domingo, 26 de agosto de 2012

Obras de Belo Monte são suspensas

O Movimento dos Atingidos por Barragens defende que a prioridade do Estado seja os direitos dos povos, e não a construção da barragem

A Norte Energia, empresa privada que reúne todas as donas da barragem de Belo Monte, foi obrigada a suspender, nesta quinta-feira (23), o andamento das obras da barragem. A suspensão ocorre dez dias após a Justiça determinar a imediata paralisação, sob pena de multa de R$ 500 mil diários.
A 5ª Turma do Tribunal Federal Regional da 1ª Região determinou a suspensão por constatar ilegalidade no processo de autorização da obra, que deve respeitar a Constituição Brasileira e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a obrigatoriedade da escuta prévia aos povos indígenas.
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), junto a muitas outras organizações e entidades também contrárias a Belo Monte, comemora e apoia a decisão judicial. Em nota, a Norte Energia afirma que “está tomando todas as medidas cabíveis para reverter a decisão judicial, com o objetivo de que as obras suspensas voltem à normalidade com o tempo menor possível”. O MAB alerta a Justiça, as autoridades e a sociedade em geral para a gravidade dessa declaração da empresa, pois mostra sua preocupação unicamente com a formalidade para que a obra siga avançando.

Para o MAB, os erros e violações de direitos humanos cometidos em Belo Monte, desde o início do licenciamento até hoje, um ano após o começo das obras, não se corrigem às pressas como deseja a Norte Energia, “num menor tempo possível”. O Movimento entende que a escuta aos povos indígenas deve possibilitar que eles sejam sujeitos de suas decisões e, não meros expectadores, como vem ocorrendo.
Além da questão indígena, de vital importância naquela região, o MAB defende a escuta aos atingidos em geral: ribeirinhos, camponeses, moradores das cidades, pescadores, e todos aqueles que tem seu modo de vida afetado pela construção da barragem. Certamente serão mais de 40.000 pessoas atingidas pela usina. As audiências públicas de Belo Monte foram mera formalidade e propaganda da obra e não um diálogo com a população. Em menos de um ano de construção, os vícios legais no licenciamento de Belo Monte já provocaram enormes prejuízos, alguns irreparáveis, para o ambiente e para o povo.  Para citar alguns exemplos:
- Mais de 100 famílias ainda permanecem em área de risco na região da construção dos canais e sem nenhum tipo de indenização. Nas palavras de um morador: “quando dá explosão, cai faísca de pedra em nossa casa”.
- Mais de duas mil pessoas moram ou dependem do trecho de vazão reduzida, entre os projetos do muro e da casa de força. Juntamente com essa população, o Movimento reivindicou reunião com o IBAMA no mês de julho, mas ele disse não.
- Famílias residentes em áreas empobrecidas de Altamira, das quais apenas 5.200 são reconhecidas pela empresa, até hoje não sabem o que vai ser de suas vidas.
- Em Assurini, área rural onde moram aproximadamente 30 mil pessoas, as famílias não sabem sequer se são ou não atingidas pela barragem, pois há lugares em que as medições do nível da água do projeto de barragem ainda não foram feitas.
Lamentavelmente, a construção de barragens no Brasil segue um padrão nacional de violação dos direitos humanos, como um relatório do próprio governo comprovou em 2010 e até agora, pouco ou nada foi feito. Nas hidrelétricas do rio Madeiro, em Rondônia, neste exato momento mais de 600 pessoas estão alojadas em hotéis, sem direito à moradia permanente, porque foram expulsas pela usina de Santo Antonio.
Enquanto o BNDES está para aprovar a liberação de R$ 20 bilhões somente para Belo Monte, milhares de atingidos estão condenados a miséria e a violações constantes. Nada disso tem sido levado em consideração pelos responsáveis. Apenas os interesses das empresas presentes no consórcio Norte Energia: o grupo Eletrobras, as empresas Neoenergia, Cemig, Light, Vale e Sinobras, o grupo J Malucelli, os fundos de pensão Petros (Petrobras), Funcef e Cevix 3.
O MAB entende que os direitos dos povos, inclusive o direito de dizer NÃO, deveriam vir antes do início da construção de uma obra tão complexa.  Por isso, defende que a questão da retomada ou não das obras de Belo Monte seja tratada somente após as empresas cumprirem todas as obrigações previstas e repararem os imensos prejuízos já causados ao Xingu, ao povo e à Amazônia.
Organizações do campo repudiam construção de Belo Monte
Todos movimentos e entidades que atuam no campo brasileiro, reunindo mais de sete mil pessoas, participaram do Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Florestas, entre os dias 20 e 22 de agosto, no Parque da Cidade, em Brasília.
Durante o encontro, as organizações construíram, de maneira unificada, uma posição contrária à construção de Belo Monte. Leia, a seguir, a moção de repúdio:
Moção pública sobre a hidrelétrica de Belo Monte
Unidos, os sete mil trabalhadores e trabalhadoras e povos do campo, das águas e das florestas, representando as 20 organizações reunidas no “Encontro Nacional Unitário” em Brasília, nos dias 20, 21 e 22 de agosto de 2012, apoiam e se somam à luta dos atingidos por barragens contra as violações de seus direitos e a construção da hidrelétrica de Belo Monte.
A usina de Belo Monte vai expulsar mais de 40 mil pessoas. Os mais de R$ 25 bilhões que serão investidos serão pagos pelo povo brasileiro através do BNDES e das contas de energia elétrica, para beneficiar as grandes corporações de energia, de máquinas e equipamentos e construtoras, como Iberdrola, Vale, Alstom, Siemens, Camargo Correa, Andrade Gutierez, Odebrecht, entre outras. Enquanto isso, as Estatais estão capturadas, cumprindo um papel subalterno para atender aos interesses privados.
Portanto, a usina de Belo Monte vai em direção contrária à soberania energética e aos interesses da classe trabalhadora. Nós, povos do campo, das águas e das florestas somos parte desta luta contra Belo Monte.
Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal (ABEEF)
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
Coordenação Nacional do Quilombolas (CONAQ)
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG
Comissão Pastoral da Pesca (CPP)
Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB)
Central Única dos Trabalhadores (CUT)
Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB)
Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETRAF)
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
Movimento Camponês Popular (MCP)
Movimento das Mulheres Camponesas (MMC)
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST
Pastoral da Juventude Rural (PJR)
Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (SINPAF)
CARITAS
VIA CAMPESINA

domingo, 19 de agosto de 2012

Mostrar para esconder - o papel da mídia na construção do conformismo. Por: Emilio Gennari

