“Essa moça é um blefe, ela foi inventada; e está defendendo uma política que, na superfície, parece ser muito boa […] Ela não vem ao debate porque ela não pode, ela não tem respostas”. (Plínio de Arruda Sampaio, o Plinião, em 2010, a respeito da candidatura Dilma).
Por José Carlos Freire[i]
A candidatura de Guilherme Boulos à presidência
indica dois movimentos contraditórios: a possibilidade de ser a
campanha do PSOL com maior impacto e alcance e, ao mesmo tempo,
representa o colapso do partido. É certo que a história é maior que
partidos; a luta é maior que lideranças. Mas o momento exige um balanço
crítico.
O
PSOL nasceu com a proposta de ruptura com o pragmatismo petista de
eficácia eleitoral a qualquer preço e sofreu durante mais de uma década a
difícil tensão histórica de ser antagonista, à esquerda, da carismática
e hipnótica liderança de Lula.
E
foi no período histórico pós-2013 que a avenida da história se abriu.
Estava posto o desafio aos partidos de esquerda: superar o encurtamento
do horizonte político restrito ao calendário eleitoral desde 1989. O
desgaste do programa democrático popular do PT – que não só dependia da
famosa conciliação de classes, mas também de um fluxo de capital não
mais disponível tal como nos primeiros anos da gestão de Lula –
associado ao acirramento da crise econômica, a não acidental
desorganização dos trabalhadores, a ascensão de forças conservadoras e a
consequente a polarização política trouxe à baila uma contradição
imperativa: nunca fora tão difícil falar de mudanças estruturais nas
últimas décadas e, ao mesmo tempo, nunca fora tão urgente.
O
PSOL, no entanto, não esteve a altura de sua tarefa histórica. Sendo
mais justo: a direção do partido não leu – ou não quis ler –
corretamente a conjuntura e, por isso, não soube dirigir o partido para
que cumprisse sua tarefa. É evidente o importante papel da bancada
parlamentar em municípios, estados e na Câmara. Isso era exatamente um
fator de credibilidade ao PSOL num contexto em que os partidos
tradicionais se desmoralizaram.
A
aproximação com a eleição de 2018, porém, expôs o desafio: crescer como
partido, na organização da classe; ou crescer como Partido,
eleitoralmente. Por isso, no momento de completar o longo processo de
ruptura com o petismo, a direção do PSOL fez o contrário: requentou o
ideário petista ao distanciar-se das bases; apostou todas as fichas no
crescimento eleitoral, no pragmatismo burocrático e no centralismo das
decisões pelo alto. A participação eufórica de importantes lideranças e
do presidente
do PSOL no evento de lançamento da candidatura de Boulos, antes que ele
fosse filiado, mesmo havendo outras pré-candidaturas e sem que o
partido decidisse coletivamente o candidato é apenas um dos lamentáveis
exemplos.
Nascerá
outro partido desse contexto? O PSOL se tornará o Vamos!? Terão as alas
discordantes da candidatura Boulos força para ganhar a direção no
próximo período e mudar os rumos? O tempo dirá. O que temos para hoje é a
reaproximação objetiva do PSOL com o PT, na forma e no conteúdo.
O
modo como se deu todo o processo de escolha do candidato não soaria
muito estranho em um agrupamento político novo ou indefinido; o que
estranha é que aconteça com um partido cuja razão de sua existência
inicial tenha sido exatamente a superação do modo de organização
partidária do PT – determinando por cima os rumos e expulsando os
descontentes. Em um partido socialista, cada passo é indiscutivelmente
importante, tanto quanto o ponto de chegada desejado. Não se forma uma
alternativa mantendo-se o método antigo; não se chega a um lugar
diferente pelo mesmo caminho. Atalhos antidemocráticos não aceleram o
socialismo tanto quanto de abacateiro não nasce melancia.
E
por que a direção do Partido evitou as prévias, o amplo debate e o
confronto de Programas? Por que ignorou e tratorou as bravas e
guerreiras candidaturas de Nildo Ouriques, Hamilton Assis e Plínio
Sampaio Jr.? A resposta é simples: porque não podia abrir a discussão.
Como ficou evidente no único debate promovido, a candidatura Boulos
dificilmente sobreviveria a uma dezena do mesmo nível, como deveria ser
em um partido de fato democrático.
