O noticiário em todo o mundo aponta para uma alta generalizada de preços, dando especial ênfase ao aumento do petróleo e dos alimentos básicos de consumo. As manchetes destacam que, em 2007, a inflação nos Estados Unidos foi de 4,1% e, nas nações em desenvolvimento, 6,69%. Em 2008, atingiu 3,7% na Comunidade Européia, o maior nível dos últimos 15 anos. No Brasil chegou a 5,41%. Assim, a inflação, e não o crescimento, está se transformando na principal preocupação em nível macroeconômico global. “O dragão que parecia domado nos anos 1990 escapou da jaula”, destacava a revista Carta Capital em 28 de maio.
Nas commodities minerais, o aumento do petróleo superou todas as expectativas. Em junho de 2008, o valor do barril atingiu U$ 140, o quádruplo de 2003. Por sua vez, os principais grãos como trigo, milho, arroz e soja em média dobraram de preço no mercado internacional entre a safra de 2006 e hoje. A “aginflação”, ou seja, a influência do aumento dos alimentos na aceleração inflacionária no mundo é destacada por vários analistas. De acordo com reportagem da Folha de S. Paulo1, na China, no Japão e em alguns paises da África Central, o aumento dos preços dos alimentos contribuiu em até 75% com a inflação no ano passado.
A tendência de alta no custo da comida continua forte. O índice de preços dos alimentos do Banco Mundial subiu 57,5% no primeiro trimestre deste ano, destacando-se o crescimento de itens essenciais da dieta de populações de baixa renda, como o arroz. Este aumento tem sido motivo de protestos populares – muitos deles com mortes – na Costa de Marfim, Egito, Camarões, Bangladesh, Índia, Filipinas, Haiti e México. São 33 países sofrendo com a crise e a instabilidade social, correndo o risco de não conseguir mais alimentar o povo com o atual modelo de agricultura. O já enorme contingente de 854 milhões de pessoas que passam fome no mundo pode crescer em mais 100 milhões, alerta o Programa de Alimentos das Nações Unidas.
Por isso, a fome volta a ter destaque entre os fatores que geram instabilidade. A crise pode alterar a geopolítica mundial e tornar os alimentos catalisadores de outros conflitos e instrumentos de pressão política. Os países mais vulneráveis são os importadores líquidos de alimentos. O Ocidente, com suas empresas transnacionais, controla quase todo o comércio mundial do setor.
Autoridades governamentais e de organismos internacionais, agentes financeiros, representantes do agronegócio, acadêmicos, jornalistas e militantes de movimentos sociais e de organizações não-governamentais têm atribuído o aumento dos preços dos alimentos a diversas causas.
Assim, apontam-se fatores relativos à demanda, como:
• O aumento do consumo por populações saídas da situação de pobreza em países emergentes como China e Índia. Esse crescimento vem acompanhado da mudança do padrão de consumo. As pessoas não só comem mais, como procuram mais carne, ovos, laticínios. Já que um quilo de alimento animal implica em dez quilos de alimento vegetal na forma de rações, a demanda por grãos cresce.
• O incremento do processo de urbanização tem feito com que antigos camponeses, agora habitantes de favelas ou subúrbios, deixem de produzir seu próprio alimento, tendo que garantir seu sustento no mercado.
Ou fatores relacionados à oferta, como:
• Quebras de safra em países como Austrália e China, devido à mudanças climáticas que vêm afetando regiões agrícolas em todo o mundo.
• O aumento dos preços dos fertilizantes e fretes em decorrência da forte elevação dos preços do petróleo.
• A utilização de bens alimentares para a produção de agrocombustíveis, como a beterraba e a canola na Europa, a soja no Brasil e, particularmente, o milho nos Estados Unidos, onde se gasta 10% da produção mundial desse grão para obter etanol.
• A redução dos estoques internacionais de trigo, milho e soja, apesar de a produção agrícola mundial ter crescido em 4% na safra de 2006/07.