 Apresentação.
Por que o povo não reage? Por que não enxerga o que passa diariamente sob seus olhos? Por que a exploração não aumenta sua indignação e tudo parece tão rotineiro a ponto de ser considerado normal? Por que, numa época em que é facilitado o acesso à informação, as pessoas revelam-se incapazes de entender o que está ocorrendo? Que elementos conseguem levar os marginalizados a condenarem os que lutam em seu meio? Perguntas como estas nascem espontaneamente diante da crescente falta de envolvimento dos que, por sua situação, deveriam ser os primeiros a se engajarem nos movimentos que buscam derrotar a exploração.
Seria ótimo se o estudo que segue pudesse apresentar um diagnóstico completo e os antídotos às investidas da elite que cimentam o conformismo e o consenso em volta de suas idéias e valores, mas nossas reflexões são mais modestas. Elas se focam nos aspectos que anestesiam a indignação e desativam a capacidade de pensar, esta atividade subversiva que pode transformar pacatos cidadãos em pessoas que questionam a ordem e se recusam a servi-la.
Não são poucos os autores que se debruçaram sobre isso e ofereceram pistas de reflexão, respostas inquietantes e, obviamente, novas perguntas. A título de exemplo, queremos lembrar aqui de um artigo de George Orwell, publicado no jornal A Tribuna, em janeiro de 1946.
Numa época em que o capitalismo europeu ensaiava os primeiros passos para se reerguer das ruínas da segunda guerra mundial em luta aberta contra a influência do socialismo na Europa Ocidental, Orwell percebe que o rádio tem um novo papel na sociedade. Agora, escreve ele, em muitíssimos lares ingleses, o rádio está literalmente sempre ligado, ainda que seja manipulado de vez em quando para se ter certeza de que só vai transmitir música ligeira. Conheço pessoas que deixam o rádio a tocar durante as refeições e continuam ao mesmo tempo a conversar suficientemente alto para que as vozes e a música se anulem reciprocamente.
Isto obedece a um objetivo bem definido. A música impede que a conversa se torne séria ou sequer coerente, enquanto o barulho das vozes afasta qualquer possibilidade de ouvir atentamente a música e, assim, não dá ensejo a que surja aquela coisa aterradora, o pensamento. Ao subjugar as pessoas na audição das mesmas futilidades, o rádio proporciona as condições para moldá-las com facilidade, o que faz o escritor concluir que muito daquilo a que hoje chamam de prazer é simplesmente um esforço para destruir a consciência. 1
Não sabemos o que Orwell diria diante dos atuais programas televisivos, da internet ou dos milhões de pessoas que, ao saírem de casa, colocam um fone de ouvidos a fim de que suas músicas favoritas as acompanhem, em aberta disputa com os ruídos da cidade. Com certeza, reafirmaria o quanto isso impede a conversa, o diálogo, o contato com os demais, a capacidade de ouvir a cidade e de prestar atenção à vida que encerra, com suas contradições e mudanças em andamento. Talvez, iria menear a cabeça diante das pesquisas que comprovam quanto esses autômatos humanos ligados a um fone de ouvidos percorrem ruas e avenidas, literalmente, sem ver o que está a seu lado e, portanto, com uma redução drástica de sua capacidade de perceber o ambiente em que se movimentam.
Mas, provavelmente, ele também ficaria intrigado com uma questão: como é possível que as imagens de um acontecimento sejam capazes de esconder a realidade que o produziu? Em outras palavras, quais são os mecanismos que permitem ao indivíduo se considerar uma pessoa informada ao mesmo tempo em que é desativada sua capacidade de reflexão?
Reconhecemos humildemente que não temos o talento de George Orwell para ajudar na empreitada que aqui se inicia. Por isso, não dispensamos a intervenção da coruja Nádia para fazer com que nossas reflexões se tornem acessíveis à classe trabalhadora e, sobretudo, aos homens e mulheres que, em seu meio, se mantêm firmes na luta para fazer com que haja tudo para todos.
Brasil, agosto de 2012.
1 As citações acima foram extraídas do livro de João Bernardo, Democracia Totalitária, pg. 66.




Introdução.
Noite de garoa. Um vento frio faz a umidade penetrar no que encontra pelo caminho. Nas calçadas, os pedestres apressam o passo cansado de quem volta do trabalho. Uma após a outra, as casas recebem moradores cujo corpo anseia por um abrigo seguro. Um bom banho, uma janta quentinha e um pouco de televisão são programa obrigatório para esquecer as amarguras do dia, rir da própria situação e torcer para que o amanhã traga o que o presente teima em negar.
No aconchego do sofá, um homem corpulento não tira os olhos da televisão. A sequência ininterrupta de imagens, sons e comentários captura sua atenção e lhe proporciona um visível sentimento de satisfação. Da economia ao futebol, tudo é recebido sem reservas, como se as mensagens captadas pelos sentidos fossem suficientes para compreender acontecimentos próximos e distantes, grávidos de consequências ou banais.
A sensação de estar informado cresce com o passar dos minutos e, com ela, a certeza de que, no dia seguinte, será possível fazer valer a própria razão nas conversas com os conhecidos. O simples fato de que “passou na TV”, bastará para comprovar que se trata de algo que “só pode ser assim mesmo”.
Silenciosa, uma pequena coruja deixa a cozinha e pousa suave na almofada ao lado do homem que, entre a estranheza e a provocação, a recebe com um “Que milagre, Nádia! Você veio assistir TV hoje?!?”, capaz de infundir constrangimento em qualquer mortal.
Sem se deixar intimidar, a ave pisca os olhos e acompanha atentamente a reportagem em andamento. O silêncio entre os dois seres só é rompido pela fala dos jornalistas e pelos últimos ruídos que antecedem o mergulhar da cidade no sono da noite.
Na hora dos comerciais, o homem expressa com a cabeça sua aprovação aos comentários enquanto os lábios soltam satisfeitos um “É isso mesmo!” que confirma pomposamente o que havia sido antecipado pelos gestos.
- “Pois eu nunca vi tanta bobagem em pouco tempo!”, afirma decidida Nádia ao fitar o seu ouvinte.
- “Então, fique sabendo que eles estão certos sim. Eu já ouvi a mesma coisa no rádio e em outro canal de TV, o que faz com que só possa ser verdade!”.
- “O que os bilhões de neurônio de sua cabeça humana não o ajudam a entender – responde a coruja ao apontar a asa para a testa do seu interlocutor – é que uma tolice repetida por um milhão de pessoas, estampada em todos os jornais e multiplicada sem fim pelas ondas do rádio e da televisão continua sendo uma tolice. Ainda que muitos se convençam estar diante de algo profundo e valioso pelo fato de que há mais gente reafirmando a importância da tolice, não significa que esta ajude a iluminar a realidade e menos ainda, a desvendar a teia de relações que cada acontecimento encerra”.
- “Mas, Nádia, você mesma viu as imagens que meus olhos viram. Como pode negar algo tão evidente?”, insinua o homem com vitorioso ar de superioridade.
- “O problema, querido secretário, é que para você basta ver para crer e, sobretudo, para parar de pensar. O que passa na tela da TV reflete apenas momentos da realidade cuidadosamente escolhidos entre muitos outros. Por isso, o que é mostrado pode ser justamente o que esconde a compreensão do real e impede que enxergue além das aparências.
As imagens que se impõem como verdade indiscutível aos seus olhos podem não passar de jogos de luzes que cegam sua reflexão na exata medida em que você tem a sensação de acompanhar e entender o que está ocorrendo”.
- “Confesso que agora fiquei confuso...”, admite o humano ao coçar a cabeça.
- “Não é fácil, mas posso explicar”, convida a ave ao voar para a mesa e sinalizar com a cabeça para os papéis de rascunho desordenadamente amontoados ao lado do telefone.
- “Só me faltava essa: ser convencido por um bicho de que estou cego justo quando vejo as coisas acontecerem”, resmunga o secretário ao deixar vagarosamente o sofá.
A coruja sorri, limpa a garganta e, sem titubear, ordena:
- “Escreva! Capítulo primeiro...”

1. Mídia: imparcialidade e anestesia do pensamento

“Se você é neutro em situações de injustiça,
você escolheu o lado do opressor”.
Desmond Tutu.

