O Brasil insiste em depositar uma parcela
cada vez maior de sua população em prisões dignas da Idade Média. Mas o
encarceramento em massa no país não vem estancando as taxas de
criminalidade, pelo contrário. É ali que o crime se articula.
Punir o criminoso em defesa da
sociedade e do bem comum. É para isso que as prisões são feitas, com a
civilização dando um passo adiante em relação às punições via tortura e
morte dos tempos medievais. Mas basta olhar as celas superlotadas de
algum centro de detenção provisória de São Paulo, como a da foto ao
lado, para perceber que as prisões continuam dignas da idade das trevas e
podem produzir efeitos contrários ao que delas se espera.
Em maio, para conviver em um espaço feito para 12 pessoas
na Vila Independência, 54 detentos precisavam se virar para dormir,
compartilhar o mesmo banheiro e guardar seus pertences. A solução veio
dos próprios presos, que montaram uma intrincada estrutura semelhante a
uma teia de aranha, com redes penduradas por todos os lados,
aproveitando o vazio na parte superior da cela.
Existem 607.731 presos no Brasil para um total de 376.669 vagas distribuídas em 1.424 unidades prisionais, o que significa 161% mais presos do que vagas
Funcionários e fiscais da sociedade civil
que conhecem o CDP falam sobre o resultado, que se repete em outras
unidades: lideranças prisionais, muitas delas ainda ligadas ao crime
organizado, se fortalecem porque conseguem estabelecer uma ordem e
normas de convívio em meio ao caos. Ao mesmo tempo, as autoridades
penitenciárias se fragilizam ao serem associadas ao descaso e a
violações das leis.
“Coloque alguém 24 horas por dia durante anos numa cela
amontoada. O presídio é caro e vai profissionalizar o cara para o crime.
O sujeito lá dentro fica revoltado e alijado física e espiritualmente.
Quanto mais ele ficar preso, mais medo as pessoas vão ter dele”, diz o
padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária,
no documentário Sem pena, de Eugenio Puppo, sobre o sistema carcerário no Brasil.
Há séculos as prisões são apontadas como a forma mais
adequada – ou talvez a menos pior – para controlar o crime e fazer
justiça. Seria uma espécie de mal necessário, segundo seus defensores.
Só que o crescimento massivo do aprisionamento no Brasil e no mundo tem
colocado essa solução em xeque.
4ª maior população prisional do mundo em termos absolutos. O Brasil só perde para EUA (2,2 milhões), China (1,7 milhão) e Rússia (673 mil)
As prisões se parecem cada vez mais com um remédio muito
forte, que combate a doença, mas que também envenena e mata o paciente.
“Foi a prisão que articulou os criminosos em São Paulo e permitiu que o
estado tivesse a rede criminal mais organizada do Brasil, o PCC. Não é à
toa que no estado com maior número de presos a criminalidade alcançou
um grau de organização como em nenhum outro”, diz a professora Camila
Nunes Dias, da Universidade Federal do ABC, que estuda a facção.
OSTENTAÇÃO
O problema não é apenas nacional. O impasse se repete ao
redor do mundo, onde as gangues se fortalecem nos presídios e colocam o
Estado diante de quadrilhas mais sofisticadas, que costuram parcerias,
criam formas eficientes de lavar dinheiro e têm mais condições para
corromper autoridades.
“Diversos gestores prisionais têm cedido
autoridade parcial a grupos de internos. De Los Angeles a El Paso, nos
Estados Unidos, passando por El Salvador e Brasil, extensas e lucrativas
redes de traficantes estão se organizando a partir das prisões”, diz o
professor Benjamin Lessing, da Universidade de Chicago, que tem feito
estudos comparativos sobre o efeito do aprisionamento nos Estados Unidos
e na América Latina.
Na capital de São Paulo, 78% das prisões são feitas em flagrante. Os testemunhos dos policiais que fazem a prisão são a principal prova para a condenação
Nos dias de hoje, o crime é uma atividade em plena
expansão no Brasil, empregando jovens propensos a apostar a vida e a
liberdade em troca dos símbolos de ostentação, independência e
hipermasculinidade da carreira criminal. Ao mesmo tempo, as prisões não
parecem ser suficientes para estancar o problema da criminalidade. Em
2013, foram registrados no Brasil 1,18 milhão de roubos, o que
representa uma taxa de 590 por 100 mil habitantes. É um número que
cresceu na última década – em 2001, eram 400 por 100 mil habitantes. A
taxa fica abaixo da do México e da Argentina, mas bem acima de países
desenvolvidos, como Estados Unidos e Coreia do Sul, com oito roubos por
100 mil habitantes.
