quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O Partido dos Trabalhadores nos limites do capital

O Partido dos Trabalhadores nos limites do capital


Alisson Slider do Nascimento de Paula (*)

  
RESUMO
Neste trabalho analisar-se-á a trajetória do Partido dos Trabalhadores (PT) desde a sua origem, quando surgiu como importante instrumento de luta popular até sua consolidação definitiva como partido da ordem, cujo ápice se dá com a vitória eleitoral de Lula da Silva à presidência da república em 2002. Dessa forma, buscaremos desvelar a atuação deste partido no âmbito parlamentar e da administração do Estado e seu progressivo afastamento das lutas populares.





“Apesar de não em substância, mas em forma, a luta do proletariado contra a burguesia é antes de tudo uma luta nacional. O proletariado de cada país precisa, claro, primeiro de tudo, acertar seus assuntos com sua própria burguesia”.
Marx & Engels (2006)


Partimos do discurso de Lula da Silva apud Iasi (2012a, p. 376) proferido na 1ª Convenção Nacional do PT em 1981, “O Partido dos Trabalhadores não poderá jamais, representar os interesses do capital”. Esta fala estava em consonância com várias teses elaboradas para os Congressos dos Trabalhadores Metalúrgicos, Mecânicos e de Material Elétrico do Estado de São Paulo, as quais denotavam um revelador salto no processo de consciência de uma classe ainda em fase de formação. O discurso de Lula da Silva também estava em total acordo com as características acentuadas dos documentos da fundação do PT, os quais realçavam o caráter “anticapitalista” do partido. É preciso ressaltar que este contexto esteve diretamente marcado pelas greves que se realizaram no ABC e em outras regiões brasileiras, estando articulado também com um movimento contra a ditadura civil-militar.

Tais fatos revelam na lógica do regime militar que as greves e manifestações se trataram de um “severo desacato à legislação antigreve da ditadura, se houve um questionamento agudo da política salarial e, por consequência, da própria política econômica, estes atos rebeldes foram cometidos por vários setores da classe trabalhadora” (COELHO, 2012, p. 38). É possível considerar que o estouro de greves daquele contexto representou uma ação bem executada pelos trabalhadores contra os espaços circunscritos a resistência estabelecidos pela ditadura civil-militar. Destarte, salienta-se a mudança na configuração da luta de classe.

Demasiadas análises acerca do curso histórico de fundação do PT definem seu contexto de fundação doravante um específico significado conferido à categoria transição.

“O termo designa um fenômeno político importante na história recente do país, a saber, a lenta e titubeante passagem de um modo de dominação política (a ditadura militar instalada com o golpe de abril de 1964) para outro (a democracia burguesa, concretizada com a derrota em eleições presidenciais indiretas do candidato apoiado pelo último general presidente em 1985 e formalizada com a Constituição promulgada em 1988). Todavia, quando foi empregado como categoria central de interpretação de um período histórico, o termo aportou alguns problemas que nem sempre foram enfrentados pelos analistas. O maior deles é o de apontar para uma circunscrição da complexidade histórica aos parâmetros das formas políticas.” (COELHO, 2012 p. 39, grifos do autor).

O autor, ainda, sugere uma contraposição, pois, a própria categoria transição enquanto fenômeno histórico, não se funda por si mesma, assim, ela não pode ser auto-explicativa. Portanto, não estamos supondo que não foi realizado um processo de transição política ou conjecturar que esta transição não tenha engendrado implicações da maior importância em diversas esferas da vida social do país. A origem do Partido dos Trabalhadores, mormente, se trata de um processo histórico o qual para se efetivar uma compreensão qualitativa necessita conceber o contexto histórico a partir de complexos mais eminentes que os possíveis pela categoria transição, pelo menos na acepção em que foi preeminentemente aplicada pelos estudiosos.

Ainda com a necessidade de explicitar melhor a compreensão da totalidade da fundação do PT nos desdobramentos da realidade, é necessária uma breve análise da categoria transição, pois, a concepção preeminente nos estudos mais prestigiados acerca da categoria transição é a de “autonomizar a esfera da política, privilegiando a análise dos ‘atores’ frente às situações em que se pode configurar uma ‘estrutura de escolha’” (COELHO, op. cit. p. 39). Obtendo grande persuasão pela teoria da escolha racional (1), tal base investigativa exerce “uma espécie de suspensão da política, uma redução que consiste em cancelar, ou no mínimo secundarizar, as conexões entre o mundo da política e o seu suposto exterior” (2) (Idem). Estas concepções implicaram em resultados expressivos ao indicar elementos peculiares da dinâmica de determinados sujeitos articulados com o movimento político em dado contexto histórico, contudo, seus limites são inquestionáveis. Com isso, “tomar as elites, ou os ‘atores relevantes’, como sujeitos completos da política é uma opção analítica que desconsidera a pertinência da política a um universo de relações dentro do qual ela mesma é uma parte determinada” (Ibidem). Destarte, uma questão se faz crucial, pois está para além dos limites explicativos da teoria da escolha racional, se trata, de fato, da necessidade de veementes movimentos populares findando a década de 1970. “Na medida em que estes ‘novos personagens’, [...] não são secundários, mas causadores de uma interferência de grande amplitude na transição, a lacuna na teoria se torna excessivamente grave” (Idem, Ibidem).

Para se pensar seriamente as lutas sociais enquanto dimensão essencial da história, enquanto forças que dão forma ao solo histórico-social no qual os sujeitos políticos se movem, se quisermos preservar a nomenclatura, é premente refletir acerca de percursos alternativos, apenas assim, seria possível se pensar a transição. Ora, a categoria transição, apreende demasiadas determinações complexas: esta categoria não é somente fruto dos – calcado nas expressões da teoria da escolha racional – “atores políticos racionais” alocado em um jogo demarcado institucionalmente, tampouco das cisões engendradas pela demarcação institucional de outras regras para a disputa política, porém a resultante de um condicionante numeroso de sujeitos históricos em sua processualidade, tanto no interior quanto no exterior do cenário político tradicional, postos em motricidade por suas divergências. Portanto, os embates dos operários no término da década de 1970 deixam de representar somente um dado do momento histórico e contraem, na análise, a colocação central conforme ao seu papel sócio-histórico concreto.

De antemão, é preciso elucidar que nos deteremos apenas na análise da categoria transição como uma das formas de interpretação do movimento da fundação do Partido dos Trabalhadores, logo, a análise das formas complexas interpretativas deste fato, ultrapassa os limites e objetivos do presente trabalho. Portanto, compreendendo o valor dos embates de classes em sua dinâmica, é assim que entendemos o surgimento do PT, e o discurso de seu dirigente exuberante Lula da Silva mencionado anteriormente neste trabalho, revelava deslindando o caráter “anticapitalista” do Partido dos Trabalhadores naquele contexto histórico em que se fundava esta organização de oposição aos partidos nacionais, bem como à ditadura civil-militar. Para o professor Mauro Iasi (2012a) este caráter anticapitalista é caracterizado, em certa medida, pela força com a qual os trabalhadores confrontavam. Assim, 

“[...] de forma extremamente elucidativa, a Carta de Princípios do PT (1979) relata que a unidade dos trabalhadores vem em resposta ao modo de unificação dos próprios setores do capital para enfrentar as greves operárias do final de década de 1970. É diante da unidade dos patrões e seu poder político que os trabalhadores são levados à necessidade de unificação e de criação de um partido político. Tinha razão Lenin ao dizer que um dos elementos pedagógicos mais eficientes na criação de uma consciência de classe entre os trabalhadores é a polícia. A repressão ao movimento grevista de 1978/79 foi essencial para o desenvolvimento da constatação da ‘necessidade objetiva’, nos termos da própria Carta de Princípios, de criação de uma organização política própria aos trabalhadores” (IASI, 2012, p.392).

É nessa precisa acepção do caráter anticapitalista primaz do partido, que nascia o cunho classista. Este cunho que se engendrava do PT em sua fundação se demonstraria, em passagens substanciais da Carta de Princípios, bem como da Declaração Política de outubro de 1979. Destacamos, dessa forma, a Carta de Princípios (3), à qual faz alusão a uma frase egrégia de Marx, alegando que “o Partido dos Trabalhadores entende que a emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores”.

A partir do exposto, ainda que de forma rudimentar, ressaltamos não ser necessário para a efetivação desta pesquisa uma exposição da totalidade do movimento de fundação do PT, pois está para além de nossas pretensões, todavia, por se tratar de uma dinâmica necessária na história da luta de classes brasileira, nos debruçamos e debruçaremos, em certa medida, em expor o contexto em que iniciou o processo de fundação do PT como uma organização de oposição aos partidos nacionais e do regime militar, bem como ressaltamos a partir do movimento histórico-social em que se dá este processo com o suplemento das falas de Lula da Silva, bem como do conteúdo expresso em alguns documentos do partido.