O
velho Plínio de Arruda Sampaio, com sua capacidade peculiar de
apresentar sínteses sobre a política que permanecem válidas até hoje,
dizia em 2010 que Dilma não ia para o debate e não enfrentava as
questões do Brasil real. O motivo: ela não tinha respostas.
A
direção do PSOL já estava fechada com o nome de Boulos. Isso não é
factual ou simplesmente uma decisão de campanha: trata-se de uma
reconfiguração do partido. No aparente afã de modernização da esquerda,
por certo inspirado nas experiências europeias como o Podemos e outros, a
direção cai na vala comum da política brasileira: traveste o velho como
sendo novo. A ideia de fundo dessas experiências, guardadas as
particularidades, é a do socialismo pós-marxismo. Noções como luta de
classes e crítica o capitalismo cedem lugar ao vago conceito de
cidadania e à descontextualizada proposta de democracia. Não por acaso,
troca-se Karl Marx por Boaventura Santos, referencial teórico apontado
por Boulos no debate dos pré-candidatos.
Se
as experiências europeias recentes são uma espécie de subproduto do
eurocomunismo que, por sua vez, já era um subproduto da velha
socialdemocracia, a edição brasileira da “nova esquerda” materializada
no PSOL/Vamos! acaba por se configurar com subproduto do subproduto, por
que não realiza as mediações necessárias de um capitalismo dependente e
subordinado como o brasileiro e nem compreende as particularidades da
luta de classes na periferia do capitalismo.
Como
em toda posição revisionista do marxismo, o ponto de ruptura, inerente
ao referencial socialista, vai se distanciando sempre mais até que
ninguém fale dele. E tudo vira luta por direitos numa situação em que
eles não são mais possíveis, a não ser por mudanças estruturais advindas
da luta dos trabalhadores que transitam para a autonomia de classe
efetiva, algo a que a “nova esquerda” não se propõe.
Quanto
ao conteúdo da candidatura é preciso recordar que perspectiva histórica
de curta duração é um erro grave em qualquer método de análise que se
pretenda crítico. E a consequência, como se sabe, é o erro também na
ação. O PSOL/Vamos! nos circunscreve ao curto período da
redemocratização e ainda assim, por dificuldades em se contrapor ao PT,
realiza um salto temporal de 2003 a 2016. Nesse sentido, o governo Temer
aparece como o adversário, a eleição se mostra como solução e a
retomada do Estado democrático pós-Constituição de 1988 surge como
estratégia.
O horizonte, portanto, não é a organização da classe trabalhadora para o enfrentamento da ofensiva da burguesia
que lhe declarou guerra aberta e muitíssimo menos o posicionamento do
partido como instrumento de luta com vistas à revolução brasileira –
esse vocabulário, provavelmente, cheira a século XIX a quem embarcou na
ideia de “nova esquerda”.
Ao
contrário, o que se anuncia é: a importância da vitória eleitoral, a
anulação das medidas do governo Temer e a retomada das políticas dos
governos do PT. Essa meta desconsidera a conjuntura de derretimento do
sistema político, a crise do capitalismo pela assombrosa queda da taxa
de lucro em nível mundial e subestima a força do adversário – não Temer,
mas a classe que ele representa – que, tal como no xadrez, já tem 3 ou 4
jogadas antecipadas.
A
gestão petista, criticada pela vaga noção de “governos de conciliação”,
fica, surpreendentemente, isenta de maiores responsabilidades, tomada
como vítima de um golpe com o qual não teria compactuado. Não por acaso,
as gerações mais novas que se engajam na militância têm enorme
dificuldade em diferenciar o “golpe” de 2016 do Golpe de 1964. Mesmo que
muitos não queiram, as palavras continuam sendo importantes pra definir
as coisas.
Se
recuássemos um pouco mais e alargássemos o campo de análise veríamos
que as coisas são, no mínimo, mais complexas. Os dois séculos de
transição da colônia à nação, com os seus tempos críticos e intensos
como a Independência, a Abolição, a República, os governos Vargas e
Jango têm, no Golpe de 1964, um ponto de inflexão fundamental, sem o
qual pouco entendemos do contexto presente. A chamada Nova República,
pós-ditatura, já é um rebaixamento profundo do que poderíamos ter sido e
não fomos como país.
