evitar que isso acontecesse, até telefonar para outros
acionistas minoritários pedindo que se juntassem para barrar a entrada da
Previ. Por isso, quando a Previ exigiu uma assembleia extraordinária para ver
as contas da Sadia, logo depois do escândalo dos derivativos, Luiz Furlan
procurou Sérgio Rosa para pedir que ele não expusesse ainda mais a empresa,
apontando culpados. Rosa concordou, mas quis que uma consultoria da sua
confiança, a Trevisan bdo, assumisse o lugar da kpmg, escolhida pela Sadia, na
auditoria das contas da empresa.
Depois da conversa com
Luciano Coutinho, Sérgio Rosa telefonou para Nildemar Secches, presidente do
conselho da Perdigão, e avisou que o governo queria que comprasse a Sadia.
Secches convidou Walter Fontana Filho para um almoço no restaurante Le Coq
Hardy, no Itaim, e lhe esboçou uma proposta. Dias depois, no começo de
novembro, Nildemar Secches chamou Furlan para uma conversa e lhe propôs oficialmente
a compra da Sadia. Furlan disse que não venderia a empresa. Explicou que ainda
tinha esperanças de que o bndes injetasse dinheiro na companhia e virasse
sócio. Não seria diferente do que o banco já fizera com dois frigoríficos, o
jbs e o Bertin.
Do lado da Perdigão
também se duvidava que o negócio pudesse ir adiante. "Achávamos que a
Sadia resistiria", disse um sócio da Perdigão. "Ela ficaria menor, é
claro, mas nunca imaginamos que acabasse vendida." Mas, assim como fizera
nas telecomunicações, quando usou os fundos de pensão para forçar a venda da
Brasil Telecom para a Oi, o governo Lula viu na crise da Sadia a oportuni-dade
de criar uma grande empresa nacional, agora no setor de alimentos.
No dia 10 de dezembro de
2008, num outro encontro com Nildemar Secches, Furlan compreendeu que não tinha
saída. Ao sair da reunião, ele telefonou para alguns familiares e disse:
"O mistério está desvendado, o governo quer a fusão."
No dia 26 de dezembro
houve mais uma reunião, para se acertar detalhes do negócio, dessa vez no
bndes. Participaram Furlan, Secches, Walter Fontana e Luciano Coutinho. Secches
saiu de férias e voltou em
fevereiro. Nesse meio tempo, a Sadia foi procurada pela
Tarpon, uma administradora de recursos, que queria entrar como sócia da empresa.
A Tarpon se disporia a fazer a capitalização necessária para salvar a Sadia.
Furlan reuniu-se com os acionistas e expôs a nova opção. A maioria decidiu pela
fusão com a Perdigão. "Os herdeiros estavam exaustos, ninguém queria
arriscar mais nada.", contou um deles.
No dia 27 de março
passado, a Sadia anunciou seus resultados de 2008. Fechara o balanço com um
prejuízo de 2,5 bilhões de reais, o primeiro em toda sua história. Em seguida,
Furlan chamou os controladores para uma reunião. Yara Fontana compareceu à
reunião no prédio da Fundação Attilio Fontana, na Vila Anastácio, em São Paulo, usando uma
faixa preta como braçadeira, em sinal de luto. "É por causa do
Corinthians?", perguntou-lhe Furlan, segundo ela, em tom de deboche.
"Achei aquilo completamente desrespeitoso", disse Yara.
"Tínhamos perdido a empresa fundada por nosso avô e o Luiz ficou ainda
tentando fazer graça."
Em abril, uma assembleia
da Sadia aprovou a abertura de processo contra Adriano Ferreira por perdas e
danos. Ferreira reagiu e processou a empresa por danos morais. "É
vergonhoso o que fizeram comigo", disse ele. "A direção e o conselho
sabiam o que estava sendo feito. Todos os meses eu mandava relatórios
explicando nossas posições.
O comitê de risco tinha
acesso on-line a tudo que estava sendo feito. Todo mundo estava muito feliz
ganhando rios de dinheiro com os dividendos. Quando a farra acabou, trataram
logo de arranjar um bode expiatório."
Para processar Adriano, a
assembleia baseou-se em um relatório de 200 páginas feito pela Trevisan bdo, a
auditoria contratada para analisar os estragos na Sadia. O relatório, que está
em segredo de Justiça, sustenta que Adriano Ferreira, junto com o gerente
financeiro Álvaro Ballejo Fiúza de Castro, fez operações num terminal de
computador às quais os conselheiros e executivos não tinham acesso. Mas a
auditoria critica o comando da companhia por não ter controlado os
subordinados, já que as operações com derivativos estavam sendo feitas desde
julho de 2007. A
Perdigão, por exemplo, que recebera as mesmas propostas dos bancos, recusou-as
por considerá-las muito arriscadas.