Da convergência dos movimentos da luta contra o regime militar, emergiu a proposta da criação do Partido dos Trabalhadores, legalizado no ano de 1980. Assim, o PT foi instituído no contexto de crise política da ditadura e de sua abertura. Tendo como elemento imprescindível do trato metodológico a centralidade do presente, consideramos que com um exame meticuloso do Partido dos Trabalhadores no atual cenário político-social é possível, em certa medida, compreender sua inflexão ao longo da história aos setores hegemônicos. Ora, se é verdade o que Marx e Engels colocaram em sua obra política “Manifesto Comunista”, após preconizar a função histórica e revolucionária da burguesia enquanto agente genuíno de transformação política, econômica e social no contexto europeu dos séculos XVIII e XIX, assevera que:

“[...] todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado” (MARX; ENGELS, 2006, p. 35).

Portanto, assim como nas linhas dos precursores do socialismo científico, fazemos um paralelo com a história do PT, logo, o partido de oposição se torna sustentador da ordem social vigente. Com efeito, o contexto histórico recente do Partido dos Trabalhadores nos revela que desde a década de 1990, demasiadas foram as ocasiões nas quais a prática do PT vai na contramão de seu discurso, bem como às indicações programáticas de sua gênese (4).

De fato, o PT surgiu sem uma concepção ideológica, porquanto no decorrer de um vasto tempo, o partido se tratou de um projeto em disputa, porém possuía o mérito de concentrar internamente os intelectuais de esquerda, bem como setores da classe média que lutavam contra a ditadura civil-militar, e dirigentes do “novo sindicalismo” (5), que foram os responsáveis fundamentais pela manutenção da proposta, ao tê-la amparada nos embates populares. Pelo predomínio do setor sindical, as falas e as proposições do partido no início possuíam uma evidente característica classista, isto é, inquietavam-se com o perfil do empenho e organização da classe trabalhadora no confronto com os segmentos hegemônicos.

Nos seus principais documentos, o PT manifestava sua oposição à ordem social burguesa. Com isso, deixava claro que o PT se definia como um partido sem patrões, logo regulado pela independência de classe. O professor Mauro Iasi, em sua tese de doutoramento, se debruça sobre esse aspecto, inclusive, destacando que no início o PT internamente debatia se o partido seria apenas constituído por operários fabris ou sindicalistas, todavia, a análise do PT é conduzida para a compreensão que seria necessário construir uma organização partidária que  contemplasse os trabalhadores assalariados, assim, assevera o autor:

“Uma das dúvidas quanto ao partido que nascia era se ele se restringiria a uma organização de sindicalistas ou seria um partido de operários fabris. O caráter de classe ampliado, no sentido de representar todos os trabalhadores assalariados, o documento de princípios afirma que o objetivo do PT é «organizar politicamente os trabalhadores urbanos e os trabalhadores rurais» e se declara «aberto à participação de todas as camadas assalariadas do país». Para que não pairem dúvidas sobre este princípio, que no desenvolvimento do partido seria alterado, o documento inicial conclui, ao discorrer sobre as tradicionais manipulações políticas que sofreram as massas exploradas em nossa história, que o «PT recusa-se a aceitar em seu interior representantes das classes exploradoras; vale dizer, o Partido dos Trabalhadores é um partido sem patrões»”. (IASI, 2012, p. 379-380, grifos do autor).
Na “Declaração Política de 13/10/79”, alegava-se que “O PT luta para que todo poder econômico e político venha a ser exercido diretamente pelos trabalhadores” (6). A partir da década de 1970, os países centrais e uma parte dos países periféricos foram arrasados pela investida conservadora burguesa a qual tinha como desígnio combater a queda da taxa de lucro inserida em um contexto de crise estrutural do sistema do capital. As ações pensadas para superar a crise geraram implicações avassaladoras para a classe que vive do trabalho, usando como exemplo, o trabalho em condições precárias e o desemprego. Acontecia também o desmantelamento do dito “socialismo real”, que teve sua culminância no ano 1989, quando foi abaixo o Muro de Berlim. Esse aglomerado determinador acarretou a crise do movimento sindical, bem como a flexibilização e giro à direita dos partidos de esquerda.

Este quadro atingiu o Brasil doravante 1990. No entanto, seus efeitos nocivos obtiveram uma extensão mais ampla, em decorrência da condição sócio-histórica do país. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) adotou o “sindicalismo de resultado” em contraposição ao “sindicalismo de confronto”, dessa forma, alinhando-se ao que se desdobrava em outras regiões em escala global (ALVE, 2000).

Isso se deu em virtude da corrente majoritária da CUT priorizar um escopo sindical mais participativo, como também cooperativo. Tal decisão diz respeito com à tática da burguesia internacional de adaptar o sindicalismo às suas premências de produtividade e criação de consenso, buscando solapar os setores sindicais combativos.

O PT, assim como vários partidos de esquerda no globo, tolerou um progressivo processo de flexibilização, bem como de conformação a ordem, “tanto no plano das formulação político-programáticas quanto na sua relação com os movimentos sociais” (VIEIRA, 2012, p. 49). Na prática, isso foi comprovado através das profundas reformulações do programa político, da estrutura organizativa e do afastamento dos embates de classes.

Iasi (2012b) alega que, o projeto para elidir o sistema de mercadorias foi abandonado pelas resoluções do partido, o que ratifica que na nova visão dos dirigentes petistas, o capitalismo é algo indestrutível. Ao invés disso, novos olhares foram direcionados a critica ao neoliberalismo. De acordo com Coelho (2012), o debate não aborda mais a transcendência positiva do sistema de produção capitalista, todavia sobre qual sistema capitalista mais adequado.

Tal tendência de perda de características dos partidos de esquerda é fruto da preeminência neoliberal materializada nos anos 1990, especialmente em função do fim da União Soviética e da decorrente concentração política e econômica nos Estados Unidos, engendrando um tipo de “mundo unipolar”.

Referindo-se ao PT, este saboreou também um processo de burocratização que, de acordo com Garcia (2008), iniciou-se findando a década de 80, quando nesse determinando período histórico o PT passa a governar uma quantidade significativa de prefeituras, tirando usufruto do grande incremento de seu êxito eleitoral nos anos 1990. Isso favoreceu a opção preferencial do partido pelas disputas eleitorais e o consequente abandono do projeto que buscava a transformação na sociedade. Assim, o PT se distanciou da vivência das coalisões de classes. A articulação com os movimentos sociais foram mantidos, porém, foram se tornando gradualmente mais circunscritos ao plano formal e institucional.

Del Roio considera que,

“[...] esse partido sentiu-se muito mais à vontade para abandonar progressivamente a sua faceta de defensor intransigente dos interesses das classes trabalhadoras contra a sanha do capital, para propor-se como gestor mais adequado e indicado da própria ordem burguesa. A classe operária assim, em vez de transpor o estágio sindical-corporativo propondo a própria hegemonia e de seus aliados contra a ordem imperial do capital, tendo o PT como seu representante, preferiu ou só foi capaz fazer uma inversão especular do «economicismo» que a orientava” (2004, p. 74).

O que se pode constatar é que, a partir da década de 1990, a corrente majoritária do Partido dos Trabalhadores efetivou um grande movimento para encaixá-lo em seu projeto de conciliação de classe. Foi possível notar as várias mudanças sofridas em suas elaborações teórico-estratégicas ou pilares programáticos, apreendendo-se, dessa forma, a sua política de alianças. Passam a conter as suposições teóricas do PT a “democracia como valor universal”, a disputa da “hegemonia” nas instituições democráticas, a “ética na política”, a “cidadania”, a “inclusão” social dos excluídos e a “inserção soberana” na economia no cenário da globalização. (GARCIA, 2011, p. 46).

Assim, consolida-se internamente no partido um projeto que se propõe de reformas do capital. Advogar a cidadania se torna o núcleo do programa do partido. O PT abdica das mais rudimentares medidas anticapitalistas, bem como de sua independência de classe.

Estas transformações não aconteceram sem uma vasta crise interna no partido, como também com grandes paradoxos entre as resoluções dos congressos e a atuação de seus militantes. Cyro Garcia cita dois fatores que demonstram bem a mudança de rumos: “[...] com mais profundidade com as resoluções dos congressos [...] referentes à política de privatização do governo FHC, que eram de rechaço a esta política [...] com a prática de seus militantes que integravam os fundos de pensão de trabalhadores (Idem, p. 101).