• A desvalorização do dólar enquanto unidade do mercado internacional. Como Delfim Netto destacou2, comparando o The Economist Commodity Price Index – índice de preços de commodities medido em dólares com o em euros, a mesma cesta de produtos está 70% “mais cara” em moeda americana.
Ou elementos mais estruturais como:
• Três décadas de acordos de livre comércio e políticas neoliberais que, nas palavras de Peter Rosset, do Centro de Estudos para a Mudança no Campo Mexicano (Ceccam), desmantelaram a capacidade da maioria dos países de produzirem o seu próprio alimento enquanto promoviam a agricultura de exportação e o crescimento das empresas transnacionais. Dessas grandes companhias com sede principalmente nos EUA e Europa, quarenta compõem o cartel das seis transnacionais de grãos (Cargill, Continental CGC, Archer Danields Midland, Louis Dreyfus, Andre Corporation e Bunge), que passaram a controlar a produção e a comercialização dos principais produtos. Segundo a organização não governamental ActionAid, nos meses recentes a Cargill teve um aumento de 86% em seus lucros e a Archer Daniels Midland, de 700% nos ganhos de sua divisão de serviços agrícolas.
• A insuficiência de investimentos na agricultura pelos Estados, particularmente em função do impacto das políticas neoliberais nos países em desenvolvimento. Comparado com outros setores, a situação da agricultura é grotesca. O gasto militar global cresceu 45% nos últimos dez anos. Em 2007, a despesa com defesa equivaleu a U$ 202 por habitante, alcançando a cifra astronômica de U$ 1,34 trilhão, o que representa 190 vezes mais do que os participantes da recente cúpula sobre Segurança Alimentar da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) prometeram investir no combate à fome no mundo.
• O jogo duplo dos governos das nações desenvolvidas. Por um lado, dão subsídios e colocam barreiras para garantir sua própria produção agrícola com preços que configuram como dumping sobre outros países (são U$ 50 bilhões anuais de subsídios na União Européia). Por outro, exigem a liberalização dos mercados dos países em desenvolvimento, desestruturando, em muitos casos, a soberania alimentar dos mesmos. Até 1960, a grande maioria dos países era auto-suficiente na produção dos alimentos. Hoje, 70% das nações do hemisfério sul, onde vivem 4,8 bilhões de pessoas, se transformaram em importadores desses produtos.
• A catástrofe em câmara lenta apontada por especialistas em agricultura e desenvolvimento. Como Ladislau Dowbor ressaltou3, a expansão da monocultura extensiva, das sementes caras e monopolizadas, dos circuitos comerciais cartelizados, das tecnologias pesadas, da esterilização dos solos por excessiva quimização (a cada ano perde-se 1,5 milhão de hectares cultivados em função da salinização das terras) e da irrigação em grande escala com esgotamento dos aqüíferos (hoje a agricultura consome 70% de toda a água potável) estão provocando um círculo vicioso de desestruturação que ameaça o planeta.
• A especulação nas bolsas de futuro, que transforma a fome do mundo na nova fonte de lucro do capital financeiro.
Depois da crise imobiliária...
Como se pode ver, o debate sobre as causas do aumento do preço dos alimentos não é neutro. Em função de seus interesses e concepções, diversos atores têm destacado alguns fatores ou diluído as suas responsabilidades no conjunto deles. Tomemos só uns poucos exemplos. Para o presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, ex-ministro de relações exteriores do governo Bush, “a culpa” da crise seria “de todo mundo”. E por isso a saída é fazer um novo acordo, nos marcos da Organização Mundial de Comércio, visando um outro patamar de preços e produção. Já para o governo Lula, “a culpa” seria dos subsídios à agricultura dos países ricos. Se eles não existissem, os agricultores do sul poderiam aumentar sua produção e exportar a menor preço. Para empresas transnacionais de alimentos e bebidas como a Nestlé, Unilever, Kellogs, Danone, Cadbury, Mars, Heineken e Pepsi-Cola, como argumentaram em carta recente ao Conselho Europeu, que reúne os 27 presidentes do bloco, os agrocombustíveis são o principal fator da alta dos preços agrícolas. Solicitam assim que a UE desista da meta de misturar 10% de etanol aos combustíveis até 2020, pois isso implicaria numa “mudança dramática” do uso da terra na Europa. A produção de agrocombustíveis, acreditam, é “eticamente indefensável”4.
