Surpreendentemente, a teoria marxiana sobre o fetichismo das relações capitalistas não vem sendo utilizada pela maior parte da esquerda no entendimento de dimensões decisivas da adesão das massas trabalhadoras brasileiras aos presidentes da República eleitos a partir da estabilidade monetária posta pelo Plano Real (1994). Nas análises mais conhecidas, os ganhos reais do salário médio e a recomposição do poder de compra do salário mínimo, conjuminados com o aumento das taxas de acumulação capitalista, fenômenos presentes entre o primeiro governo FHC e o atual governo Dilma Rousseff, são relacionados com os valores e as ideias políticas da classe trabalhadora sem a mediação da teoria sobre a aparência necessária das trocas mercantis e o seu poder de convencer o proletariado de que o capitalismo seria justo, igualitário e inevitável. Essa atitude deixa fora do campo de batalha teórico uma das armas mais sofisticadas usadas por Karl Marx na defesa dos assalariados e dos camponeses.
A teoria sobre o fetichismo exposta em O Capital possibilita perceber que não são as instituições com funções ideológicas (como o Estado, a mídia e a escola) as responsáveis principais pelo fato de o proletariado aderir, na maior parte do tempo, à Ordem capitalista. Os simples atos comprar e vender instalam a alienação na consciência operária antes de o trabalhador compreender-se e atuar como membro de uma comunidade política ou fiel de uma igreja. A consciência do trabalhador é capturada pela aparência da circulação das mercadorias. Ele imagina participar de uma troca de valores iguais com o capitalista: trabalha oito horas por dia e acredita receber o equivalente monetário a esse tempo de trabalho (o agricultor familiar experimenta uma ilusão análoga, contudo ainda mais profunda, pois vende seu trabalho já coagulado em um produto). Pensa-se, assim, como igual ao seu patrão, como um livre vendedor e comprador, supõe um mundo justo e igualitário e remete essas justiça e igualdade aparentes para o campo jurídico-político, constituindo a base subjetiva para a legitimação do Estado formalmente democrático.
O processo inflacionário é um dos elementos capazes de dissolver a aparência de troca de equivalentes entre o trabalhador e o capitalista e, em consequência, de desestruturar progressivamente a adesão da consciência proletária ao modo de produção regido pelo capital e ao Estado hegemonizado pela burguesia. No contexto de uma inflação alta, o operário, por exemplo, passa a ter o entendimento de que a troca de equivalentes foi subvertida pelo intercâmbio de não equivalentes, pois o poder de compra do seu salario passa a diminuir ao longo do mês. Inocula-se espontaneamente em sua consciência, mesmo que esta permaneça regida pelo senso comum, a sensação de que o sistema econômico deixou de ser justo, igualitário e inevitável. A greve e outras manifestações com o objetivo de aumentar o seu poder de barganha nas negociações salariais passam a ser um imperativo de sobrevivência. Nessas circunstâncias, o assalariado começa a negar sua adesão ao governo de plantão, pois este não mais é percebido como operador de uma comunidade política de iguais, mas como um déspota aliado aos patrões. Em decorrência, os sindicatos florescem e as correntes revolucionárias tendem a ganhar hegemonia no seu interior.
A aparência fetichista necessária das relações capitalistas começa a fragmentar-se por motivos objetivos (o desemprego causa um efeito análogo à inflação, pois revela que a mercadoria do assalariado, sua força de trabalho, está sendo desvalorizada ao ponto de não ser levada em conta), pelas contradições do metabolismo da economia mercantil, independentes de um plano coletivo e da atuação das instituições com funções ideológicas. O abandono, por parte do trabalhador, do entendimento de que existiria uma troca de equivalentes sob o capitalismo é a antessala da percepção, capaz de ser alcançada pela consciência proletária mesmo sem que supere a estrutura do senso comum, de que as mercadorias não se autovalorizam (a desestabilização dos preços gera espontaneamente a ideia de que o valor econômico é um construto social, uma “artificialidade” diante do trabalho concreto e do valor de uso correspondente) e de que, portanto, é a classe trabalhadora a produtora do valor, do valor de troca e do valor de uso e, em decorrência, da própria história.