Outra mudança crucial, que salta aos olhos, se deu nas campanhas eleitorais, abarcando fatores como: os conteúdos programáticos circunscritos à ordem da administração burguesa, as políticas de alianças ampliadas e sem mais o crivo ideológico classista, o mesmo valendo para os financiamentos das campanhas; campanhas essas que passaram a ser comandadas por marqueteiros profissionais; e a nova relação com a massa na qual esta não é mais sujeito da práxis política, mas se reduz ao papel de eleitora passiva. Essas mudanças dilaceravam o caráter de independência de classe, reproduzindo exatamente o mesmo modus operandi dos partidos burgueses em geral.

O balanço realizado acerca das eleições no X Encontro Nacional em 1995, caracterizava que a derrota de 1994, entre outras lições, implica numa reflexão sobre a imagem do PT para a população, bem como sobre as ambiguidades ideopolíticas que possui, e seus entraves quanto à realização de um ajuste de contas mais rigoroso com as heranças do século XX, isto é, a social-democracia e o comunismo. Tal balanço tem implicações diretas no programa do PT. Ainda nesse encontro é determinado que a defesa da nação passa pela constituição de uma política econômica com exponencial diferencial, e uma aliança social maior. Com isso, no mesmo encontro, Lula da Silva profere um discurso despedida da presidência do PT, dando tons mais esclarecedores quanto a aliança social maior:

“Criamos o PT para que o povo brasileiro tenha um canal político, uma legenda que represente os interesses da maioria, uma bandeira em torno da qual se mobilizam as donas de casa e os sem-terra, os operários e desempregados, negros e mulheres, estudantes e intelectuais, produtores de culturais e empresários interessados na modernização do Brasil, compatível com a redução das desigualdades sociais” (COELHO, 2012, p. 241).

Lula desvelou, com precisão, que o partido das origens, com independência de classe, sem patrão, já não existia mais. Com efeito, se tratava de uma resposta na íntegra às correntes de esquerda do PT, que em seus embates contra as transformações que estavam sendo conduzido no PT pelo chamado “Campo Majoritário” (7), reivindicavam pelo “PT das origens”.

As mudanças programáticas atingiram, também, o perfil oposicionista do partido. Nas eleições municipais de 1996 vimos Luiza Erundina, candidata a prefeita de São Paulo, ser a principal porta-voz do “PT que diz sim”, o que escandalizou amplos setores da base do partido. Em 1998, Lula, em seu primeiro programa de TV da candidatura presidencial, trocou as bandeiras vermelhas do PT por bandeiras brancas. (GARCIA, 2011, p. 121).

A processualidade que se deu no PT, pode se definir como transformismo, conceito presente em Gramsci em sua análise acerca do contexto histórico italiano. Filgueiras e Gonçalves trabalham este conceito, considerando:

“O termo denomina o fenômeno de assimilação e implementação, por parte de indivíduos (transformismo molecular) e/ou agrupamentos políticos inteiros (transformismo de grupos), do ideário político-ideológico dos seus adversários ou inimigos políticos. Sinteticamente, trata-se de um processo de adesão (individual ou coletiva) ao bloco histórico dominante, por parte de lideranças e/ou organizações políticas dos setores subalternos da sociedade, com o abandono de suas antigas concepções e posições políticas” (2007, p. 182).

Destarte, o transformismo petista pode ser visto de forma consolidada a partir da chegada do PT ao poder. Então, ressaltamos que o próprio processo em que o PT passou para se chegar ao governo federal, teve conivência da burguesia brasileira, bem como dos setores do capital financeiro internacional, consoante Arcary (2014),

“A classe dominante brasileira contribuiu para o esforço de sua autoridade oferecendo-lhe uma visibilidade política crescente diante de seus potenciais rivais, desde os anos 1980. A burguesia brasileira confirmou a sua habilidade política assimilando Lula e o PT como oposição eleitoral. Lula foi, portanto, conscientemente poupado, sobretudo depois de chegar ao poder, de ataques diretos mais contundentes, o que reforçou sua imagem. O amadurecimento foi elogiado pelas lideranças mais lúcidas que confessaram respeito, e até gratidão, pela função que cumpriu como garantia da segurança do regime democrático” (p. 10).

Quando, enfim, Lula da Silva logrou-se presidente da república em 2003, após uma campanha que esteve calcada em uma crítica ferrenha ao neoliberalismo, seu governo se quer alterou a política econômica do governo Cardoso. Todavia, mostrou disposição em dar seguimento às mesmas medidas que beneficiam a concentração de renda e, não obstante alegar a soberania nacional sustentou a dependência do Brasil aos organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), que reivindicam as aspirações da burguesia internacional. Porquanto, Lula da Silva surgia como o nome certo para dar continuidade com as reformas prementes que tinham sido deixadas incompletas após os mandatos de Cardoso, já que, se existia algum risco para o capital em amparar uma liderança com carisma como era o caso de Lula da Silva, este, precisamente com os dirigentes fundamentais do Partido dos Trabalhadores já tinham dado provas satisfatórias em função de sua atuação no âmbito do poder legislativo, bem como em executivos estaduais e municipais da sua vasta envergadura de manejar as bases que dirigiam e de negociar largamente e sem julgamento ou qualquer antipatia classista com o setor empresarial nacional ou estrangeiro.

Para Sousa Jr (2009),

“O Partido dos Trabalhadores, portanto, abrira mão do seu papel político-pedagógico junto às massas exploradas, pois não mais as considerava como sujeito histórico da práxis politica, mas as considerava apenas como eleitoras. Mais: o PT não se considerava mais um instrumento orgânico das massas exploradas, submetido às suas determinações; definia-se como ente acima e separado delas, responsável não mais pela sua politização, mas por guiá-las à terra prometida, bastando para tanto que o respaldassem nos processos eleitorais «democráticos»”. (p. 163).

Transformando-se o PT, dessa forma

“[...] num fetiche, colocou-se acima dos que o construiu, como criatura que controla e submete o seu criador. O partido inverteu a relação com suas bases, através de um processo pelo qual uma camada de indivíduos que ocupa posições no Estado [...] dirigentes sindicais etc. impôs a ele uma dinâmica de atuação e de organização burocratizada em que não tem lugar a militância de base, participando, discutindo, elaborando, indo às ruas etc.” (Ibidem).

Dando continuidade no giro à direita do PT, na carta do governo brasileiro ao FMI, de maio de 2003, já era explicita a escolha que o governo fez de dar seguimento à concepção de incorporação inerte à economia internacional. Se ainda existia qualquer imprecisão sobre isso, seguramente a Carta se trata de uma evidente expressão do entusiasmo do governo em efetivar a agenda “reformista” dos organismos multilaterais e de decepcionar a perspectiva dos brasileiros que acreditavam em uma política diferente da política do governo Cardoso que deu prioridade ao ajuste fiscal, pagamento da dívida pública, estabilidade monetária, o controle da inflação na contramão dos investimentos para as áreas de saúde, educação, habitação e a dependência mais ampla do Brasil aos imperativos do FMI e do BM. Ainda, é nítido ver o mesmo programa em desenvolvimento no governo Dilma Rousseff.

Coelho, em sua pesquisa sobre evolução teórica das correntes majoritárias do PT, estudou, a partir do conceito, as mudanças no interior do partido. E, também partindo de Gramsci, assim o definiu:

“Transformismo pode ser definido, então, sinteticamente, como 1) absorção, em caráter individual ou «de grupo» e obtida por diferentes «métodos», de intelectuais («elementos ativos») das classes subalternas pelas classes dominantes. Nele estão implicados: 2) a modificação «molecular» dos grupos dirigentes, sua ampliação e 3) a produção da desorganização política das classes subalternas. A concepção do transformismo como mecanismo de atração de intelectuais exige, por fim, que se considere o 4) poder de atração de classe, que varia principalmente em função da sua «condensação ou concentração orgânica». Na medida em que este conceito designa um dos elementos constitutivos do «mecanismo» geral de hegemonia, não é de estranhar que através dele se possa estabelecer certas analogias históricas. É com esta definição que se pode propor o emprego do conceito como critério de interpretação da história recente dos grupos de esquerda que pesquisamos” (2012, 349).

Identificando como aspecto essencial do transformismo do PT a

“[...] dissolução dos vínculos orgânicos com a classe trabalhadora. Vimos nos capítulos da segunda parte como esta dissolução aparece nas resoluções das correntes: organizar a classe como sujeito político independente deixou de ser um objetivo de seus projetos políticos. Não se pode mais atribuir à esquerda a condição de intelectual orgânico da classe trabalhadora se a tarefa essencial de realizar a organização política desta classe através do «espírito de cisão» foi recusada por ela. Por outro lado, com seu novo projeto político, a esquerda se colocou no terreno da concepção burguesa de mundo, isto é, passou a atuar, na prática, como intelectual, ou elemento ativo, da classe dominante” (Idem, grifos do autor).