Com o queixo apoiado na ponta da asa esquerda, Nádia permanece pensativa. Os leves movimentos das plumas que cobrem o seu rosto revelam o esforço de ordenar os elementos que permitirão compreender como a mídia consegue o que, aparentemente, não passa de um paradoxo: mostrar para esconder. Finalmente... Um rápido piscar de olhos... Um longo suspiro... E, com uma expressão de satisfação que ilumina o rosto, diz:
- “Boa parte das pessoas que criticam os meios de comunicação está convencida de que, por trás de cada matéria, reportagem, programa de rádio ou televisão há especialistas que passam horas a fio tramando como enganar o povo com planos maquiavélicos que permitirão à elite fazer a cabeça Das pessoas. Na verdade, ainda que a mídia não dispense o trabalho de profissionais gabaritados nas mais diversas áreas do conhecimento, os mecanismos que proporcionam sua penetração em corações e mentes continuam sendo razoavelmente simples.
A peça-chave desta façanha é conseguir ganhar a confiança do público ao qual se destinam as mensagens de um determinado meio de comunicação. O ser humano, de fato, só aprende daqueles aos quais dá o direito de lhe ensinar e, justamente por isso, a confiança no interlocutor é o primeiro passo para abrir o diálogo com ouvintes, leitores e telespectadores. Mas a confiabilidade da mídia não se baseia apenas em jornalistas, apresentadores ou atores competentes e convincentes. A capacidade de provocar reações que construam um vínculo de confiança com o público depende fundamentalmente do saber lidar com o senso comum, ou seja, de entrar em sintonia com esse conjunto de explicações acerca da vida, da história e do cotidiano que resulta da percepção imediata da realidade conforme esta surge aos olhos dos diferentes setores sociais.
É a partir das aparências, e não do pensamento crítico, que as pessoas vão forjando sua maneira de enxergar o dia-a-dia de forma contraditória e, não poucas vezes, bizarra. Por parecerem verdades que nascem e se aplicam espontaneamente à realidade, as idéias que moldam e fazem avançar o senso comum são acessíveis à consciência da maioria que se contenta com seu conteúdo pelo simples fato de que este é facilmente constatado pelos sentidos.
Por este caminho, cada agrupamento humano forja sua maneira de ver e interpretar o mundo, o tempo, o espaço e as relações sociais do seu meio sem perceber o emaranhado de interesses e forças que dá origem aos acontecimentos e move a história pela bússola do lucro. Com base neste mecanismo elementar, a elite consolida e aprimora tanto seu poder real, alicerçado nas relações de propriedade e acumulação, como simbólico, a maneira pela qual deseja que as pessoas leiam o dia-a-dia da sociedade e passem a orientar o seu cotidiano. Assim, seus valores, idéias, comportamentos e formas de interpretar a vida são universalizados em atitudes e pensamentos simples que acabam sendo assimilados e reproduzidos pela própria população.
É o caso, por exemplo, dos provérbios que, ao serem vistos por gerações diferentes como algo que dá sentido à vida, emana respeito e ajuda as pessoas a se conformarem com a felicidade possível, ganharam status de sabedoria popular ao mesmo tempo em que ocultam sua origem nos interesses da elite. Não é verdade que, sobretudo em momentos de crise econômica, ouvimos repetir à exaustão que é melhor pingar do que secar? De que é melhor ter um pássaro na mão do que dois voando? Que o pouco com Deus é muito e o muito sem Deus é nada? Que Deus ajuda quem cedo madruga, que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco e assim por diante? Quantas vezes não acreditamos se tratar de algo que nasceu no meio do povo exatamente por passar de pai pra filho ou por vir como conselho de colegas, amigos, familiares, chefes, ou simples conhecidos? Nunca paramos pra pensar que a grande maioria deles convida à resignação, a abrir mão de direitos, a se contentar com pouco na vaga esperança de que amanhã será melhor; enfim, a assumir atitudes que negam a luta e proporcionam a paz social, este elemento tão importante para que a exploração possa ser aprofundada sem reações significativas de suas vítimas. É esta falsa sabedoria que encontramos diluída ou disfarçada no conteúdo de entrevistas e reportagens como postura sábia e oportuna diante das dificuldades do momento ou como convite a contornar com o velho, paciente e inesgotável jeitinho o que deveria ser denunciado e rejeitado. Reafirmada pela mídia em várias formas e contextos, raramente conseguimos perceber que a trilha apontada pela quase totalidade dos provérbios é a melhor e mais eficiente de convencer a não enfrentar coletivamente as injustiças e se conformar com a resignação de quem se depara com um destino contra o qual não adianta teimar, mas só esperar que o tempo se encarregue de levar embora.
A elite dialoga com o senso comum com a simplicidade e o candor de um conselho materno, oferecido com a melhor das intenções. Assim ela vai moldando aos poucos a compreensão do mundo que deseja ver consolidada na população sem provocar rejeições significativas e sem levantar suspeitas. Ao reafirmar e fazer avançar na classe trabalhadora suas idéias, valores, comportamentos e critérios de interpretação da vida em sociedade, a minoria que tem tudo constrói um vínculo de confiança na medida em que não contradiz e dá continuidade ao que parece natural e justo aos olhos do povo simples, devidamente adestrado nas diretrizes das gerações anteriores. Quando a realidade exige mudanças, a elite, então, direciona, imperceptível e constantemente, uma determinada forma de ler os fenômenos sociais para que esta seja percebida e assimilada como algo necessário para entender o cotidiano e preparar o futuro.
O segredo, se é que algo tão evidente pode ser chamado com este nome, está em fazer com que, através de seus tradutores na mídia, a linguagem da minoria se sintonize e ecoe entre as pessoas cuja forma de compreender a realidade se vê parcial ou totalmente espelhada nas mensagens recebidas. Para concretizar esta identidade dinâmica não é necessário ultrapassar o nível das aparências que serve de base à elaboração e consolidação do senso comum. Basta incorporar parte das suas idéias e fazê-las avançar lentamente com um comentário discreto, uma legenda que orienta a leitura de uma foto ou uma fala que leve a interpretar as imagens no sentido desejado pelo meio de comunicação.
Desta forma, o homem-massa não se sente menosprezado e criticado na simplicidade de sua visão de mundo, mas é inicialmente valorizado e confirmado no que seus próprios sentidos já constataram. Isso estimula sua confiança, sua admiração e sua entrega acrítica às mensagens recebidas. Como um peixe se projeta em direção à minhoca sem ver o anzol que a sustenta, o senso comum dificilmente distingue o que é comida do que virou isca para que engula o que não quer e seja levado onde, em suas convicções atuais, não desejaria ir.
Ganha este preciosa sensação do público, e sem forçar a interpretação das aparências além do que sugere a realidade visível, não é difícil comprovar a suposta imparcialidade, objetividade e neutralidade diante dos acontecimentos. As aparências sempre dão razão às aparências, por isso não há nada melhor do que privilegiar a descrição dos fatos com base em aspectos que suscitam o consenso e o apoio da maioria. Para que um meio de comunicação se constitua como portador da verdade, então, basta que ele tenha uma atuação baseada na busca da sintonia com o senso comum e seja suficientemente convincente para que o público ao qual se dirige possa ver em suas mensagens a melhor perspectiva na apresentação dos acontecimentos, um serviço que ajuda as pessoas a se manterem atualizadas, a se divertirem, emocionarem e compadecerem no âmbito do que é conhecido por opinião pública.
Como as relações que moldam o cotidiano não são visíveis, mas demandam uma reflexão crítica demorada, raramente o indivíduo percebe estar diante de um anzol, ou seja, de uma interpretação da realidade que interessa aos grupos no poder. A sintonia com o senso comum do qual é portador, e que foi historicamente formatada pelas próprias elites, fixa em sua memória idéias e imagens capazes de produzir a sensação de estar diante da verdade, de que a mídia não mente, ainda que algum apresentador ou comentarista aumente um tantinho as coisas.
Nesta altura, já podemos vislumbrar que, numa sociedade capitalista como a nossa, o uso das aparências supostamente incontestáveis para comprovar a imparcialidade de um meio de comunicação equivale a assumir disfarçadamente o lado do opressor e não a oferecer elementos para que o indivíduo chegue a uma compreensão crítica dos acontecimentos. O que se apresenta como a verdade oculta o fato de que se trata de uma verdade, a do proprietário da mídia e questão. Como membro da elite formadora de opinião, sua ação destina-se a disfarçar o anzol ocultando os vínculos de classe sob o manto das expressões de senso comum cuja sintonia alimenta a confiança e a receptividade. E, caso seus intermediários com o público (jornalistas, atores, apresentadores, conferencistas, entrevistados, etc.) não dêem conta do recado, basta censurá-los ou abrir espaços de liberdade vigiada para que a expressão limitada das discordâncias seja um meio para provar a seriedade da mídia, sem que suas mensagens centrais sofram desgastes.
