quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A humanidade se dilui no shopping


Consumismo, individualismo, imediatismo, exibicionismo parecem ser as molas mestras de um enorme apassivamento social, banhado em satisfação compradora.
Há duas vertentes críticas para pensar as transformações culturais e os valores imperantes nas últimas décadas, e elas são complementares. A primeira vertente aborda o aspecto profundo – e, portanto, mais imediatamente incômodo e gritante – que foi a imposição de extensos processos de expropriação (terra, direitos sociais, direitos trabalhistas, sementes, etc.), acoplada a uma gigantesca concentração de riqueza em todo o mundo (e o Brasil não foi exceção, com seus muitos milionários). As privatizações dos serviços públicos foram acompanhadas pela expansão de empresas privadas de saúde, de educação, previdência e outras, além da generalização de formas de contratação de trabalhadores com escasso futuro. As enormes demissões dos anos 90 intimidaram os que mantêm seus empregos. Assim como os demais trabalhadores, os temporários, bolsistas, precarizados de múltiplas formas, terceirizados (que sabem que seus contratos assinados em carteira não embutem carreiras), PJs, etc., contam com escassa segurança para o futuro.
Para o grande capital, em ritmo alucinado, trata-se de capturar o mais rápido possível as exacerbadas (e longamente contidas) necessidades de extensas parcelas da população, e a massiva propaganda midiática é sua arma ideológica.
Os vínculos mais ou menos precários de trabalho e vida não impedem o acesso a crediários e empréstimos a cada dia mais imediatos e fáceis. Precisamos comprar o máximo o mais rápido possível, antes que ocorra a próxima reviravolta ou a demissão. Juntam-se duas pontas do drama: os que precisam de muitas coisas mas sabem de suas limitações encontram os que precisam vender muito, em escala crescente, e de qualquer forma. Instala-se uma espiral na qual os valores humanos esfumam-se nos preços, nas reluzentes prateleiras, nos aparelhos tornados infernalmente necessários mas descartáveis. Comprar se torna urgente, angustiante, fictício, estimulante e anestésico. Urgente, pois precisamos suprir necessidades reais, em geral fora de alcance do bolso. Angustiante, uma vez que a exacerbação da oferta e das propagandas (atingindo principalmente as crianças) é impossível de ser saciada. Comprar se torna solução fictícia porém estimulante: a impotência frente aos problemas efetivos parece diluir-se na compra de substitutivos (em lugar da saúde, o tranquilizante; em lugar do alimento, a comida envenenada; no lugar do encontro entre pessoas, as vitrines; no lugar da beleza, a contrafação química ou cirúrgica). Converte-se no pior anestésico, pois a compra inútil aplaca a tensão mas repõe e aprofunda a espiral.
Se esfumaça também a democracia, realizando as piores e mais cínicas antecipações dos liberais, para os quais ela se reduz a um mercado eleitoral, onde se vendem produtos votáveis. Entre uma e outra eleição, segue a gestão dos grandes interesses monopolizadores. As aspirações de transformação social parecem ajustar-se ao cenário conformista, atuando nas brechas de pequenos possíveis.
Consumismo, individualismo, imediatismo, exibicionismo parecem ser as molas mestras de um enorme apassivamento social, banhado em satisfação compradora. A humanidade se dilui no shopping. A dominação parece perfeita. O capital parece ter obturado os poros da história, vedando-a para outros futuros. Os mais altos valores, se não estão à venda, ficaram fora de moda.
Dessa desolação se descortina a segunda vertente, a que procura pescar dos elementos objetivos e subjetivos apresentados acima o que é contradição, movimento, processo e, portanto, possibilidade. O rebaixamento das expectativas sociais ocorreu no compasso da mais impactante socialização do processo produtivo já ocorrida na história, onde o menor objeto disposto na prateleira do shopping solicitou trabalho de milhares de seres sociais, dispersos no planeta mas integrados sob a coordenação milimétrica, difusa porém tirânica, de proprietários de enormes capitais, que em proporção gigantesca precisam valorizá-lo.
Valores solidários e reivindicações igualitárias e não desapareceram, ao contrário: estão contidos por massas crescentes de valor precisando valorizar-se. As aspirações emancipatórias perduram. Para que continue agindo a contenção anestésica e aparente do consumismo, submerso até o pescoço em sofrimento e dívidas, tal como um dique prestes a ruir, é preciso abrir vias de escape. Responsabilidades sociais empresariais, empreendedorismos, terceiras vias, capitalismo verde, rehumanizações impossíveis do capitalismo são requentadas às pressas, de maneira a tentar converter a energia transbordante de humanidade que quer mais e além do shopping, mais e além do planeta devastado e da vida sem sentido. Constituem-se novas modalidades de empurrar para a frente a valorização, aprofundando as dívidas, procurando converter inquietações em adequação passiva. O termo conversão é importante: é porque existem lutas a irromper com teores para além do capital, que as diferentes burguesias precisam convertê-las em filetes contidos, redirecionados para encher ainda mais a escandalosa represa do capital a valorizar-se.
Por essa mesma razão, não hesitam sequer a utilizar as expressões das lutas populares (a solidariedade, a participação, a igualdade), cuidadosamente esvaziadas do conteúdo original, a substituir por mercantil-filantropia e por pobretologias que ocultam cuidadosamente as formas de produção da pobreza e da desigualdade. Para essa operação, contaram com uma esquerda que, formada na luta de classes e ágil na retórica, abandonou seu campo original e se oferece como a melhor qualificada para essa conversão.
Os valores não desapareceram sob os grotões ou nas grandes cidades. É por existirem que a conversão é necessária. No entanto, esse é um jogo perigoso. O reservatório transbordante de capitais e de energias reconvertidas não pode assegurar essa forma de política hoje hegemônica. A crise ronda. Pode retomar formas truculentas, como a ascensão de uma velha direita na Europa; pode se defrontar com o recrudescimento das verdadeiras lutas de classes, agora dispostas a destruir esse dique.