Portanto, é possível considerar que o transformismo petista se deu em virtude da burocratização vivenciada pelo partido, resultado de suas conquistas eleitorais e de sua incorporação ao aparelho estatal burguês. Lênin (2007), em sua obra O Estado e a Revolução, ainda no primeiro momento do texto, quando se propõe combater a deturpação da concepção marxiana do Estado, o revolucionário Russo faz alusão à obra de Friedrich Engels, o qual assevera que o Estado “é produto da sociedade numa certa fase de desenvolvimento. É a confissão de que essa sociedade se embaraçou numa insolúvel contradição interna, se dividiu em antagonismos inconciliáveis de que não pode desvencilhar-se” (ENGELS, 2012, p. 133). Com isso, Lênin corrobora: “O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis” (2007, p. 27). Portanto, esta concepção de Estado não está em nenhum desacordo com a concepção de Estado preconizado no Manifesto Comunista, onde está expresso, “O poder estatal moderno é apenas uma comissão que administra os negócios comuns do conjunto da classe burguesa.” (MARX; ENGELS, 2006, p. 09). Dessa forma, o PT almejou historicamente, por meio da esfera eleitoral, administrar os negócios da burguesia brasileira.

Sendo assim, a partir da exposição feita podemos afirmar que o processo transformista indicado se deu em função de um fator crucial, o PT como vimos mais acima, nasceu nas/das lutas das classes trabalhadoras e no meio dos movimentos sociais, mas, com os governos petistas, muitos dos grupos, sindicatos, partidos, coletivos, entidades estudantis etc. não se movimentaram contra o que o PT estava (e está) executando, como o ataque à classe trabalhadora e sua atual e feroz política de ajuste fiscal.






(*) Professor do Instituto de Estudos e Pesquisa do Vale do Acaraú (IVA). Mestrando em Educação na Universidade Federal do Ceará (UFC), na linha de pesquisa marxista Trabalho e Educação; Integrante do Grupo de Pesquisas em Trabalho, Práxis, Política e Educação (GTPPE/CNPQ).

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NOTAS:

(1) A Teoria da Escolha Racional, como forma de compreensão dos fenômenos sociais, assume que o comportamento humano pode, em várias medidas, ser estudado, ou modelado, através do pressuposto da racionalidade. Originalmente utilizado nas ciências econômicas, tal pressuposto afirma que, em situações de múltipla escolha, os agentes optam por estratégias que maximizam seus resultados. Para maior aprofundamento: (MEIRELES, 2012; LOVETT, 2006; PRZEWORSKI, 1988).

(2) Vide: MAINWARING, 2001; REIS, 1988.

(3) Além desta passagem, há outras passagens em consonância com as argumentações de Marx, bem como outros documentos que trazem este semblante que caracteriza o PT em sua fundação como um partido de caráter anticapitalista.

(4) Destacamos o mais atual, onde Dilma Rousseff havia divulgado em sua rede social que não mexeria nos direitos trabalhistas. Todavia, o governo efetivou mudanças na concessão de benefícios e pensões, para reduzir gastos de 18 bilhões de reais por ano. O corte nos gastos do governo no segundo mandato da presidente Dilma Rousseff vai começar pelos direitos trabalhistas, com restrições no acesso a seguro-desemprego, abono salarial (PIS) e auxílio-doença, além de uma minirreforma na Previdência Social, com mudanças nas regras das pensões. As medidas foram anunciadas ontem e serão incluídas em medida provisória a ser encaminhada hoje ao Congresso Nacional. Segundo cálculos do futuro ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, o pacote vai gerar uma economia de R$ 18 bilhões por ano, a partir de 2015, equivalente a 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto de bens e serviços produzidos no país).

(5) Situamos a crise atual do sindicalismo, dando a atenção para as metamorfoses no mundo do trabalho, as quais tem como sustentáculo a mundialização do capital, as recorrentes crises do modo de produção vigente, bem como a divisão social do trabalho. Para aprofundamento no tema, indicamos: (ALVES, 2001; 2003; ANTUNES, 2012; 2004; BOITO JR, 1991; 1999).

(6) PEDROSA, M. Sobre o PT. São Paulo: Ched Editorial, 1980, p. 65.

(7) O que se denomina como “campo majoritário” das correntes petistas era definido pela “Articulação” e pela “Democracia Radical”.




REFERÊNCIAS

ALVES, G. Toyotismo e Neocorporativismo no Sindicalismo do Século XXI. OUTUBRO, nº 5, ano 2001, Revista de Estudos Socialistas.

__________. Os Limites do Sindicalismo na Perspectiva da Crítica da Economia Política - Salário, Preço e Lucro. In: __________ (Org.) Limites do Sindicalismo. Bauru, Ed. Práxis, 2003.

ANTUNES, R. Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as Metamorfoses e a Centralidade do Mundo do trabalho. Cortez editora, Campinas, 2012.

 ___________. A Desertificação Neoliberal No Brasil (Collor, FHC e Lula). São Paulo: Autores Associados, 2004.

ARCARY, V. Um reformismo quase sem reformas: uma crítica marxista do governos Lula em defesa da revolução brasileira. São Paulo: Editora Sundermann, 2014.

BOITO JR, A. O sindicalismo de Estado no Brasil: uma análise crítica da estrutura sindical. Campinas: Unicamp, 1991.

___________. Política Neoliberal e Sindicalismo no Brasil. SP: Xamã, 1999.

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Fonte: O COMUNEIRO


segunda-feira, 14 de setembro de 2015

CAIXA DE ÓDIO

 O Brasil insiste em depositar uma parcela cada vez maior de sua população em prisões dignas da Idade Média. Mas o encarceramento em massa no país não vem estancando as taxas de criminalidade, pelo contrário. É ali que o crime se articula.

Punir o criminoso em defesa da sociedade e do bem comum. É para isso que as prisões são feitas, com a civilização dando um passo adiante em relação às punições via tortura e morte dos tempos medievais. Mas basta olhar as celas superlotadas de algum centro de detenção provisória de São Paulo, como a da foto ao lado, para perceber que as prisões continuam dignas da idade das trevas e podem produzir efeitos contrários ao que delas se espera.
Em maio, para conviver em um espaço feito para 12 pessoas na Vila Independência, 54 detentos precisavam se virar para dormir, compartilhar o mesmo banheiro e guardar seus pertences. A solução veio dos próprios presos, que montaram uma intrincada estrutura semelhante a uma teia de aranha, com redes penduradas por todos os lados, aproveitando o vazio na parte superior da cela.
Existem 607.731 presos no Brasil para um total de 376.669 vagas distribuídas em 1.424 unidades prisionais, o que significa 161% mais presos do que vagas 
Funcionários e fiscais da sociedade civil que conhecem o CDP falam sobre o resultado, que se repete em outras unidades: lideranças prisionais, muitas delas ainda ligadas ao crime organizado, se fortalecem porque conseguem estabelecer uma ordem e normas de convívio em meio ao caos. Ao mesmo tempo, as autoridades penitenciárias se fragilizam ao serem associadas ao descaso e a violações das leis.
“Coloque alguém 24 horas por dia durante anos numa cela amontoada. O presídio é caro e vai profissionalizar o cara para o crime. O sujeito lá dentro fica revoltado e alijado física e espiritualmente. Quanto mais ele ficar preso, mais medo as pessoas vão ter dele”, diz o padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, no documentário Sem pena, de Eugenio Puppo, sobre o sistema carcerário no Brasil.
Há séculos as prisões são apontadas como a forma mais adequada – ou talvez a menos pior – para controlar o crime e fazer justiça. Seria uma espécie de mal necessário, segundo seus defensores. Só que o crescimento massivo do aprisionamento no Brasil e no mundo tem colocado essa solução em xeque.
4ª maior população prisional do mundo em termos absolutos. O Brasil só perde para EUA (2,2 milhões), China (1,7 milhão) e Rússia (673 mil)
As prisões se parecem cada vez mais com um remédio muito forte, que combate a doença, mas que também envenena e mata o paciente. “Foi a prisão que articulou os criminosos em São Paulo e permitiu que o estado tivesse a rede criminal mais organizada do Brasil, o PCC. Não é à toa que no estado com maior número de presos a criminalidade alcançou um grau de organização como em nenhum outro”, diz a professora Camila Nunes Dias, da Universidade Federal do ABC, que estuda a facção.   