Ninguém melhor do que um jornalista como Cláudio Abramo, responsável por mudanças de estilo, formatação e conteúdo dos dois maiores jornais paulistas (O Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo, da qual foi chefe de redação) para escancarar esta realidade e colocar sob suspeita a própria idéia de liberdade de imprensa, graças à qual seria possível fazer um jornalismo sério e sem amarras. Ele que sempre fez questão de frisar que compreendia e trabalhava de acordo com a natureza do capitalismo, escreve: às vezes me perguntam se sou censurado na Folha. Em minha coluna não sou, mas no resto fui censurado ultimamente, apesar de ter dirigido o jornal durante anos. Tudo bem, é uma empresa particular que não quer que certas coisas sejam ditas; é um direito dela. Ao longo de minha experiência de chefe de redação deixei de publicar coisas dos outros. É um direito lícito do dono. Devo ter suprimido milhares de matérias ao longo de trinta anos. Não podia publicar porque era contra a linha editorial do jornal. Daí não existir liberdade de imprensa para o jornalista; ela existe apenas para o dono. 2
A impressão de estarmos diante de algo objetivo, imparcial e parte da opinião pública, ou seja, da expressão do pensamento da maioria, não passa de uma percepção enganadora. Sua origem está justamente na sintonia entre o senso comum das pessoas e os interesses de classe que orientaram sua formação no passado e direcionam a leitura do presente para consolidar o poder real e simbólico dos que têm tudo. Ao esconder os vínculos que fazem da opinião pública nada mais do que uma opinião que se publica e que universaliza entre a população a visão particular de uma classe sobre a sociedade, o senso comum se mantém na direção desejada pelas elites e reafirma para si próprio a impressão de objetividade e confiabilidade na mídia de sua preferência”.
- “O que ainda não consigo entender – admite o secretário perplexo – é a maneira pela qual é possível enganar muita gente sem que ninguém se dê conta...”.
- “Isso é muito fácil!”, continua a coruja sem pestanejar. “Há dois aspectos do senso comum que os meios de comunicação dificilmente esquecem. O primeiro, como vimos acima, é o de se colocar em sintonia com a visão de mundo presente no meio popular como condição para dialogar e dirigir a compreensão das massas na perspectiva desejada pela elite ou pelos setores que são proprietários da mídia em questão. Ninguém deste grupo costuma bater de frente nas idéias do senso comum não só por serem produto de uma ordem que, até o momento, foi capaz de fazer com que a classe trabalhadora raciocinasse, majoritariamente, com a cabeça das minorias no poder, mas, sobretudo, porque uma crítica aberta contra elas seria tão eficiente quanto um murro em ponta de faca. As pessoas se sentiriam menosprezadas e se fechariam em sua compreensão como um ouriço que, para se defender, se recolhe em sua proteção de espinhos.
O segundo aspecto deita raízes no fato de que o consenso da maioria em torno de algo tido como importante por um determinado grupo humano é visto como critério de verdade em relação a uma determinada maneira de enxergar o mundo, a história e os acontecimentos do dia-a-dia. Não por acaso, tanto as pessoas simples, como a mídia, repetem à exaustão que a voz do povo é a voz de Deus. Vimos acima que esse Deus nada mais é a não ser a expressão de uma minoria que é aceita como verdade absoluta, apesar de estar alicerçada em precisos interesses de classe. Portanto, a tal voz do povo, na ampla maioria das situações, não passa da compreensão dos fatos que os grupos no poder conseguiram socializar entre a população e que ainda pode ser trabalhada pelos proprietários dos veículos de comunicação. Isso faz com que duas equações se tornem critério de verdade na formação do consenso social. A primeira sustenta que se todos dizem ou acreditam em alguma coisa, então é verdade. Quem discorda é bem provável que esteja por fora ou, apesar de vir com um papo convincente, queira achar chifre em cabeça de cavalo. A segunda, fruto da era da comunicação visual, aprimora o teor da anterior ao subentender que tudo o que é visível é real, e tudo o que é real é verdadeiro. Ou seja, como não dá pra negar o que todos vêem, logo, trata-se de algo verdadeiro e merecedor de confiança. Por sua vez, o que não é visível não é real ou, quando não aparece, é porque não é importante, logo, não vale a pena se dar ao trabalho de ir atrás dele”.
- “O que você acaba de afirmar só me confunde. Pois, como posso dizer que o que vejo com meus próprios olhos não existe? Como posso desconfiar de que os documentários, as fotografias e reportagens não estão retratando a verdade?”, questiona desconcertado o homem.
A coruja vira o corpo, cruza a ponta das asas atrás das costas e começa a andar de um lado pra outro da mesa com um indisfarçável sorriso no rosto.
- “Eu sabia que você iria me fazer esta observação”, comenta a ave sem interromper seus passos. “O que sua avantajada cabeça humana não consegue entender é que, como já disse, as aparências sempre dão razão às aparências. Portanto, a depender dos aspectos trazidos à luz, as imagens que você vê não passam de um reflexo que esconde a realidade enquanto a mostra”.
- “Daria para ser um pouco mais clara...?”, pedem os lábios ao expressar a incapacidade de compreender o que está sendo dito.
- “Na década de 80, informar não era apenas proporcionar uma descrição precisa de um acontecimento, mas também fornecer um conjunto de parâmetros que permitissem uma compreensão mais contextualizada do que estava sendo relatado. Além de transmitir quem fez o que, com que meios, onde, como e porque algo aconteceu, havia certa preocupação de delinear o contexto, as causas, as consequências ou os possíveis desdobramentos do que estava sendo relatado. Por limitada que fosse, esta preocupação do trabalho jornalístico de trazer à tona o que não era visível no presente da história contribuía positivamente para a possibilidade de o leitor ou ouvinte não se contentar com as aparências e pensar melhor no que era apresentado.
Na medida em que a televisão passa a ocupar o espaço dominante entre os meios de comunicação e a usar amplamente a transmissão em tempo real de qualquer lugar do mundo, informar tornou-se sinônimo de fazer-nos assistir ao acontecimento em curso. A imagem começa a ocupar um lugar privilegiado como critério de verdade. Pouco a pouco, a satisfação dos telespectadores não está em entender os fatos em seu ambiente, com suas causas e consequências, mas sim em ver os acontecimentos conforme as imagens os reproduzem para os seus olhos. O que poderia ser um complemento importante no resgate do passado que produziu o presente e prepara o futuro, torna-se algo sem história, sem passado e, portanto, sem futuro, como se cada fragmento da realidade existisse por si só e fosse obra exclusiva de um acaso incontrolável.
Neste processo, ganha corpo a ilusão de que ver é compreender e a aparência ganha status de evidência inquestionável. A percepção imediata passa a ser vista como verdade absoluta e é assumida como tal. O que parece simples e inegável faz-nos esquecer da advertência dos pensadores renascentistas de sempre desconfiar dos próprios olhos e dos próprios sentidos. E não é pra menos. Quando filmamos, por exemplo, o percurso que o sol traça no céu e o reproduzimos em velocidade acelerada, as imagens mostram que o astro rei gira em torno da terra e não o contrário. Do mesmo modo, a foto panorâmica tirada do prédio mais alto da cidade revelará um horizonte plano, ainda que a terra seja redonda. Isso que no passado foi objeto de grandes disputas, discussões e complexas demonstrações científicas, portanto, de um pensamento crítico destinado a derrubar o caráter enganoso das aparências, hoje é mais que comprovado com fotos da terra tiradas do espaço. Ainda assim, ao permanecermos ancorados ao que vemos diariamente, continuaremos tendo a impressão, confirmada por nossos próprios olhos, de que o sol gira em torno da terra e não o contrário. Ou seja, no nível das aparências, a realidade continua escondida pelas imagens imediatas que pretendem revelá-la”.
- “Será que daria para mostrar isso com um acontecimento da nossa realidade?”, pede o secretário ao apoiar o queixo na palma da mão.
- “É pra já!”, atende prontamente a ave ao apontar as asas para as folhas do relato. “Em 22 de janeiro de 2012, um domingo, o país assistiu à desocupação da área conhecida como Pinheirinho, em São José dos Campos, São Paulo, por cerca de 2000 homens da tropa de choque encarregados de fazer cumprir um mandato de reintegração de posse ordenado pela justiça. As imagens mostravam as chamas produzidas pelas bombas molotov atiradas pelos manifestantes que resistiam, de rosto coberto e pedaços de madeira na mão, à desocupação que levaria à destruição de suas casas. O conflito do qual a polícia participava com cassetetes, balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral, ocupava o centro da notícia. Os comentários, por sua vez, sublinhavam a ação violenta dos manifestantes diante de uma força que buscava fazer cumprir a lei. Imagens e falas transformavam, automaticamente, os cerca de 7000 moradores instalados no local em fora da lei, recém-nascidos e crianças de colo inclusas.
