Salve a governabilidade!
Há
anos,
nem me lembro
mais quantos, os
principais colunistas e
repórteres de
política do Brasil,
sobretudo os de Brasília, reputam ao
senador José Sarney uma
aura divinal de
grande articulador
político, uma
espécie de
gênio da
raça dotado do
dom da
ponderação, da mediação e do
diálogo. Na
selva de
preservação de
fontes que é o
Congresso Nacional, estabeleceu-se
entre os
repórteres ali lotados
que gente como Sarney,
ou como Antonio Carlos Magalhães,
em tempos não tão idos,
não precisa ser olhada pelas raízes,
mas apenas pelas
folhagens.
Esse expediente é, no
fim das
contas, a
razão desse descolamento
absurdo do
jornalismo brasiliense da
realidade política brasileira e,
ato contínuo, da
desenvoltura criminosa com que deputados e
senadores passeiam
por certos setores da
mídia.
Olhassem Sarney
como ele é,
um coronel arcaico,
chefe de
um clã político que há
quatro décadas domina a
ferro e
fogo o Maranhão,
estado mais miserável da
nação, os
jornalistas brasileiros poderiam
inaugurar um novo tipo de
cobertura política no Brasil. Começariam
por ignorar as
mentiras do
senador (
maranhense,
mas eleito
pelo Amapá), o
que reduziria a
exposição de Sarney
em mais de 90% no
noticiário nacional. No Maranhão, a
família Sarney montou
um feudo de
cores patéticas
por onde desfilam
parentes e
aliados assentados
em cargos públicos,
cada qual com uma
cópia da
chave do
tesouro estadual, ao
qual recorrem
com constância e
avidez. O
aparato de
segurança é utilizado
para perseguir a
população pobre e,
não raras
vezes,
para trucidar opositores. A
influência política de Sarney foi
forte o
bastante para garantir a
derrubada do
governador Jackson
Lago, no
início do
ano,
para que a
filha, Roseana, fosse reentronizada no
cargo que,
por direito, imaginam os Sarney, cabem a
eles, os
donatários do
lugar.
José Sarney é uma
vergonha para o Brasil
desde sempre.
Desde antes da
Nova República,
quando era um político subordinado à
ditadura militar e
um representante
mais do
que típico da
elite brasileira eleita
pelos generais para arruinar o
projeto de
nação -
rico e
popular -
que se anunciava
nos anos 1960.
Conservador, patrimonialista e
cheio dessa
falsa erudição tão típica aos
escritores de
quinta, José Sarney foi o
último pesadelo coletivo a
nós impingido
pela ditadura, a
mesma que ele, Sarney,
vergonhosamente abandonou e renegou
quando dela
não podia
mais se
locupletar.
Talvez essa
peculiaridade, a de adesista
profissional, seja o
que de
mais temerário e
repulsivo o
senador José Sarney carregue na
trouxa política que carrega Brasil
afora,
desde que um mau destino o colocou na
Presidência da
República,
em março de 1985,
após a
morte de Tancredo
Neves.
Ainda assim, ao
longo desses
tantos anos,
repórteres e
colunistas brasileiros insistiram na
imagem brasiliense do Sarney
cordial,
erudito e
mestre em articulação política. É
preciso percorrer o
interior do Maranhão,
como já fiz
em algumas
oportunidades,
para estabelecer a
dimensão exata dessa
visão perversa e
inaceitável do
jornalismo político nacional,
alegremente autorizado
por uma
cobertura movida
pelos interesses de uns e
pelo puxa-saquismo de
outros. Ao
olhar para Sarney, os
repórteres do
Congresso Nacional deveriam
visualizar as
casas imundas de
taipa e
palha do
sertão maranhense, as
pústulas dos
olhos das
crianças subnutridas daquele
estado, várias
gerações marcadas
pela verminose crônica e
pela subnutrição idem.
Aí, saberiam o
que perguntar ao
senador, ao
invés de elogiar-lhe e,
desgraçadamente, conceder-lhe
salvo conduto para,
apesar de
ser o
desastre que sempre foi,
voltar à
presidência do
Senado Federal.