Também pesaram na decisão
de processar Ferreira as declarações que ele e Ballejo de Castro teriam feito
de próprio punho, antes de deixarem a empresa. Nas declarações, que estão
depositadas em um cartório de São Paulo, ambos admitiriam ter feito as
operações de forma a confundir a direção da companhia.
Num inquérito que corre
em sigilo na cvm, Bruno Tsuji, ex-analista de tesouraria da Sadia, diz que
Ballejo de Castro decompunha as operações com derivativos em diversos programas
para que o sistema não detectasse os riscos reais das operações. Para isso,
Adriano Ferreira e Ballejo de Castro usavam um endereço de e-mail da Bloomberg
que não passava pelo sistema de mensagens corporativas da Sadia.
Ao saber que a Sadia
decidira processar apenas Adriano Ferreira, Yara mandou, no mesmo dia, um
e-mail para Welson Teixeira Junior, diretor de relações com os investidores da
companhia, dizendo:
Foi com muita tristeza que vi o resultado da
assembleia da Sadia na data de hoje, na qual foi responsabilizado pelos
problemas financeiros ocorridos somente o senhor Adriano Ferreira. Jamais
imaginei que a empresa fundada por meu avô fosse um dia imputar aos peões a
responsabilidade que cabe aos patrões.
"O Adriano Ferreira
pode ter cometido todos os erros, mas é inadmissível que tenham deixado a
responsabilidade de um caixa de 12 bilhões de reais nas mãos de um executivo
jovem e sem muita experiência", disse-me Yara. "O que todos os conselheiros
estavam fazendo que não enxergaram isso? Ficavam sentados lá fazendo o
quê?"
Adriano Ferreira continua
desempregado. Sua mulher, grávida de gê-meos quando foi demitido, teve bebês
prematuros, que passaram semanas no hospital. "Tudo aquilo foi um show de
horrores", disse-me ele.
No dia 19 de maio, a
fusão foi sacramentada. Surgiu a Brasil Foods, um gigante com 25 bilhões de
reais em vendas, 10 bilhões em exportações, 4,2 bilhões em investimentos e 120
mil funcionários espalhados em 64 fábricas.
A Sadia ficou com 32% da
nova empresa - sendo 12% da família - contra 68% da Perdigão. Coube a José
Antônio Fay, da Perdigão, a presidência executiva. Furlan e Walter Fontana têm
assento no conselho de administração. Depois da aprovação da fusão pelo
Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, em dezembro, um dos dois
terá que sair. Antes disso, Osório, o pai de Luiz Fernando Furlan, lançará seu
livro de memórias, no qual critica "a irresponsabilidade e a ganância na
Sadia". O livro é editado pelo clã Furlan.
Concórdia reagiu mal ao
anúncio de que a sede da Brasil Foods deverá ficar em Itajaí, também em Santa Catarina. Glaucemir
Grendene, secretário de desenvolvimento da prefeitura, contou que 45% da
arrecadação de Concórdia vêm da Sadia, que emprega 7 mil dos seus 70 mil
habitantes. "Houve mudanças, outras empresas surgiram na cidade, mas a
Sadia continua sendo a mãe de Concórdia", disse ele. "Não apenas os
empregados e suas famílias, mas toda uma cadeia, que vai do produtor até o
comércio, ainda depende da empresa."
Grendene disse que a
fusão ainda não provocou impacto econômico: "O problema maior é
psicológico. Os moradores tinham muito orgulho de a sede da Sadia ser aqui. Uma
carteira de funcionário da Sadia abria portas do crédito mais do que qualquer outro
documento. Há uma relação de amor muito forte com a empresa."
Quando o negócio foi
fechado, a Sadia aunciou que a Fundação Attilio Fontana, que paga uma
aposentadoria complementar aos funcionários, seria extinta. "Foi uma
angústia", contou Agostinho Schiochetti, presidente da entidade. "Só
agora conseguimos a garantia de que a fundação não vai acabar." Vittorio
Galeazzi, que ouvia a conversa, esfregou a mão na calva e disse: "Não sei
como permitiram entregar a Sadia para a Perdigão. Nós éramos os maiores. Os
melhores. Ninguém podia competir com a gente. É tudo muito triste."
Consuelo Dieguez – novembro de 2009.
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