As emissoras de rádio e os jornais faziam eco a que era apresentada como uma evidente manifestação de violência dos moradores, acusados, inclusive, de espalharem atos de vandalismo pela cidade. Se isso não bastasse, o Diário do Comércio e da Indústria de São Paulo, em sua edição do dia 24, fazia pairar sobre os líderes do movimento a suspeita de terem relações com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), um grupo guerrilheiro que age naquele país desde a década de 60 e teria supostamente treinado moradores locais em táticas de guerrilha urbana. Inúmeras as reportagens que sublinhavam as compras de gasolina pelos invasores da área nos postos de combustível da região, induzindo leitores, ouvintes e telespectadores a crer que qualquer carro das famílias do Pinheirinho encostado num posto de combustível não estaria apenas abastecendo o veículo, e sim armando com gasolina a resistência violenta orquestrada na moita.
A intenção clara das reportagens era mostrar a resistência à desocupação como um ato violento, armado, capaz de detonar um clima de guerra na cidade e, obviamente, ponto de partida para espalhar o medo e alimentar a rejeição em relação aos moradores do Pinheirinho. E, como as aparências só confirmam as aparências, homens, mulheres, crianças e anciãos daquela área não passariam de uma massa de seres violentos, agressivos, sem escrúpulos, à margem da lei, que ameaçam as pessoas de bem, não respeitam a propriedade alheia e cujo único propósito seria o de defender o que havia sido apropriado ilegalmente. Os excessos indisfarçáveis da polícia eram minorados pelo clima de guerra mostrado pelas imagens e entendidos como parte de uma resposta legítima do Estado às agressões dos habitantes em resistência. Na semana de tensão que segue à desocupação o diálogo direto com os moradores desalojados se daria apenas na hora da entrega das cestas básicas pela prefeitura num sinal pelo qual o Estado que faz cumprir a lei com rigor é o mesmo que socorre os necessitados.
As vozes discordantes vinham de boletins, documentários e entrevistas produzidas e divulgadas pela internet por movimentos sociais, partidos políticos e sindicatos. Mas, diante das imagens das grandes redes de televisão, quem se atreveria a dar razão a algo tão pequeno e insignificante que tinha a petulância de afirmar outra verdade? Como contrariar imagens tão claras, ao vivo e em cores, dos acontecimentos que demonstravam com sobras de detalhes o fato de que o visível é o que pode ser considerado real e verdadeiro?
O que permitiria o entendimento daquele acontecimento são respostas a perguntas que as aparências vistas como inquestionáveis impedem sejam formuladas: Que mecanismos econômicos, políticos e sociais levaram famílias de trabalhadores a se verem obrigadas a ocupar uma área privada, com os riscos que isso implica, para ter um teto em cima da cabeça? Onde estava o Estado na hora de garantir aos marginalizados pela ordem social vigente o sagrado direito à moradia? Por que a área do Pinheirinho, que pertence ao empresário Naji Nahas, condenado por ações fraudulentas na Bolsa de Valores de São Paulo e que há 40 anos não pagava o IPTU do terreno, não foi desapropriada depois de cinco anos de inadimplência, conforme mandam as normas municipais? Por que, apesar desta dívida passar dos 15 milhões de Reais, esta área nunca havia sido indicada para desapropriação e futura construção de moradias populares destinadas a regularizar a situação dos moradores? Por que os poderes locais se recusaram por anos a fio a viabilizar as soluções pacíficas apresentadas pelos ocupantes? Por que, no passado, a prefeitura chegou a negar cestas básicas e vagas nas creches às famílias do Pinheirinho como forma de forçar sua saída da região?
Nestas condições, que opção restava aos moradores diante do arsenal que procurava um desalojamento seguido da imediata destruição das moradias erguidas com o sacrifício de anos de trabalho? Deveriam agradecer ou entregar flores a quem estava prestes a tirar deles o pouco que chamavam de lar? Ou teriam como última cartada a de fazer ouvir com sua defesa possível o grito de sofrimento por mais uma injustiça que iria se somar às muitas amargadas durante anos? O pressuposto pelo qual a grande maioria da população e da mídia se diz contra qualquer forma de violência não estaria sendo usado justamente para desqualificar a resposta dos moradores? Ao mesmo tempo, esta mesma postura não se prestaria a ocultar e até, disfarçada ou inconscientemente, defender o lado do opressor, cuja violência, tão contínua e cotidiana, não faz notícia e até parece não existir? A aparente confiabilidade e imparcialidade das imagens não estaria sendo usada para colocar as vítimas no banco dos réus e premiar, mais uma vez, seus algozes?
E, ainda, se o direito à moradia é negado até mesmo em situações como esta em que havia normas legais para garanti-lo, então, quais são os direitos que a elite e seus servidores na burocracia do Estado permitem que sejam exercidos de fato? Que direitos, apesar de constarem no papel, são e continuarão sendo criminalizados? Que estranha democracia é esta que tem uma justiça capaz de violar normas legais para que a propriedade de um fraudador inadimplente da elite seja colocada acima do direito a um teto de 1700 famílias?
Diante da desocupação do Pinheirinho, muitas outras perguntas poderiam ser formuladas no sentido de desvendar as causas que estão na origem da desocupação da área e de usar o fato como lição para os demais movimentos sociais. Mas acredito que as que pincelamos acima bastam para desconfiar das aparências supostamente convincentes que desfilam debaixo dos nossos olhos”.
- “Sendo assim, como você explica que milhões de pessoas se deixam iludir pelo que vêem?”, questiona o homem entre a curiosidade e a provocação.
- “Vários processos contribuem para construir uma situação na qual a capacidade de parar para pensar é anestesiada ou, até mesmo, desativada”, responde Nádia com a satisfação de quem acredita estar sendo compreendido. “Retomando brevemente o que foi exposto, a primeira predisposição a anestesiar o pensamento crítico vem da concepção do senso comum pela qual a veracidade da informação está no fato de que vários meios de comunicação repetem as mesmas afirmações e confirmam com imagens e palavras o sentido dos acontecimentos. Ao se deixarem guiar pelas aparências, as pessoas não fazem perguntas a respeito de que critérios objetivos, verificáveis e verificados em suas fontes serviram de base à elaboração do que é apresentado, mas, simplesmente, acreditam estar assistindo à reprodução fiel da realidade. O simples fato de falas e imagens reafirmarem, em vários meios de comunicação, o teor e o conteúdo da mensagem que dirige a leitura do acontecimento em questão, basta para que a notícia seja assimilada como verdadeira.
Entre os casos internacionais mais famosos, encontramos, sem dúvida, a afirmação de que Saddam Hussein dispunha de armas de destruição em massa prontas para serem usadas. Em 2003, o mundo inteiro viu nas mãos do então Secretário de Estado e general da reserva estadunidense, Colin Powell, as fotos de caminhões-baú tiradas por satélites militares em órbita nos céus do Iraque. Apresentadas na Assembléia Geral das Nações Unidas como prova de que o país dispunha de laboratórios móveis para suprir o exército com armas químicas, as imagens destinavam-se a convencer o senso comum de que o ditador iraquiano possuía mesmo armamentos letais proibidos e, portanto, um ataque preventivo contra suas forças militares era necessário e urgente. Após anos de guerra e centenas de milhares de mortos, depois de vasculhar palmo a palmo o território do país, não foi encontrada nenhuma arma de destruição em massa e os tais caminhões, bom, eram apenas caminhões-baú que qualquer satélite militar poderia fotografar do espaço em qualquer país do mundo. Mas, para o senso comum da maioria silenciosa, o fato de a maior parte dos meios de comunicação falar ou mostrar ditas fotografias e de governantes como Tony Blair considerarem as imagens como provas convincentes bastava para que as fotos mostradas por Powell na ONU levantassem a sensação de uma ameaça real e transformassem sua falta de ação em apoio implícito à guerra.