O mercado ilegal das drogas ainda parece mais promissor.
Em 2012, 3 milhões de adultos e 478 mil adolescentes haviam usado
maconha ao longo de 12 meses. No caso da cocaína, o uso é de 2 milhões
de adultos e 255 mil adolescentes. O crack havia sido consumido por 800
mil pessoas.
O aprisionamento também não para de crescer. Entre 1990 e
2014, o aumento do total de presos no Brasil foi de 575%. O país passou
de 90 mil para 607,7 mil presos. Tanto em termos absolutos como
relativos, o Brasil é o quarto país que mais aprisiona no mundo. As
instituições brasileiras ainda parecem apostar fichas excessivas nas
prisões, como se funcionassem como universos paralelos capazes de
eliminar o problema num passe de mágica.
Os suspeitos abordados em geral são jovens, negros e moradores da periferia. Os negros são 67% da população prisional do país; enquanto eles representam 51% da população brasileira
Rebelião e barbárie
Ocorre que os mundos do lado de dentro e de fora estão
cada vez mais imbricados. A ponte foi feita pelos celulares, que se
popularizaram a partir dos anos 2000. Em 2012, ao menos 34.945 aparelhos
foram apreendidos em presídios no Brasil. A raiva nas celas transpassou
as grades e se disseminou pelo país, principalmente entre jovens e
homens de bairros pobres, revoltados com a violência policial e com a
discriminação. São sentimentos que se misturam em um caldeirão de ódio.
“Os heróis são os bandidos! Os que foram pintados como
monstros são os reféns de crises humanitárias pré-fabricadas por elites
sanguessugas”, escreve o rapper Eduardo, que foi líder do Facção
Central, uma das mais importantes bandas de rap brasileiras, em seu
livro A guerra não declarada na visão de um favelado, em que trata os representantes das elites como “Homo Money”, cuja ganância provoca injustiças e estimula a guerra.
Dentro dos presídios, como resultado da revolta, as
rebeliões se espalharam por todo o território nacional, produzindo cenas
de barbárie. Em dezembro de 2013, três detentos tiveram as cabeças
decepadas no Presídio de Pedrinhas, relembrando algumas das cenas mais
macabras protagonizadas pelo PCC em 2005, em São Paulo, quando cinco
cabeças foram cortadas e uma delas usada como bola de futebol. Em agosto
passado, dois presos foram decapitados em Cascavel, no Paraná, numa
espécie de ritual macabro que amedronta rivais e chama a atenção da
imprensa.
4 em cada 10 detentos estão nas prisões aguardando julgamento
MBA DO CRIME
Em cada uma das “cabeças vazias” confinadas e sem nada
para fazer que superpovoam as prisões, há uma “oficina do diabo” pronta
para funcionar. A enorme variedade de trotes telefônicos passados pelos
presos, simulando sequestros, entre outras modalidades, é apenas uma
mostra de como a criatividade pode ser usada em benefício do lado negro
da força.
Os presos transformam pátios e celas em
“coworkings” do crime, onde homens se articulam e ampliam o
“networking”. A droga é a principal commodity. As prisões proporcionam
novos ensinamentos e status, além do sofrimento, funcionando como uma
espécie de MBA do crime, que garante upgrade no currículo.
A rede de tráfico de drogas no Brasil se expande a partir das prisões, onde o networking é feito por contatos pessoais e celulares
A comercialização de drogas é possível por causa do
celular. O tráfico já é o crime que mais aprisiona no Brasil, sendo
responsável por 27% dos presos. O crescimento do crack e a venda da
droga em pequenas biqueiras de periferias brasileiras deslancharam
principalmente depois que o PCC assumiu o atacado da mercadoria, via
contatos no Paraguai e na Bolívia, em meados dos anos 2000.
Os atacadistas do crime paulista passaram a costurar
parcerias que ampliaram o comércio varejista brasileiro em estados onde o
crack não chegava. “O crime ajuda o crime” é um dos lemas do PCC, frase
dita por Gegê do Mangue, uma das lideranças paulistas da facção
grampeadas na investigação da Justiça, quando negociava com Nem, que era
o comandante na Rocinha.