Segundo o DIEESE, o Índice do Custo de Vida (ICV) no Brasil aumentou 2.576, 33 % em 1993. Em 1998, o mesmo índice registrou uma elevação de apenas 0,49%. Em 2002, ano da primeira vitória de Luís Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais, o índice foi para 12,13%, e recuou para 2,56% em 2006. Em 2012, o ICV registrou um aumento de 6,40%. Em muitas categorias do setor privado ocorreram pequenos ganhos (entre 2% a 4%) acima da inflação. Evidentemente, isso não significa que a cumulação de capital deixou de ampliar-se, pois os capitalistas continuaram a absorver quase todos os ganhos de produtividade e a recomposição do salário médio não foi suficiente para superar o patamar histórico que o deixa abaixo das reais necessidades de reprodução dos trabalhadores. O consórcio entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa continua vigente e estrutural.
A partir desses dados e das referências conceituais anteriores, é plausível sustentar que a estabilização monetária inaugurada pelo Plano Real tem sido o elemento mais importante a determinar o presente apassivamento das massas trabalhadoras brasileiras.
Não houve o surgimento de uma nova “classe média” no país, mas a ampliação do mercado interno por meio da estabilização dos rendimentos de todos os setores da classe trabalhadora. O arriscado (para o sistema) caminho de aumentar a exploração dos assalariados por meio da inflação (mais um subproduto da particular irracionalidade do capitalismo colonial brasileiro do que uma estratégia consciente) foi substituído pela ampliação da mais-valia relativa e das escalas produtivas, câmbio estratégico somente possível devido às especificidades da divisão mundial do trabalho nas últimas décadas, período no qual os países periféricos vêm recebendo montanhas de capital.
Essas mudanças econômicas melhoraram muito as condições de legitimação do sistema capitalista e dos governos. A explicação do fenômeno não se encontra essencialmente no fato de que os assalariados passaram a ter mais poder de compra (o estável valor real do salário foi “multiplicado” pelo sistema de crédito ao consumidor) e, em decorrência, creditaram essa melhoria aos governos de plantão. A essência da explicação encontra-se no fato de que a estabilidade dos preços reforçou a aparência fetichista das relações capitalistas de produção e, em consequência, aumentou radicalmente a adesão dos trabalhadores aos valores morais e políticos do capitalismo e do Estado liberal.
O Programa Bolsa Família, o presumido grande poder de comunicação do Lula ou a propaganda da mídia não teriam capacidade de reforçar tanto a adesão dos trabalhadores à Ordem sem a referida configuração particular da economia, nucleada pela estabilidade da moeda. Os programas sociais de transferência de renda não chegam à vanguarda dos trabalhadores, mas este segmento encontra-se tão apassivado quanto a população localizada abaixo da linha da pobreza. A capacidade de comunicação e o carisma de Dilma Rousseff são pífios, no entanto, seus índices de aprovação são tão altos quanto os atingidos por Lula. Existem apenas dois fatos superestruturais importantes na configuração do presente apassivamento das massas: a adesão do PT a um programa neoliberal e o apoio do outrora chamado “novo sindicalismo”, simbolizado pela CUT, e de muitos movimentos sociais aos governos petistas. Esses deslocamentos para a direita impuseram a necessidade de uma custosa reorganização do sindicalismo revolucionário e um demorado trabalho pela ampliação da influência dos partidos de esquerda que permaneceram fiéis à causa dos trabalhadores. Evidentemente, a ausência de organizações sindicais e políticas revolucionárias com enraizamento profundo e capilaridade nacional contribui para o apassivamento do proletariado, já que os trabalhadores permanecem sem acesso a discursos alternativos em relação à fala da Ordem e ficam privados de uma prática sindical e política anticapitalista.
A superação do apassivamento pressupõe uma crise econômica, mas também a realização de um esforço minucioso, cotidiano e silencioso de reconstrução do movimento sindical, bem como a consolidação dos partidos revolucionários e a ampliação de sua influência. É preciso um forte empenho na organização dos trabalhadores pela base, na elaboração de programas, na transformação das injustiças em palavras de ordem, na defesa das políticas públicas e, além disso, é necessário o exercício da paciência enquanto a toupeira da história faz a sua parte.
Por:GOLBERY LESSA
Fonte:http://adrianonascimento.webnode.com.br
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