Tem
razão o
presidente Luiz Inácio
Lula da Silva ao
afirmar,
embora pela lógica do
absurdo,
que José Sarney
não pode
ser julgado
como um homem comum. É
verdade. O
homem comum,
esse que acorda cedo para trabalhar,
que parte da
perspectiva diária da
labuta incerta
pelo alimento e
pelo sucesso,
esse homem,
que perde
horas no
transporte coletivo e nas muitas
filas da
vida para, no
fim do
mês, decidir-se
pelo descanso ou pelas
contas,
esse homem comum é, basicamente,
honesto e
solidário. Sarney é o
homem incomum. No
futuro,
Lula não será julgado
pela História somente por essa
declaração infeliz e
injusta,
mas por ter se submetido
tão confortavelmente às
chantagens políticas de José Sarney, a
ponto de achá-lo
intocável e
especial.
Em nome da governabilidade,
esse conceito em forma de
gosma fisiológica e
imoral da
qual se
alimenta a
escória da
política brasileira,
Lula,
como seus antecessores, achou a
justificativa prática para se
aliar a
gente como os Sarney, os Magalhães e os Jucá.
Pelo apoio de José Sarney, o
presidente entregou à
própria sorte as
mais de
seis milhões de
almas do Maranhão, às
quais,
desde que assumiu a
Presidência,
em janeiro de 2003,
só foi
visitar esse ano,
quando das
enchentes de
outono,
mesmo assim,
depois que Jackson
Lago foi apeado do
poder. Teria
feito melhor e engrandecido a
própria biografia se tivesse descido
em São Luís
para visitar o
juiz Jorge
Moreno. Ex-titular da
comarca de
Santa Quitéria, no
sertão maranhense,
Moreno ficou
conhecido mundialmente
por ter conseguido
erradicar daquele
município e de
regiões próximas o sub-registro
civil crônico, uma das
máculas das
seguidas administrações da
família Sarney no
estado. Ao
conceder certidão de nascimento e
carteira de
identidade para 100% daquela
população, o
juiz contaminou de
cidadania uma
massa de
gente tratada,
até então,
como gado sarneyzista.
Por conta disso, Jorge
Moreno foi homenageado pelas
Nações Unidas e, no Brasil, viu o
nome de
Santa Quitéria
virar nome de
categoria do
Prêmio Direitos Humanos, concedido
anualmente pela Secretaria Especial de
Direitos Humanos da
Presidência da
República a,
justamente,
aqueles que lutam
contra o sub-registro
civil no
País.
Em seguida, Jorge
Moreno denunciou o
uso eleitoral das
verbas federais do
Programa Luz Para Todos pelos aliados de Sarney,
sob o
comando,
então, do
ministro das
Minas e
Energia Silas Rondeau
este um empregado da
família colocado
como ministro-títere
dentro do
governo Lula,
mas de
lá defenestrado
sob a
acusação, da
Polícia Federal, de
comandar uma
quadrilha especializada
em fraudar licitações públicas. Foi o
bastante para o
magistrado nunca mais poder respirar no Maranhão.
Em 2006, o
Tribunal de
Justiça do Maranhão, infestado de
aliados e
parentes dos Sarney, afastou
Moreno das
funções de
juiz de
Santa Quitéria,
sob a
acusação de
que ele, ao
denunciar as
falcatruas do
clã, estava desenvolvendo uma
ação político-partidária.
Em abril passado,
ele foi aposentado, compulsoriamente, aos 42
anos de
idade. Uma dos
algozes do
juiz, a corregedora (?) do TRE
maranhense, é a desembargadora Nelma Sarney,
casada com Ronaldo Sarney,
irmão de José Sarney.
Há
poucos dias, vi a
cara do
senador José Sarney na
tribuna do
Senado.
Trêmulo,
pálido e
murcho, tentava
desmentir o
indesmentível.
Pego com a
boca na
botija, o
tribuno brilhante,
erudito e
ponderado, a
raposa velha indispensável aos
planos de governabilidade do Brasil virou, de
um dia para a
noite, o
mascate dos
atos secretos do
Senado. Ao
terminar de
falar, havia se reduzido a uma
massa subnutrida de
dignidade,
famélica,
anêmica pela falta da
proteína da
verdade.
Era um personagem bizarro enfiado, a
socos de
pilão,
em um jaquetão coberto de
goma.
Na
mesma hora, pensei no
povo do Maranhão.
Leandro Fortes é jornalista e o artigo foi publicado em seu blog “Brasília, eu vi”
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