SUCURSAIS DO INFERNO
A trégua feita pelo crime do Rio de Janeiro e de São Paulo
permitiu a entrada do crack nos morros fluminenses, depois de longo
período proibido. Nos estados do Norte e do Nordeste, a expansão do
crack produziu novas rivalidades e conflitos entre concorrentes pelos
lucrativos mercados. É o caso dos grupos Okaida e Estados Unidos, na
Paraíba, e do Bonde dos 40 e do Primeiro Comando Maranhense, no
Maranhão, que passaram a brigar dentro e fora das prisões, mesmo quando
ambos compravam do PCC.
É nesse beco perigoso e sem saída que as
instituições de segurança pública e de Justiça precisam pensar políticas
públicas para lidar com o crime. Por enquanto, o Brasil segue com sua
fé inabalável na expansão das prisões, mesmo quando a solução já vem
sendo revista globalmente. Entre 2008 e 2014, os três países que mais
prendem no mundo reduziram sua população prisional. Caiu nos EUA (8%),
na China (9%) e na Rússia (24%). No Brasil, cresceu 36%.
O tráfico é o crime que mais aprisiona no país. Entre as mulheres, 63% foram presas por tráfico; entre os homens, 25% foram detidos por esse crime
“Jovens pobres, muitos deles negros, sem
vínculo com facções, são capturados em flagrante para as sucursais do
inferno, fazendo-os conviver com o crime organizado. O governo gasta R$
1.500 por mês com cada preso para piorar as pessoas”, completa o
antropólogo Luiz Eduardo Soares, no filme Sem pena.
A situação tende a piorar caso o projeto de emenda
constitucional que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos seja
aprovado. Os jovens são os bodes expiatórios da vez diante da sensação
de impotência e de medo. Um dos países que mais aprisionam no mundo em
um sistema ineficiente, em vez de repensar o modelo de segurança, quer
dobrar a aposta naquele que já se mostra um fracasso. Ao trancafiar uma
fatia cada vez maior de sua população, é como se o Brasil insistisse em
colocar mais matéria-prima na fábrica de produzir ódio. O produto dessa
engrenagem azeitada com adolescentes em formação, inevitavelmente, deve
se voltar contra a própria sociedade.
O dilema paralisa. Se correr, o bicho
pega. Se ficar, o bicho come. O problema é que as autoridades insistem
em alimentar o bicho que cresce e vai nos engolir. As soluções de curto e
médio prazo pensadas por especialistas passam justamente pelo
desencarceramento. O que não significa desistir da punição. Penas
alternativas, que podem ser financeiras ou ligadas a prestações de
serviço, podem ser mais eficazes e pedagógicas, desde que bem
fiscalizadas.
PENAS ALTERNATIVAS
“As penas alternativas trazem componentes de integração,
possibilitam uma pena positiva para a sociedade, não retiram a pessoa do
convívio e possibilitam à sociedade assumir sua parte ao ter que
acolher e orientar a pessoa apenada. Tanto a pessoa como a sociedade
passam por um processo que pode restaurar o convívio e a humanização de
ambos”, afirma o ouvidor-geral da Defensoria Pública, Alderon Costa, que
tem acompanhado penas alternativas cumpridas em albergues por moradores
de rua.
Uma das políticas que avançam mais rapidamente em outros
países é a que busca reservar as prisões para crimes violentos, o que
exclui o tráfico de drogas. Ao contrário do ladrão, o traficante não
obriga ninguém a fazer o que não quer. O comércio da maconha foi
regulamentado em três estados norte-americanos – medida que reduz a
violência provocada pela indústria ilegal. Também ganha espaço o debate
sobre justiça restaurativa, que propõe um novo modelo em que ofensor e
vítima cheguem a um acordo que repare o dano sofrido.
O Brasil gastou R$ 4,9 bilhões nas prisões em 2013, que servem como “faculdade do crime”. Em geral, os presos saem piores do que entraram
No longo prazo, o desafio é construir autoridades com
legitimidade, que representem a defesa de leis e valores também
compartilhados pelos cidadãos. É o que ocorre na Suécia, que fechou
quatro prisões por falta de detentos em 2013. Quanto mais uma sociedade
precisa de prisões e de polícias truculentas, mais profundos são seus
problemas escondidos em um canto escuro, à espera de serem resolvidos.
*Bruno Paes Manso é jornalista da Ponte Jornalis-mo e faz pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violên-cia da USP
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