OSTENTAÇÃO
O problema não é apenas nacional. O impasse se repete ao redor do mundo, onde as gangues se fortalecem nos presídios e colocam o Estado diante de quadrilhas mais sofisticadas, que costuram parcerias, criam formas eficientes de lavar dinheiro e têm mais condições para corromper autoridades.
“Diversos gestores prisionais têm cedido autoridade parcial a grupos de internos. De Los Angeles a El Paso, nos Estados Unidos, passando por El Salvador e Brasil, extensas e lucrativas redes de traficantes estão se organizando a partir das prisões”, diz o professor Benjamin Lessing, da Universidade de Chicago, que tem feito estudos comparativos sobre o efeito do aprisionamento nos Estados Unidos e na América Latina.
Na capital de São Paulo, 78% das prisões são feitas em flagranteOs testemunhos dos policiais que fazem a prisão são a principal prova para a condenação
Nos dias de hoje, o crime é uma atividade em plena expansão no Brasil, empregando jovens propensos a apostar a vida e a liberdade em troca dos símbolos de ostentação, independência e hipermasculinidade da carreira criminal. Ao mesmo tempo, as prisões não parecem ser suficientes para estancar o problema da criminalidade. Em 2013, foram registrados no Brasil 1,18 milhão de roubos, o que representa uma taxa de 590 por 100 mil habitantes. É um número que cresceu na última década – em 2001, eram 400 por 100 mil habitantes. A taxa fica abaixo da do México e da Argentina, mas bem acima de países desenvolvidos, como Estados Unidos e Coreia do Sul, com oito roubos por 100 mil habitantes.
O mercado ilegal das drogas ainda parece mais promissor. Em 2012, 3 milhões de adultos e 478 mil adolescentes haviam usado maconha ao longo de 12 meses. No caso da cocaína, o uso é de 2 milhões de adultos e 255 mil adolescentes. O crack havia sido consumido por 800 mil pessoas.
O aprisionamento também não para de crescer. Entre 1990 e 2014, o aumento do total de presos no Brasil foi de 575%. O país passou de 90 mil para 607,7 mil presos. Tanto em termos absolutos como relativos, o Brasil é o quarto país que mais aprisiona no mundo. As instituições brasileiras ainda parecem apostar fichas excessivas nas prisões, como se funcionassem como universos paralelos capazes de eliminar o problema num passe de mágica.
Os suspeitos abordados em geral são jovens, negros e moradores da periferia. Os negros são 67% da população prisional do país; enquanto eles representam 51% da população brasileira

Rebelião e barbárie  
Ocorre que os mundos do lado de dentro e de fora estão cada vez mais imbricados. A ponte foi feita pelos celulares, que se popularizaram a partir dos anos 2000. Em 2012, ao menos 34.945 aparelhos foram apreendidos em presídios no Brasil. A raiva nas celas transpassou as grades e se disseminou pelo país, principalmente entre jovens e homens de bairros pobres, revoltados com a violência policial e com a discriminação. São sentimentos que se misturam em um caldeirão de ódio.
“Os heróis são os bandidos! Os que foram pintados como monstros são os reféns de crises humanitárias pré-fabricadas por elites sanguessugas”, escreve o rapper Eduardo, que foi líder do Facção Central, uma das mais importantes bandas de rap brasileiras, em seu livro A guerra não declarada na visão de um favelado, em que trata os representantes das elites como “Homo Money”, cuja ganância provoca injustiças e estimula a guerra.
Dentro dos presídios, como resultado da revolta, as rebeliões se espalharam por todo o território nacional, produzindo cenas de barbárie. Em dezembro de 2013, três detentos tiveram as cabeças decepadas no Presídio de Pedrinhas, relembrando algumas das cenas mais macabras protagonizadas pelo PCC em 2005, em São Paulo, quando cinco cabeças foram cortadas e uma delas usada como bola de futebol. Em agosto passado, dois presos foram decapitados em Cascavel, no Paraná, numa espécie de ritual macabro que amedronta rivais e chama a atenção da imprensa.
4 em cada 10 detentos estão nas prisões aguardando julgamento
MBA DO CRIME
Em cada uma das “cabeças vazias” confinadas e sem nada para fazer que superpovoam as prisões, há uma “oficina do diabo” pronta para funcionar. A enorme variedade de trotes telefônicos passados pelos presos, simulando sequestros, entre outras modalidades, é apenas uma mostra de como a criatividade pode ser usada em benefício do lado negro da força.
Os presos transformam pátios e celas em “coworkings” do crime, onde homens se articulam e ampliam o “networking”. A droga é a principal commodity. As prisões proporcionam novos ensinamentos e status, além do sofrimento, funcionando como uma espécie de MBA do crime, que garante upgrade no currículo.
A rede de tráfico de drogas no Brasil se expande a partir das prisões, onde o networking é feito por contatos pessoais e celulares
A comercialização de drogas é possível por causa do celular. O tráfico já é o crime que mais aprisiona no Brasil, sendo responsável por 27% dos presos. O crescimento do crack e a venda da droga em pequenas biqueiras de periferias brasileiras deslancharam principalmente depois que o PCC assumiu o atacado da mercadoria, via contatos no Paraguai e na Bolívia, em meados dos anos 2000.
Os atacadistas do crime paulista passaram a costurar parcerias que ampliaram o comércio varejista brasileiro em estados onde o crack não chegava. “O crime ajuda o crime” é um dos lemas do PCC, frase dita por Gegê do Mangue, uma das lideranças paulistas da facção grampeadas na investigação da Justiça, quando negociava com Nem, que era o comandante na Rocinha.

SUCURSAIS DO INFERNO
A trégua feita pelo crime do Rio de Janeiro e de São Paulo permitiu a entrada do crack nos morros fluminenses, depois de longo perío­do proibido. Nos estados do Norte e do Nordeste, a expansão do crack produziu novas rivalidades e conflitos entre concorrentes pelos lucrativos mercados. É o caso dos grupos Okaida e Estados Unidos, na Paraíba, e do Bonde dos 40 e do Primeiro Comando Maranhense, no Maranhão, que passaram a brigar dentro e fora das prisões, mesmo quando ambos compravam do PCC.
É nesse beco perigoso e sem saída que as instituições de segurança pública e de Justiça precisam pensar políticas públicas para lidar com o crime. Por enquanto, o Brasil segue com sua fé inabalável na expansão das prisões, mesmo quando a solução já vem sendo revista globalmente. Entre 2008 e 2014, os três países que mais prendem no mundo reduziram sua população prisional. Caiu nos EUA (8%), na China (9%) e na Rússia (24%). No Brasil, cresceu 36%.
O tráfico é o crime que mais aprisiona no país. Entre as mulheres, 63% foram presas por tráfico; entre os homens, 25% foram detidos por esse crime

“Jovens pobres, muitos deles negros, sem vínculo com facções, são capturados em flagrante para as sucursais do inferno, fazendo-os conviver com o crime organizado. O governo gasta R$ 1.500 por mês com cada preso para piorar as pessoas”, completa o antropólogo Luiz Eduardo Soares, no filme Sem pena.
A situação tende a piorar caso o projeto de emenda constitucional que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos seja aprovado. Os jovens são os bodes expiatórios da vez diante da sensação de impotência e de medo. Um dos países que mais aprisionam no mundo em um sistema ineficiente, em vez de repensar o modelo de segurança, quer dobrar a aposta naquele que já se mostra um fracasso. Ao trancafiar uma fatia cada vez maior de sua população, é como se o Brasil insistisse em colocar mais matéria-prima na fábrica de produzir ódio. O produto dessa engrenagem azeitada com adolescentes em formação, inevitavelmente, deve se voltar contra a própria sociedade.
O dilema paralisa. Se correr, o bicho pega. Se ficar, o bicho come. O problema é que as autoridades insistem em alimentar o bicho que cresce e vai nos engolir. As soluções de curto e médio prazo pensadas por especialistas passam justamente pelo desencarceramento. O que não significa desistir da punição. Penas alternativas, que podem ser financeiras ou ligadas a prestações de serviço, podem ser mais eficazes e pedagógicas, desde que bem fiscalizadas.