Vários acadêmicos e militantes de movimentos sociais e organizações não governamentais reconhecem o conjunto de causas, mas apontam que para explicar o aumento exponencial dos preços dos alimentos é preciso dar mais atenção à especulação. Segundo Boaventura de Sousa Santos5, estes aumentos especulativos – como também os do petróleo – seriam resultado do capital financeiro (bancos, fundos de pensões, fundos de alto risco e rendimento) ter começado a investir fortemente nos mercados internacionais de produtos agrícolas depois da crise no setor imobiliário. Articulado com as empresas transnacionais que controlam a comercialização de sementes e a distribuição mundial de cereais, o capital financeiro investe no mercado de futuros na expectativa de que os preços continuarão a subir. E, ao fazê-lo, reforça essa expectativa. Peter Rosset concorda com a avaliação e lembra que 61% de todos os contratos futuros de trigo dos Estados Unidos estão detidos por fundos de risco multimercados. Estudos da ActionAid apontam que a especulação nos mercados futuros movimentou US$ 1 bilhão diariamente entre fevereiro e março deste ano, volatilizando os preços e afastando-os da realidade da produção.
O mercado agrícola internacional apresenta novos perigos em termos de imprevisibilidade e irracionalidade. “No passado, oferta e demanda, chuva e seca direcionavam os preços futuros de grãos”, analisa Fernando Muraro, da Agência Rural. Nos últimos anos, perdeu-se essa formação básica e a volatilidade dos preços que historicamente era de 20% chegou a 50%. Essas novas tendências do mercado agrícola são promovidas, em boa parte, pela entrada de novos fundos. E o ritmo acelerado do mercado futuro chega a negociar 22 safras anuais de soja. Só os fundos são responsáveis por oito delas. Em 2007, o mercado futuro agrícola da Chicago Board of Trade (bolsa de mercadorias da cidade de Chicago) negociou 7,3 bilhões de toneladas de milho, 4,3 bilhões de soja e 2,7 bilhões de trigo. Enquanto a produção física desses produtos em 2007 foi de 780 milhões, 220 milhões e 606 milhões de toneladas, respectivamente6.
Novos milhares de fundos se especializam em nichos. Quando o governo americano reduziu a taxa de juros, as aplicações de renda fixa ficaram menos atraentes e os fundos ampliaram os investimentos com ações na Dow Jones, passaram pela Nasdaq, inflaram o mercado imobiliário americano e europeu, migraram para as commodities minerais como o petróleo e chegaram nas agrícolas.
Na visão tradicional de alguns analistas, os fundos não criam mercados, mas apenas vão onde existe liquidez. Quem criaria os mercados seriam os hedgers (cooperativas, grandes atacadistas, exportadores e outros agentes comerciais que produzem ou utilizam as commodities). Os investidores nos mercados de ações conhecidos como day traders – que em muitos casos são os fundos –, apenas aumentariam ou diminuiriam a febre dos preços, a volatilidade que viria do desencontro entre a oferta e a demanda.