Virgínia Fontes é historiadora e professora da pós-graduação de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio-Fiocruz. 
 
Fonte:MCP 

terça-feira, 25 de setembro de 2012

ESTUDO MOSTRA OS MALES CAUSADOS POR TRANSGÊNICOS E AGROTÓXICOS.


Pela primeira vez na história foi realizado um estudo completo e de longo prazo para avaliar o efeito que um transgênico e um agrotóxico podem provocar sobre a saúde pública. Os resultados são alarmantes.
O transgênico testado foi o milho NK603, tolerante à aplicação do herbicida Roundup, o mais utilizado no planeta – ambos de propriedade da Monsanto. O milho em questão foi autorizado no Brasil em 2008 e está amplamente disseminado nas lavouras e alimentos industrializados, e o Roundup é também largamente utilizado em lavouras brasileiras, sobretudo as transgênicas.
O estudo foi realizado ao longo de 2 anos com 200 ratos de laboratório, nos quais foram avaliados mais de 100 parâmetros. Eles foram alimentados de três maneiras distintas: apenas com milho NK603, com milho NK603 tratado com Roundup e com milho não modificado geneticamente tratado com Roundup. As doses de milho transgênico (a partir de 11%) e de glifosato (0,1 ppb na água) utilizadas na dieta dos animais foram equivalentes àquelas a que está exposta a população norte-americana em sua alimentação cotidiana.
Os resultados revelam uma mortalidade mais alta e frequente quando se consome esses dois produtos, com efeitos hormonais não lineares e relacionados ao sexo. As fêmeas desenvolveram numerosos e significantes tumores mamários, além de problemas hipofisários e renais. Os machos morreram, em sua maioria, de graves deficiências crônicas hepato-renais.
O estudo, realizado pela equipe do professor Gilles-Eric Séralini, da Universidade de Caen, na França, foi publicado ontem (19/09/2012) em uma das mais importantes revistas científicas internacionais de toxicologia alimentar, a Food and Chemical Toxicology.
Segundo reportagem da AFP, Séralini afirmou que "O primeiro rato macho alimentado com OGM morreu um ano antes do rato indicador (que não se alimentou com OGM), enquanto a primeira fêmea, oito meses antes. No 17º mês foram observados cinco vezes mais machos mortos alimentados com 11% de milho (OGM)", explica o cientista. Os tumores aparecem nos machos até 600 dias antes de surgirem nos ratos indicadores (na pele e nos rins). No caso das fêmeas (tumores nas glândulas mamárias), aparecem, em média, 94 dias antes naquelas alimentadas com transgênicos.
De acordo com Séralini, os efeitos do milho NK603 só haviam sido analisados até agora em períodos de até três meses. No Brasil, a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) autoriza o plantio, a comercialização e o consumo de produtos transgênicos com base em estudos de curto prazo, apresentados pelas próprias empresas demandantes do registro.
O pesquisador informou ainda que esta é a primeira vez que o herbicida Roundup foi analisado em longo prazo. Até agora, somente seu princípio ativo (sem seus coadjuvantes) havia sido analisado durante mais de seis meses.
Um dado importante sobre esse estudo é que os pesquisadores trabalharam quase que na clandestinidade. Temendo a reação das empresas multinacionais sementeiras, suas mensagens eram criptografadas e não se falava ao telefone sobre o assunto. As sementes de milho, que são patenteadas, foram adquiridas através de uma escola agrícola canadense, plantadas, e o milho colhido foi então “importado” pelo porto francês de Le Havre para a fabricação dos croquetes que seriam servidos aos ratos.
Esse estudo científico revela importantes indícios sobre os riscos que os alimentos transgênicos representam para a saúde da população e revela, de forma chocante, a ineficácia das agências sanitárias e de biossegurança em várias partes do mundo responsáveis pela avaliação de riscos e autorização desses produtos.