PENAS ALTERNATIVAS
“As penas alternativas trazem componentes de integração, possibilitam uma pena positiva para a sociedade, não retiram a pessoa do convívio e possibilitam à sociedade assumir sua parte ao ter que acolher e orientar a pessoa apenada. Tanto a pessoa como a sociedade passam por um processo que pode restaurar o convívio e a humanização de ambos”, afirma o ouvidor-geral da Defensoria Pública, Alderon Costa, que tem acompanhado penas alternativas cumpridas em albergues por moradores de rua.
Uma das políticas que avançam mais rapidamente em outros países é a que busca reservar as prisões para crimes violentos, o que exclui o tráfico de drogas. Ao contrário do ladrão, o traficante não obriga ninguém a fazer o que não quer. O comércio da maconha foi regulamentado em três estados norte-americanos – medida que reduz a violência provocada pela indústria ilegal. Também ganha espaço o debate sobre justiça restaurativa, que propõe um novo modelo em que ofensor e vítima cheguem a um acordo que repare o dano sofrido. 
O Brasil gastou R$ 4,9 bilhões nas prisões em 2013, que servem como “faculdade do crime”. Em geral, os presos saem piores do que entraram
No longo prazo, o desafio é construir autoridades com legitimidade, que representem a defesa de leis e valores também compartilhados pelos cidadãos. É o que ocorre na Suécia, que fechou quatro prisões por falta de detentos em 2013. Quanto mais uma sociedade precisa de prisões e de polícias truculentas, mais profundos são seus problemas escondidos em um canto escuro, à espera de serem resolvidos.

*Bruno Paes Manso é jornalista da Ponte Jornalis-mo e faz pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violên-cia da USP

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Sobre a dívida brasileira (interna e externa) e a crise financeira do Estado.

Sobre a dívida brasileira (interna e externa) e a crise financeira do Estado.
Abaixo o debate sobre a dívida externa brasileira e a crise financeira do Estado que o governo Dilma quer resolver pela via de um ajuste fiscal interminável.
Evento organizado por várias entidades que estão em luta contra a política do governador do RS, realizado na Faculdade de Economia da UFRGS.


quarta-feira, 2 de setembro de 2015

UCRÂNIA – A DUALIDADE DE NACIONALISMO E DESMORONAMENTO DO ESTADO- Gerd Bedszent


UCRÂNIA – A DUALIDADE DE NACIONALISMO E DESMORONAMENTO DO ESTADO- Gerd Bedszent

Texto concluído em Setembro 2014, que aborda a génese histórica da guerra civil desencadeada e assim possibilita uma interpretação mais adequada do chamado “conflito Rússia-Ucrânia” do que a usada no confronto entre os mídias ocidentais, por um lado, e partes da esquerda, por outro. (Apresentação na Revista EXIT! nº 12)