Do consenso das maiorias como critério de verdade não escapam os livros, os cinemas, o teatro e própria música. As listas de best-seller, recorde de bilheteria ou venda de CD confirmam o mercado como instância legítima capaz de apontar com seus indicadores o que vale a pena ser lido, visto e ouvido. Ninguém coloca sob suspeita as razões do sucesso comercial de uma obra, as idéias que procura reafirmar ou resgatar, as atitudes sobre a vida em sociedade que suas mensagens fortalecem e os valores éticos que orientam estas mensagens. É assim que os livros de auto-ajuda ou de busca do sucesso pessoal vendem como pão quente apesar de não resistirem ao menor teste de cientificidade; que filmes e seriados transformam as várias faces da violência urbana em caso de polícia e ajudam a ocultar que são o fruto venenoso da sociedade que construímos; ou, ainda, que músicas e danças transformem em cachorras, popozudas e preparadas as mulheres cuja luta contra a violência doméstica sofreu seguidos recuos depois que nos mais diversos ambientes se começou a cantar e dançar que um tapinha não dói ou a valorizar sua figura como objeto de desejo sexual capaz de se insinuar atrás de um simples aí se eu te pego. Mas, para o senso comum, quando todos fazem, vêem, acreditam e se divertem da mesma maneira, então não há como ser diferente. A crítica aberta ao comportamento coletivo, ou ao que está sendo apreciado pela maioria, passa a ser vista como posição típica de quem procura pêlo em ovo.
Desta forma, idéias e interpretações do cotidiano, supostamente inócuas, ganham consistência, moldam e autorizam comportamentos, levam a entendimentos que nos distanciam da realidade amarga que se esconde nas aparências e, obviamente, criam obstáculos à reflexão crítica. Na medida em que a mensagem veiculada e reafirmada pelos meios se comunicação é recebida como merecedora de confiança, ela passa a ser incorporada ao senso comum e reproduzida em falas e comportamentos de pessoas simples que acabam naturalizando o que, por sua própria situação, deveriam rejeitar.
A anestesia produzida neste processo chega a desativar a capacidade de pensar não porque o cérebro deixa de funcionar, mas sim porque o pensar a realidade é justamente o esforço de ir além das aparências, de não aceitar pura e simplesmente o que todos dizem ou fazem por se tratar de algo comum e corriqueiro. O pensar do indivíduo, ou de um coletivo, exige um inventário da origem, dos valores, limites, interesses, possibilidades e consequências do que lhe é proposto em termos de sentido do cotidiano e da história, num esforço constante para desmontar o que se apresenta como natural ou impossível de ser mudado”.
- “Como primeiro aspecto, é bastante cabeludo...”, murmura o homem em tirar os olhos do papel.
- “Um segundo elemento – emenda Nádia sem ligar para o comentário do ajudante – vem da escolha do que é, ou não, considerado relevante. Isso diz respeito, por exemplo, tanto a um tema a ser tratado numa série de reportagens televisivas, da imprensa ou do rádio, como de um acontecimento que está sendo apresentado. Pelos mecanismos que esboçamos nas páginas anteriores, não só as descrições tendem a se reduzir ao que é captado no instante da gravação, como na grande maioria da população começa a se instalar a idéia de que se algo não apareceu na TV, em jornais ou revistas é porque não aconteceu ou é de pouca conta. Do mesmo modo, quando é trazido à tona pela mídia é porque, de fato, se trata de um elemento importante nos aspectos que são trabalhados.
Assim, um movimento pode realizar uma passeata com milhares de pessoas ou ocupar durante meses algum espaço público para proporcionar a visibilidade do seu protesto e o diálogo com a população, mas se nada disso for retratado pela mídia, então, para o senso comum, é porque não existiu ou não tem importância. Por outro lado, os meios de comunicação podem se focar só nos aspectos da ocupação que interessam aos grupos econômicos por eles representados para desqualificar a ação empreendida, cooptar os líderes ou justificar a repressão. Tudo isso lançando mão, inclusive, de uma cuidadosa seleção de entrevistas com transeuntes, membros do movimento, autoridades e representantes da sociedade civil organizada que confirmam o sentido dado ao fragmento de realidade que é objeto de descrição. Como espelho do real, não é de estranhar que as imagens refletidas pela mídia, apesar de se apresentarem como reprodução fiel dos fatos, sejam invertidas para possibilitar a compreensão desejada.
Mas isso não é tudo. Na medida em que jornais e emissoras pautam o que é relevante, a mídia fabrica e consolida uma representação do acontecimento que, ao reafirmar as expressões do senso comum, tende a se generalizar e a formatar pré-julgamentos do que guarda certa semelhança com o que vem sendo comentado, passando assim a orientar possíveis respostas ou posturas dos diferentes setores da sociedade. Em outras palavras, o poder da comunicação de massa de construir símbolos e sentidos para o dia-a-dia, de fazer ver e crer em aspectos escolhidos a dedo, de confirmar e transformar a visão do senso comum passa a orientar e dirigir a ação sobre o mundo e, portanto o próprio mundo. A notícia deixa de ser o mero relato de um fato para, ao cristalizar uma determinada leitura dos acontecimentos, se transformar em poderoso instrumento de construção da realidade de acordo com os interesses dos grupos no poder. Neste processo em que o consenso geral da mídia, mais uma vez, poderá legitimar a veracidade da comunicação, o disfarce da imparcialidade e da neutralidade será a fantasia indispensável para que a elite possa fazer desfilar seus valores, idéias, formas de comportamento e critérios de interpretação da realidade na passarela da vida tendo o próprio povo simples como vítima e ator principal da festa.
Um terceiro aspecto – emenda a ave ao cortar sem cerimônias o evidente desejo de uma pausa que o secretário expressa sem cessar – pode ser resumido na convicção de estarem bem informadas que as pessoas têm ao assistirem os noticiários da TV ou ao ouvirem os canais de rádio que transmitem notícias 24 horas por dia. Pelo que vimos, a idéia de se informar sem esforço não passa de uma ilusão na medida em que o material jornalístico é veiculado mais para distrair do que, propriamente, para que o cidadão comum tenha uma compreensão objetiva do que está ocorrendo. Se isso não bastasse, a sucessão rápida de notícias breves e fragmentadas produz o efeito de desinformar ao superinformar.
A desinformação ocorre no sentido de que o acesso à superfície dos acontecimentos em nada ajuda a entendê-los e produz os efeitos descritos no tópico anterior. E a superinformação proporcionada pela sequência ininterrupta de imagens, comentários, entrevistas, anúncios e notícias curtas, fornece uma quantidade de dados bem maior do que o nosso cérebro consegue processar. A falta de foco que acompanha o pular de um tema a outro prejudica comprovadamente a memória e, de conseqüência, o potencial de reflexão pessoal sobre o que está sendo veiculado. Via de regra, após assistir um noticiário na TV ou ouvi-lo num canal de rádio, o que permanece nas lembranças por curtos espaços de tempo são apenas fragmentos de notícias ou imagens que atingiram nossas emoções e nada mais. Isso, pelo menos, até que a dramaticidade ou os aspectos sensacionais de novos eventos desalojem paulatinamente as sobras de memória anteriores. A história processada a quente nas telas da TV ou nas ondas do rádio não dá trégua e, dificilmente, o público se dá conta de quanto os próprios acontecimentos contradizem os comentários ouvidos de jornalistas e locutores. O novo turbilhão de manchetes que passa a atrair as atenções se encarrega de restabelecer a confusão necessária para que tudo continue sendo visto como a sucessão frenética de um acaso incontrolável da própria história.
Para que o homem-massa se sintonize naquele canal ou leia esta revista ou jornal, proporcionando assim a audiência ou a venda desejada, cada meio de comunicação faz propaganda de si mesmo, distribui prêmios aos seus profissionais ou cria bordões e slogans que marcam sua confiabilidade junto ao público alvo. A Rádio CBN, por exemplo, se anuncia como a rádio que toca notícias ao passo que a rede Globo declara que a gente se liga em você para sublinhar que a emissora conhece o que seu telespectador pede e precisa por estar ligada nele, como se grande parte das demandas do homem massa não tivessem sido estimuladas pela ação da própria emissora. Que o sofá e não o esforço de refletir criticamente sobre a realidade, é o melhor lugar para se manter informado é sublinhado também pela rede CNN na pergunta Onde você vai estar da próxima vez que a história acontecer? E cuja resposta correta é Diante da TV, vendo a CNN, já que é na TV que a história acontece e se reproduz e, no momento, é ela que, com suas imagens, detém a primeira e última palavra sobre os acontecimentos”, conclui Nádia ao respirar profundamente.
- “Ainda bem que é só isso”, comemora o homem em tom de alívio. “No início, temia tramóias e questões bem mais complexas, mas se ficar assim está de bom tamanho”, emendam seus lábios ao alimentar a esperança de que o trabalho esteja próximo do fim.
A coruja pisca os olhos, sacode a cabeça em sinal de desaprovação e, ao desenhar círculos no ar com a ponta da asa, diz:
- “O problema, querido secretário, é que os outros mecanismos pelos quais o pensamento é anestesiado, ou momentaneamente desligado, merecem um tratamento mais cuidadoso e não podem ser delineados em resumos que fazem a felicidade dos preguiçosos e não ajudam na tarefa de desvendar a realidade. Portanto, trate de se recompor e se prepare porque é no segundo capítulo que vamos tratar como a mídia passa...”