(*) Zolmir Frizzo: Engenheiro Agrônomo, Extensionista da Epagri em Descanso. Membro do Grupo Epagriano de Agroecologia e da Coordenação Estadual do Sindaspi
Contato: Zolmir@epagri.sc.gov.br ou pelo Fone: 36230192 

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Ricardo Antunes no Roda Viva


O professor Ricardo Antunes, um dos mais destacados sociólogos marxistas da atualidade, cujos estudos se direcionam para o tema trabalho e suas novas formas de relação dentro do mundo capitalista contemporâneo.
Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador da coleção Mundo do Trabalho, da Boitempo Editorial. É autor dos livros O continente do labor, Os sentidos do trabalho e O caracol e sua concha, e coorganizador de Infoproletários, Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, Neoliberalismo, trabalho e sindicatos e Lukács: um Galileu no século XX.
Apresentado pelo jornalista Mario Sergio Conti, o Roda Viva contou com os seguintes entrevistadores convidados: Liliana Segnini (professora titular em Sociologia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas); Leny Sato (professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo); Eleonora de Lucena (repórter especial do jornal Folha de S. Paulo); Mônica Manir (editora do Caderno Aliás do jornal O Estado de S. Paulo); Alexandre Teixeira (jornalista e escritor). O Roda Viva também conta com a participação do cartunista Paulo Caruso.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

DEZ ANOS DA MORTE DE JOSÉ GOMES O ETERNO BISPO DOS SEM TERRA E DOS INDIOS BRASILEIROS.

 

HOJE 19 DE SETEMBRO, DEZ ANOS DA MORTE DE JOSÉ GOMES O ETERNO BISPO DOS SEM TERRA E DOS INDIOS BRASILEIROS.

AO DOM JOSÉ GOMES

Passou por nossa escola de formação política e moral, um senhor já de idade, para lecionar uma matéria, muito séria: o que é a dignidade.
Fal

ou pouco, como se estivesse em uma sala de espera, aguardando para ver o que o “povo”, (como costumava dizer), ia fazer ao ter sua terra.
Curiosidade de satisfação. Festejava a cada ocupação esfregando uma mão na outra várias vezes, depois, passava os dias e os meses, acompanhando aquela travessura. Com seu olhar cheio de ternura seguia os passos dos pobres camponeses.
Quem disse que o silêncio não educa? Quem disse que a humildade não tem brilho? E que, um grande homem só se faz se plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho?
Este fez do silêncio a abnegação, dando voz ao tempo. Ensinou o seu povo a caminhar e abrir fronteiras. A descobrir o que as leis escondiam nas entrelinhas. A reagir com as forças que se tinha, para tirar da indigência índios, colonos e sem terra, e no silêncio comandou todas as guerras, sem perder nenhuma, porque não temia força alguma.
Sua humildade de bispo sem batina, conduzia-o por debaixo da neblina, com a grande inteligência que o nutria. O vimos ser repreendido um certo dia, de que “estava enfraquecendo a hierarquia, por não colocar o Dom na frente do José”, respondeu que o importante era sua fé e não os títulos que a estrutura oferecia. Mostrou a nós que a velha rebeldia, não precisa de barulho para dizer que existe, ela se manifesta em quem resiste e proclama sua força na utopia.
Mais do que plantar uma árvore adotou as florestas, ensinando que se devia preservá-las. Livros, não escreveu, aprendeu a teorizar nas próprias falas, nos sermões. Como filhos adotou as multidões servindo-as como um velho guerreiro. Não era apenas bispo, mas um grande companheiro que compreendia todas as inovações.
Esteve com os Sem Terra desde a Encruzilhada Natalino, recolhendo objetos e alimentos, dando-lhes o destino, que a ditadura militar não esperava. Se o povo estava cercado e sem voz, dizia: “Então é agora que precisa de nós” e a reação sem medo incentivava.
Por ser consciente e atuante, formou centenas, milhares de militantes que ainda carregam as marcas de suas mãos. Muitas vezes com dor no coração, olhava-nos em silêncio para se despedir, e dizia: “É isto mesmo, vocês são jovens devem ir, levar o que aprenderam por aqui”. E como uma bola a se esvair, cedia parte de seus lutadores. Sabia, que seriam construtores, da mesma causa que o fazia seguir.
Assim é a história, companheiros e companheiras, os mestres passam a escola permanece. Não se perdem as idéias quando o ser desaparece, se organizada a multidão seguir em frente. Este é apenas um dos jeitos, que na marca de nossos rastros a serem feitos, Dom José sempre estará presente.
Portanto, lutadoras e lutadores, se hoje estamos preocupados em defender valores podem crer que não é por nada. É apenas a reprodução, das impressões digitais de quem conosco passou duras jornadas. Mantenhamos sem medo as diretrizes, pois com certeza, uma árvore que tem estas raízes, jamais pode pensar que será arrancada.
 Por Ademar Bogo que como outros muitos lutadores, foi educado na escola de Dom José Gomes - o Bispo Vermelho do Oeste catarinense
Video: Leonardo Santos