Muito além da oferta e demanda
Mas sob uma visão crítica, os preços atuais escondem muito mais que o jogo da oferta e da demanda. Segundo Muraro, o mercado registrou, no ano passado, os maiores estoques de soja da história e mesmo assim os preços explodiram. Em agosto de 2007, a saca do produto na bolsa de Chicago estava a U$ 17,60. Em fevereiro de 2008, havia aumentado a U$ 35 e em abril, recuava para U$ 24. Mais que oferta e demanda, o que existe é uma financeirização do mercado que veio para ficar e está gerando um novo boom para as commodities. Os riscos aumentaram, porém não desagradaram os participantes dessa ciranda especulativa. Para os produtores pode significar preços maiores. Para os investidores, a possibilidade de incrementar lucros. Para as bolsas, uma liquidez mais atraente. Para os pobres, fome.
O aumento das transações agrícolas não se dá só no exterior. No Brasil, a BM&F Bovespa vem duplicando anualmente as operações. Em 2005, foram U$ 12,5 bilhões; em 2007, U$ 24,3 bilhões; e em 2008 poderão ser negociados U$ 45 bilhões. Os capitais estrangeiros já representam 17% de seus negócios7. Até em Washington a atuação dos especuladores financeiros está sendo questionada. Os senadores Karl Levin e Joseph Lieberman têm criticado as autoridades regulatórias do governo por não reprimirem a especulação. Lieberman está trabalhando numa proposta que proíbe a atuação dos grandes investidores institucionais no mercado de commodities8.
Enquanto isso, alguns investidores institucionais estão fazendo apostas mais ousadas e de longo prazo, adquirindo terras aráveis, depósitos de fertilizantes, silos para armazenar grãos e equipamentos de transportes. Fundos como Black Rock são proprietários de terras aráveis na África sub-saariana, no Brasil e até na Inglaterra, e a Calyx Agro está adquirindo milhares de hectares brasileiros. Investidores chineses, americanos, franceses, holandeses e ingleses estão comprando usinas no Brasil e formando um estoque de terras que rende uma valorização acelerada semelhante à especulação típica das zonas urbanas. A Braemar Group está investindo em terras no Reino Unido que, segundo executivos da empresa, têm “atraso” nos preços, já que custam 50% menos que as na Irlanda e na Dinamarca9.
Mercado financeiro: a causa oculta
Com o controle da terra e outros negócios agrícolas, os fundos ficam livres das regras que visam limitar as apostas especulativas no mercado de commodities. Através dos silos, seriam capazes de comprar e vender grãos físicos, e não apenas seus derivativos financeiros. Quando os preços estão em alta, manter estoques para a venda futura pode oferecer lucros maiores do que atender à demandas correntes. Ou, caso haja preços divergentes em outras partes do mundo, os estoques podem ser despachados ao mercado mais lucrativo. Com estas aquisições, os investidores financeiros estariam em condições de reproduzir a especulação através do bloqueio da oferta com retenções de estoques para forçar uma alta artificial dos preços10.
Como afirma Boaventura de Sousa Santos, o que há de novo na fome do século XXI diz respeito não só às causas, mas principalmente ao modo como as principais delas são ocultadas. A diluição da responsabilidade pela especulação é um claro e perigoso exemplo. A fome hoje é a nova grande fonte de lucros do capital financeiro. “É preciso acabar com a especulação financeira e com o mercado futuro de alimentos, que joga roleta russa com nossas vidas”, arrisca, esperançosa, a ativista iraniana Maryam Rahmanian, da organização Cenesta. Mais pragmática, a ActionAid aposta em algumas medidas a serem apresentadas, debatidas e adotadas na Conferência das Nações Unidas, que ocorre em setembro deste ano. Elas pretendem cumprir a difícil tarefa de inibir a especulação financeira que aflige a produção de alimentos: estoques regulatórios maiores, limite para as posições de compra e venda, aumento da margem de depósitos requeridos e taxação de transações especulativas. As dificuldades são enormes, mas o acesso aos alimentos é ainda maior a luta pelo direito elementar à vida.
Fonte: Jornal Le Monde
Jorge O. Romano é doutor em Ciências Sociais pelo CPDA da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e integra a ActionAid Brasil.
Retirado do Site: sindaspisc.org.br
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