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Os liberais e a fragilidade do capitalismo

Teriam os liberais revisto suas teorias, analisado seus equívocos e modificado suas posições? Trata-se de uma crise do capitalismo ou do liberalismo?
Até bem pouco tempo, sequer a palavra "capitalismo" era mencionada no discurso político dominante no mundo. Parecia que estávamos vivendo em uma sociedade em que a desigualdade, a pobreza, a exclusão social e a destruição ambiental, quando consideradas, eram geralmente analisadas como sendo decorrentes da ação de indivíduos, sem que uma lógica estrutural conduzisse os seres humanos a agir de determinada forma. Inclusive, em tempos de crise, muitos intelectuais continuam moralizando a economia, procurando os culpados: os assim considerados "maus capitalistas", "maus banqueiros" e "maus investidores".
Mesmo com uma vasta disponibilidade de indícios empíricos e de acúmulo teórico de análise crítica das forças destrutivas do capitalismo, o discurso hegemônico continuava confundindo as causas com soluções. Por exemplo, diante das constatações de que o livre mercado era responsável pela generalização da crise capitalista em nível mundial, as soluções apontadas sugeriam a ampliação do livre mercado, a privatização e a interferência cada vez menor do Estado na economia.
Com o aprofundamento da crise e a perspectiva de uma depressão econômica em nível internacional, agora os liberais utilizam uma tática ideológica antiga: a naturalização da economia. Na Idade Média, por exemplo, os senhores feudais, reis, nobres e demais privilegiados podiam contar com a crença divina para justificar a situação social gerada pelo modo de produção hegemônico. Atualmente, os liberais, confrontados com a negação empírica das suas teorias, tentam difundir um inexorável determinismo natural combinado com doses de cetiscismo para explicar seu fracasso teórico.
O discurso dominante tende a considerar que compreender a economia mundial, na complexidade como ela se desenvolveu contemporaneamente, seria uma tarefa impossível. Ou seja, a humanidade teria avançado muito em termos de ciências naturais, de entendimento da astronomia, da física, da química e da biologia, mas não teria condições de compreender os fenômenos econômicos em nível internacional.
A tentativa de difundir uma noção de incompreensibilidade da economia mundial, assim como a tentativa de naturalizar os fenômenos econômicos, demonstra a perplexidade dos liberais com os atuais acontecimentos. O comportamento não é novo: ao invés de assumir que a "mão invisível do mercado" não funciona, contraditoriamente, se nega o próprio discurso, afirmando a necessidade de ação emergencial do Estado. Isto é, a negação hipócrita procura minimizar o fato da atual retórica estar revelando o fracasso prático da sua teoria.
Curiosamente, entretanto, a atual crise econômica internacional não é a primeira da história e podemos verificar enormes paralelos com as crises anteriores, tanto no processo gerador da crise como na tentativa de sua explicação. A primeira crise econômica mundial iniciou no dia 09 de maio de 1873 em Viena, atingiu Nova Yorque em seguida e, posteriormente, Hamburgo, ampliando-se para os principais mercados capitalistas daquela época. Se seguiram 5 anos de profunda depressão econômica.
A segunda crise econômica mundial, a mais conhecida, iniciou no dia 24 de outubro de 1929 e encerrou somente com o final da segunda Guerra Mundial, com a vitória dos Estados Unidos e seu domínio sobre o mercado mundial. Assim como em outros tempos, a maior economia mundial passou a ser a maior potência militar, impondo seus interesses, sua ideologia e sua linguagem de forma hegemônica sobre os demais países.
O atual domínio estadounidense sobre o mundo se justifica principalmente pelo seu poder militar (especialmente através das armas nucleares) e a instituição do dólar como moeda-padrão para a economia mundial. O longo período de hegemonia dos EUA é marcado por guerras e destruição.
O keynesianismo e a construção do Estado de bem-estar social contribuíram para estabelecer ciclos de crescimento econômico num nível nunca antes visto na história da humanidade. Isso serviu para evitar o surgimento de um contra-poder, iminente com a existência de um bloco não-capitalista (soviético e chinês), resultante de revoluções sociais no mesmo período. Mesmo assim, a economia mundial ameaçava entrar em crise nos anos 1980.
Com o desmoronamento da União Soviética e a queda do Muro de Berlim (1989-1990), cerca de 2 bilhões de pessoas, que há mais de 50 anos estavam fora do alcance do capitalismo, dispondo de ¼ dos recursos mundiais, passaram a integrar o mercado capitalista, permitindo um novo ciclo de expansão, caracterizado como globalização econômica. Esse ciclo de acumulação está chegando ao seu final, deixando, mais uma vez, explícitas duas características fundamentais do capitalismo como modo de produção: a instabilidade e a insustentabilidade.
A economia capitalista é marcada por crises contínuas, umas menores e outras de caráter mundial. Em tese, portanto, podemos afirmar que não existe capitalismo sem crise econômica. As crises cíclicas de superprodução são intrínsecas a esse modo de produção, caracterizado pela separação entre capital e trabalho. O crescente investimento em capital constante (prédios máquinas, tecnologia, etc.), desproporcional ao investimento em capital variável (trabalho vivo), conduz a uma tendencial queda da taxa de lucros, pois somente o trabalho gera o valor e a mais valia (fruto da exploração do tempo de trabalho). Diante disso, os liberais procuram uma saída de sobrevivência ideológica, pois não querem assumir que Marx tinha razão.
Os capitalistas, confrontados com essa fatalidade, há muito tempo conhecida, tendem a investir em outros setores da economia quando determinados investimentos passam a ser considerados menos lucrativos. Assim, muitos investidores deixaram de investir na produção, passando a alocar dinheiro no mercado imobiliário, em bolsas de valores e em bancos. Contudo, "dinheiro não gera dinheiro". Para que o dinheiro possa valorizar é necessário que ele seja investido na produção, de forma que seja possível se apropriar do excedente de valor gerado pelo trabalho.