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

SALVE GERAL !!


Gostariamos de convidar a todos(@S) para um evento do MH2C Movimento Hip - Hop Chapecó - Todos os camaradas estão convidados, tragam sua poesia marginal.
VENHA CURTIR NOSSO SARAU !!
LINK AO VIVO NAS REDES SOCIAIS E RADIO COMUNITÁRIA !!
AGIT-PROP COM OS MANO E AS MINA!







O MARXISMO ESTÁ VIVO

O economista Francisco de Oliveira responde ao ensaísta e embaixador brasileiro no México, José Guilherme Merquior, que criticou o marxismo (entrevista publicada em 1987)

André Singer


"O marxismo está muito vivo e continua sendo o interlocutor intelectual mais importante", afirma o sociólogo e economista, Francisco de Oliveira, 54. A declaração é uma resposta ao ensaísta e embaixador brasileiro no México, José Guilherme Merquior, que havia declarado a morte do pensamento marxista em entrevista publicada pela Folha, no dia 30 de agosto. Respondendo ponto por ponto às considerações de Merquior sobre a falência e a decreptude do marxismo, Oliveira diz que é "rigorosamente mentira" que não existam economistas de relevo que trabalhem com o conceito de mais-valia (um sobre-valor que o trabalho produziria além de pagar o seu custo como mercadoria). Afirma também que "o autor de 'O marxismo Ocidental' não entendeu direito o que quer dizer alienação" na teoria marxista, conceito que, a seu ver, descreve o mecanismo de movimento entre "forma aparente e forma essencial" da realidade.
Na entrevista, realizada em sua sala no 2o andar do casarão que sedia o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), na Vila Mariana, o marxista Francisco de Oliveira, classificou o pensamento de Merquior como o de um diletante, que "escolhe os temas da moda para ganhar publicidade". "Isto é muito confortante", mas é também "sinal de impotência", acrescentou.
Folha - O ensaísta José Guilherme Merquior disse, em entrevista à Folha, que o marxismo morreu. Gostaria de saber qual é a sua opinião sobre esta análise.
Francisco de Oliveira - José Guilherme Merquior se inscreve numa longa lista de anunciantes da morte do marxismo. Não é o primeiro a falhar nem será o último, porque, a meu modo de ver, o marxismo está muito vivo e continua sendo o interlocutor intelectual mais importante. É engraçado ver que o marxismo imanta contra si todos os outros campos teóricos. É um combate que se dá no terreno das idéias, numa espécie de combate desigual: todos estão contra o marxismo tentando provar que ele não dá conta mais do mundo contemporâneo, anunciando a sua morte e as falhas de suas previsões. Mas, de alguma maneira, todas as grandes correntes do pensamento contemporâneo têm o marxismo como uma referência fundamental, para negá-lo na maioria dos casos. Ora, uma corrente de pensamento que tem esse estranho privilégio de imantar todos os outros campos teóricos contra si não pode ser considerada morta.
Folha - Merquior nessa mesma entrevista ataca os conceitos de alienação e mais-valia. Com relação a mais-valia ele diz que não há um único economista respeitável que hoje trabalhe com esta idéia. Como o sr. que é economista, se posiciona sobre isso?
Oliveira - Em primeiro lugar eu não sou um economista respeitável, não faço parte do rol daqueles que o Merquior considera respeitáveis. Em segundo lugar, ele não nomeia quais são os economistas respeitáveis que não trabalham com a teoria da mais-valia. É evidente que fora do campo dos economistas marxistas ninguém trabalha com a teoria da mais-valia. E não há na mídia internacional acadêmica, que é uma mídia muito especial, nenhum relevo para economistas marxistas. Em terceiro lugar é rigorosamente mentira, posto que há econommistas respeitáveis que trabalham com a teoria da mais-valia. Todos economistas da escola francesa regulacionista, como Michel Aglitta, declaram abertamente sua forte inspiração na teoria marxista. De modo que não é verdade. Há aí um problema de mídia, a mídia acadêmica é muito mais hermética do que qualquer outra e há, de outro lado, no mínimo, ignorância do Merquior quanto à teoria econômica.