É
naquele horizonte já rebaixado que os governos petistas conseguiram
tirar da Nova República o máximo que ela podia oferecer: democracia de
baixíssima intensidade, manutenção da segregação social, continuidade
dos privilégios, subordinação do país ao imperialismo. Um governo de
pequenas vantagens aos trabalhadores, por certo, mas um governo da
ordem. É esse o lugar histórico do PT. Quantas décadas mais levar a
esquerda brasileira a fazer essa síntese, maior sua tragédia. Discursos
inflamados no palanque e capacidade enfeitiçadora de convencimento de
Lula não mudam a realidade.
O
evento Boulos, definido por Plínio Sampaio Jr. como “sub-Lula”,
funciona, nesse particular, como uma espécie de analgésico: alivia, mas
não resolve. Será possível que uma gama de eleitores petistas,
provavelmente impedidos de votar em Lula, migrem os votos
para Boulos com a consciência tranquila. O PSOL/Vamos!, de modo
alquímico, conseguirá a proeza de fazer com que a esquerda brasileira – e
isso é visível na classe artística de perfil progressista – deixe de
votar em Lula sem romper com o lulismo, sem fazer a crítica do período
anterior.
No instigante artigo “Cultura
e política, 1964 a 1969”, escrito no calor da hora por Roberto Schwarz,
percebemos que esse roteiro é antigo. Falando do ambiente cultural
pós-Golpe, o autor exemplifica o caso do Show Opinião, espetáculo
musical lançado em dezembro de 1964. A classe artística,
majoritariamente de esquerda, encontra ali um ambiente de entusiasmo, em
que não era difícil vislumbrar a possibilidade de se derrubar a
ditadura. O otimismo da classe artística da época só podia se sustentar
na ausência de crítica ao populismo e aos equívocos da estratégia do
PCB. Como lembra Schwarz, não se percebia o tamanho da derrota da qual
se vinha. De modo análogo, respeitadas as diferenças históricas, o
otimismo gerado pela “nova esquerda” do PSOL/Vamos! só pode se afirmar
na ausência de crítica ao petismo. Não por acaso, respira-se otimismo
nos setores que apoiam a candidatura Boulos como se a vitória, tocada
por uma vanguarda arejada, moderna e jovem, estivesse ali na frente. Tal
como em 1964, uma esquerda derrotada triunfa sem crítica.
Esperava-se
que o PSOL viesse a se afirmar como ruptura, superando o fantasma do
petismo que o assombra desde o início. Não deu. O filho pródigo voltou
para a casa do pai. Imperou o pragmatismo e a burocracia da direção, a
aposta na eficácia eleitoral e o rebaixamento do programa. Foi-se o
socialismo, foi-se a liberdade. Restou algo amorfo, típico dos partidos
da “nova esquerda”.
A
candidatura de Boulos é um engodo que marca o colapso do PSOL e reforça
o traço da esquerda brasileira recente de orbitar em torno da figura de
Lula. Tomara que a aliança do PCB, sem a contrapartida da crítica ao
método e ao conteúdo da candidatura Boulos, não venha a transformá-lo em
mais um planeta desse sistema solar. A propagada unidade da esquerda,
enquanto não se rompe com o petismo, permanece sendo unidade em torno de
Lula ou de qualquer figura que encarne sua herança.
Respeito
muito, mesmo na discordância, as forças políticas que se engajarão na
campanha de Boulos. Mas não me parece o caminho. Não da forma que foi,
não com o conteúdo que representa. Creio que estejamos como os caçadores
na história de Curupira, só que às avessas: as pegadas apontam que a
esquerda vai pra frente; mas de fato ela vai pra trás.
Por
isso, devemos à direção do PSOL e a Boulos a ampliação dos desafios de
primeira ordem na esquerda socialista brasileira. Antes tínhamos dois:
enfrentar a ofensiva neoliberal e superar o PT. Agora temos um terceiro:
superar o PSOL.
É
evidente que será muito melhor que a história dê razão aos entusiastas
da candidatura Boulos, desmentindo vigorosamente a breve e limitada
reflexão aqui exposta. No entanto, “torcer para que dê certo” não me
parece uma tática apropriada ao nosso tempo histórico, nem a quem
pretenda de fato mudar as coisas e não apenas os nomes delas.
[i] Professor de Filosofia na UFVJM, campus de Teófilo Otoni/MG. Membro do GEPLA (Grupo de Estudos do Pensamento Latino-Americano). Email: freire.jose@hotmail.com
Fonte da Imagem: https://goo.gl/kJGJRp
https://goo.gl/8eBzS8
Fonte: Observatório Veias Abertas
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