Por isso, as consequências negativas sobre o capital produtivo são enormes, pois para suportar a carga do pagamento de juros e satisfazer a expectativa dos acionistas, as indústrias, por exemplo, são obrigadas a aumentar a mais-valia (a exploração do trabalho), através de maiores jornadas de trabalho e menores salários. O efeito final, entretanto, somente reforça o problema da crise de superprodução: os menores salários e o desemprego diminuem o poder de compra, desaquecendo a economia como um todo e estimulando os acionistas a investir em outros setores. A crise gira em círculo e o espiral depressivo somente tende a aumentar.
A expectativa de valorizar dinheiro através do mercado financeiro e imobiliário é comparável a um jogo de cassino, onde apenas alguns se apropriam de vantagens a curto prazo, resultantes das perdas de outros. Com a ampliação do mercado financeiro e a mundialização do capital, foi generalizada em nível internacional uma espécie de cassino mundial, embora mantendo o maior fluxo de capital entre os países capitalistas mais ricos. Para que o mercado mundial de capitais pudesse crescer em tamanha proporção, decisões políticas foram necessárias para permitir equiparações e garantias mínimas aos investidores. A expectativa era estimular o crescimento da economia através do fluxo de investimentos que, segundo a crença dos liberais, seria regulado pela "mão invisível do mercado".
Atualmente estamos diante de mais um fracasso histórico do liberalismo. Nunca o mercado havia sido tão liberalizado e em escala internacional. As expectativas dos liberais foram frustradas porque suas teorias partem de uma ilusão central: a idéia de que o mercado seria uma força autoreguladora e que, em função da concorrência, os recursos econômicos seriam alocados da melhor maneira possível. Essa idealização do mercado como mecanismo regulador segue uma lógica de pensamento que corrobora a circulação e o aquecimento da especulação nas bolsas de valores.
Na realidade, entretanto, o mercado funciona com base nas relações socias entre seres humanos que trocam produtos. O mercado é regulado pela oferta e pela procura de mercadorias, uma relação meramente quantitativa, que cumpre uma função de mediação. Mas, assim como a mercadoria pode operar como fetiche, o processo de troca de mercadorias produz e necessita de ilusões para continuar funcionando.
Na lógica do mercado, os vendedores pressupõem que compradores pagam, em forma de dinheiro (uma mercadoria comum que serve para trocar mercadorias), e os compradores pagam porque internalizaram a idéia da troca. Com base na mesma idéia, credores e devedores negociam, acionistas e investidores aplicam dinheiro (mesmo quando este continua nos bancos, sendo apenas uma expectativa, uma virtualidade, pois trata-se de cifras, de transações bancárias sem o uso de moeda-papel, de documentos que geram expectativa de pagamento).
Quando a virtualidade do mercado idealizado foi confrontada com uma crescente impossibilidade real de pagamento (por parte do assim chamado capitalismo real, dependente da produção), as expectativas dos "apostadores" se reduziram a riscos. O problema maior, para além das expectativas de ganho frustradas (como eram virtuais não poderiam ser caracterizadas como perdas, pois se baseavam meramente em apostas) dos assim chamados investidores, é a incidência negativa do crédito sobre a produção capitalista, gerando endividamento, falências e uma depressão econômica real.
Contudo, a origem do problema continua na produção capitalista, tendencialmente geradora de crises de superprodução. A crise financeira é sua decorência e apenas agrava a crise do capitalismo "real", surgindo em escala global quando a maioria dos economistas liberais a menosprezava como distante, localizada e passageira, ignorando seu potencial destrutivo.
As soluções apresentadas para sair da crise confirmam o caráter ideológico do liberalismo. A atitude de negação do próprio discurso em favor do livre mercado e a proposta de "ajuda econômica" por parte do Estado demonstram claramente o equívoco da concepção do mercado como alocador de recursos: o mercado é um instrumento de poder que opera no sentido da concentração de recursos econômicos, tendo como maiores consequências negativas o desperdício (destruição do meio ambiente) e a exclusão social (radicalização da desigualdade).
A força política da idéia de mercado se manifesta na aceitação da premissa proposta: a necessidade de ajudar o capitalismo a sair da crise. Em outras palavras, os prejuízos são socializados (na forma de subsídios, ajuda financeira, isenção de impostos) e os benefícios privatizados (os jogadores que perderam no cassino, utilizando dinheiro de outros, recebem uma nova chance de jogar, novamente com o dinheiro alheio). O Estado se endivida para ajudar os responsáveis pela crise com dinheiro público e, com isso, continua reduzindo investimentos em programas sociais e em projetos de infra-estrutura. E, enquanto isso, a concentração de renda e de capital continua.
É claro que, diante das evidências do fracasso e da fragilidade do capitalismo, o Estado poderia estatizar os bancos endividados, estabelecer regras para evitar crises futuras e controlar o fluxo de capitais. Mas, pelo contrário, a solução apresentada pelos liberais consiste em solicitar a ajuda do Estado para ajudar o sistema a sair da crise e depois deixar o mercado como regulador até que uma próxima crise se instaure. Essa é a função do liberalismo, como teoria legitimadora do modo de produção capitalista, conduzindo à aceitação das suas propostas por parte da maioria da sociedade, que arca com o ônus da crise gerada em função da concentração do capital.
A evidência da fragilidade do capitalismo e do fracasso teórico do liberalismo, entretanto, não conduzem, automaticamente, à sua superação, pois os interesses que os fundamentam são mais importantes e se situam acima dos argumentos. Mesmo assumindo a contradição no seu discurso, os liberais não extraem dela todas as conseqüências, porque o interesse maior permanece na continuidade da produção capitalista, a razão da existência do liberalismo como teoria. O "rei está nú", mas a crença ilusória no Deus que o instituiu continua lhe servindo de vestimenta. 

Antônio Inácio Andrioli é vice-reitor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS).
Fonte: Vermelho à Esquerda.

Ao visitante

entre.
leia.
comente.
sugira.
não faça nada.
enfim, sinta-se a vontade.

Compartilhe este conteúdo em sua rede

Postagens populares