Durante os últimos meses atropelaram-se literalmente as notícias sobre os acontecimentos na Europa de Leste. O que no Outono de 2013 ainda começara na Ucrânia como pancadaria perfeitamente habitual entre diversas facções da camada superior mais ou menos criminosa desenvolveu-se em pouco tempo como uma pesada guerra de desmantelamento do Estado.
Tal desenvolvimento não constitui nada de novo – nem sequer na Europa. Já há mais de vinte anos que o desmoronamento económico da Jugoslávia desembocou em toda uma série de guerras de partilha entre os bandos nacionalistas ou abertamente criminosos que dominavam cada uma das regiões. A intervenção militar ocidental na Bósnia e no Kosovo acabou por instalar nestes territórios pseudo-estatais uma administração da pobreza repressiva – com um único ramo económico em expansão: a economia do crime.
Um cenário semelhante se apresenta actualmente na Ucrânia. Também aqui, com a cobertura de um projecto de modernização atrasada, foram comprimidas as várias partes muito diferentes do país na República Socialista Soviética da Ucrânia (1922-1991). E, também como no caso da Jugoslávia, os actores de um “regime de modernização protocapitalista” (Robert Kurz) não conseguiram resolver as desproporções em termos de economia nacional entre cada uma das partes do país. Neste caso ainda com a particularidade de o Estado ucraniano proclamado independente em 1991 ter sido já o produto do desmoronamento estatal da União Soviética.
Nas regiões fronteiriças do Leste da Ucrânia mantêm-se ainda desde o crash económico do início dos anos noventa restos da antiga indústria pesada soviética, que tiram proveito sobretudo da proximidade da Rússia. A Ucrânia continua a ser um dos principais fornecedores da indústria de armamento e da indústria espacial russas. Nas regiões fronteiriças ocidentais, que em geral só integraram Ucrânia entre 1939 e 1945, o projecto de modernização atrasada nunca passou dos começos. Estas regiões eram muito mais fortemente marcadas pela economia agrária e recaíram num rápido processo de empobrecimento com a dissolução das cooperativas agrícolas pós-soviéticas. A produção agrícola ucraniana parece de facto recuperar nos últimos anos, após o crash dos anos noventa – mas apenas nas condições de uma violenta racionalização empresarial capitalista e com a supressão maciça de força de trabalho que lhe está associada.
Do continuado declínio económico do campo e das furiosas lutas pela partilha nas cidades, entre a nomenclatura pós-soviética enriquecida e o sub-mundo do crime de facto legalizado a partir de 1991, resultou o desmoronamento crescente das instituições estatais e a simultânea ascensão das milícias da direita radical. Estas últimas assumem-se conscientemente na tradição dos grupos armados que entre 1918 e 1922 supostamente tentaram instalar um Estado independente tanto no Leste como no Oeste da Ucrânia e que na II Guerra Mundial, contra vagas promessas de independência futura, fizeram para o ocupante alemão serviços sujos nos assassínios em massa de motivação anti-semita.
A histeria que há meses atravessa os média sobre o reacendimento da guerra fria carece naturalmente de qualquer fundamento. O conflito entre a Rússia e as potências Ocidentais não tem qualquer base ideológica, não passando de uma guerra económica neo-imperialista perfeitamente normal. O antigo oficial do KGB Vladimir Putin não constitui um ressurgimento de Lenine ou de Estaline, é apenas um típico representante dos interesses da antiga camada de funcionários enriquecida na sequência do crash político da União Soviética e das consequentes orgias de privatização. O facto de Putin, contra a resistência de partes da camada oligárquica pós-soviética, ter conseguido suspender provisoriamente o desmoronamento estatal da Rússia, tornado óbvio no fim dos anos noventa, e estabilizar o Estado, naturalmente num baixo nível, atesta realmente as suas qualidades políticas. Mas a longo prazo estas não servem de muito. Pois o novo modelo económico da Rússia não se baseia num programa de modernização autónomo, mas em primeiro lugar na exportação de matérias primas para o centros de produção capitalista de mercadorias que ainda funcionam. Putin financia o orçamento de Estado em parte considerável com os lucros recebidos do conglomerado Gazprom maioritariamente detido pelo Estado. A Rússia é actualmente o maior exportador mundial de gás natural e o segundo maior exportador de petróleo; o preço de exportação do petróleo e do gás russos é várias vezes superior ao preço interno cobrado no próprio país. A Gazprom funciona assim como motor de um milagre económico temporário; a Rússia é de facto um conglomerado petrolífero com um Estado anexo.
Embora a queda galopante na pobreza da maioria da população russa tenha sido provisoriamente travada com a chegada ao poder de Putin e com a sua política de preços altos para a exportação de matérias primas, as disparidades sociais agravam-se cada vez mais. Actualmente só em Moscovo haverá mais multimilionários do que em toda a Alemanha. Uma idealização do regime de Putin como a que é feita actualmente por partes da esquerda residual é por isso mais que questionável.
Enquanto os países ocidentais se podem perfeitamente defender dos preços altos impostos pela Rússia, os Estados vizinhos empobrecidos da Europa Oriental e da Ásia Central estão mais ou menos à sua mercê. Um exemplo disso é a Ucrânia, cujos restos da economia estão altamente dependentes do gás natural russo. Se nos anos de 1990 os oligarcas ucranianos ainda faziam grandes fortunas como intermediários na negociação do gás russo barato, dez anos depois o Estado ucraniano foi obrigado a subvencionar o gás usado como combustível pela população, particularmente no Inverno.
A instabilidade política e a frequente mudança de governo nos últimos anos na Ucrânia têm a sua causa em última instância nas lutas pelo poder dos diferentes grupos de oligarcas. Uns ter-se-iam esforçado para fazer frente à imposição de preços da Rússia através da aproximação económica e política à UE, aceitando assim a entrega indefesa do resto da indústria ucraniana à superior concorrência ocidental. Outros cingem-se a aceitar como um mal menor o prosseguimento dos contactos económicos com a Rússia que vêm já dos tempos soviéticos. Dado que se trata de uma escolha entre a peste e a cólera nenhum destes agrupamentos conseguiu impor-se sustentavelmente. A população empobreceu cada vez mais, o endividamento do Estado aproximou-se ameaçadoramente da insolvência, as diferentes partes do país afastaram-se ainda mais e a direita radical fortaleceu-se, sobretudo na Ucrânia ocidental.
O Ocidente prossegue face à Ucrânia interesses perfeitamente diferentes. Para os EUA em decadência a Ucrânia foi e é uma simples peça de xadrez na sua guerra económica com a indústria petrolífera russa concorrente. A União Europeia, pelo contrário, está interessada em ficar com a Ucrânia como fornecedora de produtos agrícolas baratos. Esconde-se aqui sistematicamente que isto só pode acelerar o colapso económico da Ucrânia e o processo de desmoronamento da União Europeia que já não pode ser ignorado, como mostram as experiências com outros Estados da Europa de Leste. As negociações do regime de Janukowitsch para a conclusão de um acordo de associação com a UE acabaram por fracassar no fim de 2013, pois o governo ucraniano de facto insolvente já não estava em posição de suportar os custos da imposição do acordo e a burocracia da UE não tinha vontade de o fazer. A chamada oposição democrática suportada financeiramente pelo Ocidente ficou portanto a ver navios, aliou-se com a extrema direita e exigiu a mudança de regime. Com isto estavam pré-programados a guerra civil e o desmoronamento do Estado.
A histeria mediática perante a anexação do Crimeia pela Rússia e consequente guerra civil nas regiões fronteiriças orientais só pode ser explicada pela incapacidade de perceber o desmoronamento da Ucrânia como tal em geral. Em todo o caso não passa de puro disparate a “reunificação da terra russa” mediaticamente apoiada pela administração Putin. A anexação de toda a Ucrânia supostamente visada significaria para a Rússia em primeiro lugar um encargo financeiro, que o país de modo nenhum pode suportar sem arriscar o seu próprio colapso. A ocupação da península do Mar Negro terá sido antes a consequência de considerações práticas: a Rússia usa o fundo do Mar Negro para o transporte de gás natural para a Europa do sul e o Próximo Oriente por pipeline e aproveitou sem rodeios a ausência de um governo ucraniano funcional para ficar com a Crimeia como importante ponto estratégico de apoio à frota que garante a segurança a esta linha. Além disso será de supor que a Rússia quis aproveitar a oportunidade para se assegurar das jazidas de gás natural que se pensa existirem na costa da Crimeia.
O estado em que entretanto se encontram as instituições da Ucrânia pode ser bem avaliado pelo facto de as forças de segurança ucranianas estacionadas na Crimeia não terem efectivamente oposto quase nenhuma resistência à anexação da península do Mar Negro e de a Rússia também ter podido apropriar-se sem luta de quase toda a marinha de guerra ucraniana. Grande parte dos soldados ucranianos mudaram-se de imediato para as forças armadas russas, satisfeitos por agora finalmente poderem voltar a contar com o pagamento regular do salário. A maioria da população da Crimeia desesperadamente empobrecida – seja qual for a sua origem étnica – saudou alegremente o invasor, esperando uma rápida melhoria da sua situação. O júbilo entretanto deu lugar à desilusão. O que era de prever – afinal os habitantes da península trocaram apenas um regime oligárquico falido por outro menos falido.
O facto de, finalmente, também em duas regiões fronteiriças orientais activistas pró-russos terem tomado o poder, proclamando primeiro a independência estatal como “república popular” e depois a anexação à Rússia, foi um empreendimento tão disparatado como previsível. A Rússia não empreendeu até agora quaisquer esforços sérios para incorporar as partes desleais do país vizinho, mas exigiu uma “regionalização” da Ucrânia – ou seja, na realidade uma divisão da Ucrânia em esferas de interesses económicos. O que o Ocidente, no entanto, não quis aceitar até agora.
Verificou-se logo no início da guerra civil que a Ucrânia já não dispõe de exército nem de polícia operacionais. Um oficial ucraniano não identificado, por exemplo, explicou a um jornal alemão que terá desaparecido um regimento de tanques com equipamento moderno, porque alguém terá vendido secretamente os carros de combate a um regime árabe. Unidades de polícia recusaram aceitar ordens para entrar em acção contra os rebeldes; tropas enviadas apressadamente para a região deixaram-se desarmar por camponeses em protesto. Em diversas cidades do leste da Ucrânia exercem por vezes o poder, em vez da autoridade do Estado que já não funciona, empresas de segurança privadas em missão ao serviço de oligarcas ucranianos. Outros oligarcas financiaram “unidades de voluntários” da direita radical, criando assim um pequeno exército privado próprio.
O governo acabou por declarar sem mais diversas milícias da direita radical como “Guarda Nacional” e enviá-las para as regiões sublevadas. Isto obviamente também com segundas intenções, para manter longe das imediações da capital e sede do governo o núcleo activo dos nacionalistas que agem de modo cada vez mais irracional. E, uma vez que o aparelho de Estado em colapso já não estava em condições, os bandos de mercenários assassinos e predadores foram essencialmente armados e pagos por oligarcas próximos do governo. A consequência, previsível, foi estas unidades de Guarda Nacional passarem a agir cada vez mais fora do controle do regime. Perante a ganância de enriquecimento dos oligarcas actualmente dominantes em Kiev, que de modo nenhum foi travada pela guerra civil – uma grande parte da ajuda militar ocidental nunca chegou à frente, mas aterrou directamente no mercado negro – os radicais de direita armados já ameaçaram marchar sobre Kiev e instalar um governo militar.
Provou-se que diversos batalhões da Guarda Nacional e outras unidades de voluntários marcham descaradamente com a cruz suástica e outros símbolos fascistas e que se gabaram perante jornalistas ocidentais que o seu verdadeiro objectivo é a conquista de Moscovo. O que, perante a real relação de forças militar, só pode ser explicado como megalomania grave.
Sobre a situação nas duas “repúblicas populares” do leste da Ucrânia há poucas informações seguras. Certo é que a rebelião em Kiev, com pogroms sangrentos contra partidários do deposto presidente Janukowitsch bem como contra comunistas e outros membros de organizações de esquerda, foi apoiada – na cidade costeira de Odessa, por exemplo, uma populaça da direita radical, com a conivência da polícia, incendiou um edifício sindical e massacrou os que fugiam das chamas. Com múltiplas ameaças à vida e integridade física, as pessoas fugiram para as regiões fronteiriças orientais, onde estavam em relativa segurança até à eclosão da guerra civil aberta.
A liderança política das duas “repúblicas populares” – se assim se pode dizer – é consequentemente um tosco conglomerado de nostálgicos dos sovietes, radicais de direita russos e funcionários administrativos agindo pragmaticamente. Na constituição da “República Popular de Donetz”, por exemplo, prescreve-se tanto a manutenção dos regulamentos do Estado-providência como a pertença à Igreja Ortodoxa.
O coronel-general ucraniano Wladimir Ruban, certamente insuspeito de simpatias pró-russas, declarou por exemplo em 20 de Agosto, numa entrevista ao Ukrainskaja Prawda, que os dois lados quase não se distinguem ideologicamente entre si – um dos raros casos em que um interveniente militar mantém um entendimento claro, perante o desencadear maciço da paranoia nacionalista.
Ora, é preciso em primeiro lugar opor-se à idealização das milícias que apoiam ambas a “repúblicas populares” leste-ucranianas promovida por grande parte da esquerda residual. Por exemplo, unidades de cossacos combatendo do lado dos insurgentes adquiriram uma miserável reputação antes da eclosão da guerra civil, com pogroms contra minorias não eslavas. Se nos batalhões da guarda nacional combateram desde o início radicais de direita suecos e italianos em nome da Ucrânia, as milícias dos insurgentes receberam rápida afluência de radicais de direita russos e franceses.
A guerra civil no leste da Ucrânia não constitui – como gosta de afirmar sobretudo a imprensa russa – uma reedição da Guerra Civil de Espanha de 1936-1938 ou da guerra defensiva anti-fascista de 1941-1945, mas sim uma guerra de desmantelamento do Estado, que se exprime em lutas pela partilha entre grupos étnicos tornados inimigos. Saqueia-se e assassina-se de ambos os lados. A ordem estatal apenas rudimentar no território de ambas as “repúblicas populares” constituiu a base ideal para toda uma onda de economia de roubo: saque, extorsão, sequestro e assassínio.
O brutal procedimento da guarda nacional e dos restos do exército nacional que a apoiavam levou de início a uma limpeza étnica da população de língua russa no leste da Ucrânia. Às cidades controladas pelos insurgentes foi cortado com tiros certeiros o abastecimento de energia e de água potável pelas tropas do governo que as cercavam, que depois as enfraqueceram com fogo de artilharia pesada. Nas regiões recuperadas pelos militares de Kiev quase não havia moradores. Centenas de milhares de ucranianos fugiram para o país vizinho – nas regiões fronteiriças russas teve de ser declarado o estado de emergência. Após o colapso da empresa ferroviária houve colunas de refugiados em fuga para o leste, mesmo bombardeados pela força aérea ucraniana.
A guerra civil no país vizinho atingiu directamente interesses russos pelo menos desde Agosto de 2014. É verdade que, felizmente, não se encontra nenhum dos 17 reactores nucleares ucranianos (não contando com os quatro destroços parados em Chernobyl) nas regiões em disputa. A gerência da grande empresa química ucraniana Styrol, no entanto, enviou então um desesperado pedido de ajuda à liderança militar de Kiev, para parar imediatamente o bombardeamento do parque da empresa – uma explosão das suas instalações ameaçaria uma catástrofe ambiental em todo o país. Este incidente levou possivelmente o governo russo a apoiar agora realmente as actividades de ambas as “repúblicas populares”, inicialmente apenas toleradas. Com a consequente modificação rápida da relação de forças. As tropas de Kiev sofreram toda uma série de pesadas derrotas – vários batalhões da guarda nacional foram cercados e aniquilados. No exército regular constituído em grande parte por via do serviço militar obrigatório aumentaram os sinais de desintegração. Unidades inteiras desertaram da frente ou fugiram para a zona russa e pediram asilo político. As tropas em recuo não poucas vezes foram bombardeadas por unidades de voluntários da direita radical e obrigadas a inverter a marcha.
As tentativas de vencer a crise limitaram-se da parte do governo de Kiev a gritos de socorro cada vez mais desesperados em direcção à Europa Ocidental. Que o Ocidente não quer e também não está em posição de segurar os restos em colapso do projecto de modernização da Europa de leste é coisa que obviamente não entra na cabeça dos oligarcas ucranianos. Só assim se pode explicar a reacção completamente irracional do ex-banqueiro e actual primeiro-ministro Jazenjuk: quando a derrota militar já era óbvia e se apertava o cerco das milícias russas em torno do resto das tropas governamentais detidas na cidade de Mariupol, este anunciou que a Ucrânia se separaria do país vizinho oriental por meio da construção de um “muro”. Uma notícia que foi recebida nas redacções noticiosas ocidentais com um abanar da cabeça, mas depois foi pouco divulgada. Os factos incontestáveis de que as referidas regiões fronteiriças já não estão sob controle do governo e que além disso o Estado em bancarrota efectiva nunca conseguiria e jamais com os próprios meios angariar os recursos financeiros para a construção de uma fortificação de mais de 2.000 quilómetros, tais factos não foram comentados. E muito menos o facto de que o isolamento económico da Rússia seria o fim para as regiões fronteiriças já agora amplamente arruinadas.
Não se sabe quantas vidas humanas custou até agora a guerra civil no leste da Ucrânia. O último número conhecido de 2.000 mortos deve ser considerado seguramente muito baixo. Aqui não será preciso acentuar que com o actual calar das armas, em todo o caso muito interrompido, entre o resto das tropas de Kiev e as milícias das duas “repúblicas populares” não consegue modificar no mínimo o desastre da Ucrânia. Os estragos maciços, justamente no leste ainda de algum modo economicamente estável, deverão acelerar uma maior desindustrialização do país já empobrecido. Dificilmente se pode imaginar que os oligarcas ucranianos estejam inclinados para pôr de novo em movimento as instalações produtivas destruídas com o dinheiro que roubaram. E muito menos que alguma empresa ocidental efectue investimentos significativos numa região instável e dilacerada pela guerra civil.
Uma ironia da história é que os Estados e instituições ocidentais durante a guerra civil se prestaram a apoiar o regime de Poroschenko por eles instalado com créditos de milhares de milhões – os mesmos créditos que antes tinham recusado ao regime de Janukowitsch. Mas estes dinheiros dificilmente poderão contribuir para uma estabilização sustentável da Ucrânia; eles devem ser transferidos imediatamente para o serviço da dívida ou para os buracos do orçamento abertos com a guerra civil. O que o Ocidente afinal promove no que respeita à Ucrânia é o saque dos restos do projecto de modernização falhado. A promoção da infraestrutura necessária para este saque organizado pode ainda integrar temporariamente uma minoria das pessoas aí residentes, mas nunca a maioria da população. Por isso é apenas uma questão de tempo até um novo colapso da Ucrânia.
O governo de Kiev só conseguiu manter-se até agora as regiões por ele controladas graças a uma furiosa política de cortes sociais, reduções de salários, supressão de postos de trabalho nos serviços públicos e pilhagem fiscal da própria população em geral. A resistência contra isso terá de se mover em estreitos limites, já que à sombra da guerra civil muitas modificações legislativas foram despachadas expeditamente: a Ucrânia tem actualmente uma das legislações mais repressivas da Europa; a polícia, por exemplo, pode prender arbitrariamente qualquer pessoa suspeita até trinta dias sem decisão judicial.
Além disso, a queda do regime de Janukowitsch desencadeou toda uma onda de lutas de distribuição criminosas. Sob a pressão de bandos armados, que na maioria das cidades exercem de facto o poder na sequência da dissolução progressiva da polícia, funcionários da justiça formalmente agindo ainda em nome do Estado de direito legitimam actos de puro roubo. Muitos oligarcas, que na distribuição dos lugares de governo obtiveram demasiado pouco, conseguiram, apoiados nas milícias por eles financiadas, construir um aparelho de poder em regiões afastadas e agem cada vez mais fora do controle do governo central.
O fornecimento de gás natural da Rússia ao vizinho ocidental foi interrompido porque o governo ucraniano se recusou até agora a pagar as quantias exigidas de milhares de milhões de dívidas antigas. Os distribuidores de energia ocidentais, que rapidamente procuraram substitutos, continuam em pré-pagamento, dada a situação económica do seu parceiro comercial. A população ucraniana deverá agora enfrentar um Inverno muito frio.
É preocupante a retórica belicista desabrida dos média ocidentais nos últimos meses e não só. Estes durante muito tempo negaram insistentemente a existência de bandos nacionalistas armados e abertamente anti-semitas na Ucrânia, classificando essa informação como mentiras da propaganda russa, ou então tentaram apresentá-los como um mal necessário. O colapso económico, que alastra também nos centros capitalistas, produz obviamente o renascimento do pensamento de direita radical, indo até à aceitação do anti-semitismo aberto.
Ora, como irá evoluir o Estado europeu oriental que se está a desfazer? Definitivamente que uma reedição da ditadura fascista clássica, receada por uma parte da esquerda marxista tradicional, não poderá ocorrer. A “formação coerciva fordista do nacional-socialismo” (Robert Kurz), como via especial de modernização atrasada, está ligada a uma época histórica que pertence definitivamente ao passado. Por outro lado, a evidência com que o mercado está a ser declarado o único deus salvador e simultaneamente os “seres humanos já não vendáveis” (Robert Kurz) estão a ser entregues ao desespero de uma administração da pobreza duradoura constitui o terreno de cultivo apropriado em que florescem e prosperam o racismo e o nacionalismo. O que se vai esgotando actualmente na Ucrânia é, portanto, um “nacionalismo do desespero social” (Robert Kurz). Um nacionalismo de desespero que age pouco menos barbaramente do que o seu modelo histórico. A “autarquia económica” da Ucrânia, promovida pelas associações fascistas armadas, aponta afinal para a instalação de uma administração da pobreza particularmente repressiva, associada a uma economia de pilhagem etnicamente motivada, que já é uma realidade em muitas partes do planeta. É provável que os confrontos armados no leste da Ucrânia, vistos num prazo alargado, se revelem apenas como o prelúdio de toda uma série de guerras civis, e acabem por desembocar na completa destruição das estruturas estatais e na queda na barbárie de outras partes da Europa de leste.
A ruína da Ucrânia é uma horrível advertência, um olhar sobre um futuro que a curto ou longo prazo se aproxima também dos Estados europeus actualmente ainda em funcionamento.
BIBLIOGRAFIA
Robert Kurz: Dir Krise, die aus dem Ostem kam [A crise que veio do leste] in: Helmut Thielen (Hg.) Der grieg der Köpfe. Vom Golfkrieg zur neuen Weltordnung [A guerra das cabeças. Da guerra do golfo à nova ordem mundial], Horlemann, 1991
Robert Kurz: Die Demokratie frisst ihre Kinder [A democracia devora os seus filhos] in: Gruppe Krisis (Hg.) Rosemaries Babies. Die Demokratie und ihre Rechtsradikalen [Rosemaries babies. A democracia e os seus radicais de direita], Horlemann, 1993
Robert Kurz: Weltordnungskrieg. Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung, Horlemann, 2003. Tradução portuguesa parcial: A Guerra de Ordenamento Mundial. O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização http://obeco.no.sapo.pt/livro_guerra_ordenamento.htm

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