Folha - Há autores de esquerda que põem em cheque a idéia de mais-valia. Alguns de origem marxista, como Cornelius Castoriadis, por exemplo. Para esses críticos, a mais-valia é algo completamente imensurável e, portanto, metafísico. Como é que o sr. vê a questão da medida da mais-valia?
Oliveira - Essa exatamente é a questão mais crucial. E colocar esta questão consiste a modernidade do marxismo, ao invés da sua velhice ou sua decreptude. Esta noção é uma noção extremamente moderna. A mais-valia em Marx e em marxistas sérios é um processo em que nunca está definido a priori. Você não pode nunca partir - mesmo tendo todos os dados à sua disposição - de uma produção "X", baseada em investimentos "Y", em consumo de força de trabalho "Z" e calcular uma quantidade mensurável de mais-valia. Isto porque a mais-valia se dá no processo. Pode o industrial ou empresário não vender sua produção. Pode haver uma greve pelo meio. Portanto, o processo da mais-valia é sujeito a perturbações que advém da própria relação do trabalho, da própria competição capitalista. O conceito de mais valia coloca, do ponto-de-vista da pesquisa concreta, realmente, uma imensa dificuldade de mensuração. Agora, essa questão da medida tende muito a ser vista duma forma positivista. Eu queria que o Merquior ou qualquer outro economista - ele certamente não é economista - dissesse como é que ele mede o lucro, que é um conceito abundantemente utilizado na teoria econômica, por todas as escolas do pensamento, desde as marxistas até as não marxistas? Como é que eles medem o lucro, como é que eles medem o valor-utilidade, como é que eles medem o valor-marginal, que são teoremas clássicos da escola neo-clássica, da escola marginalista. Como é que eles medem? Eles só medem isso pelo resultado. Só podem medir pelos resultados. E só podem medir por resultados que estão predetermindos pela forma em que as atividades econômicas se institucionalizam. A Fundação Getúlio Vargas faz a conta dos lucros das empresas na economia brasileira. Como é que ela faz? Ela faz consultando o balanço das empresas. Quer dizer, o lucro - a categoria central do capitalismo - é tão difícil de se mensurar quanto a mais-valia. Como não há nenhum sistema institucionalizado para medir a mais-valia, à dificuldade teórica de medir a mais-valia soma-se a sua dificuldade institucional. A Fundação Getúlio Vargas ou quem quer que apure as contas nacionais, chega ao lucro através de deduções institucionalizadas, deduções de conceitos que são institucionalizados. Ninguém pode saber teoricamente qual é o núcleo real de qualquer atividade capitalista.
Folha - Outro conceito que Merquior diz pertencer à pré-história da modernidade é a idéia da alienação. Ele diz que o conceito é fortemente inspirado pelo modelo teológico. E, de fato, é um conceito muito controverso, mesmo dentro do marxismo. Como o sr. pensa esse problema?
Oliveira - Eu não sou competente para discutir isso. A questão da alienação requer uma competência filosófica que eu não tenho. Acho que é bom o Merquior prestar atenção a um artigo que o José Arthur Giannotti está fazendo sobre o último livro dele, que deve sair na Revista Novos Estudos, onde as questões propriamente filosóficas do Merquior são enfrentadas, a meu ver, de forma irrespondível. Mas é possível que o conceito de alienação tenha contaminações teológicas. É extremamente difícil não ter havido nenhuma influência. Pedir isto seria esperar que as ciências nascessem em proveta. Na realidade, provêm de algum terreno social, sofrem contaminações, fecundações, influências muito amplas. Isso não invalida o que esses campos teóricos produziram. Na verdade, o que Merquior pede? Ele pede uma espécie de ciência pura, não contaminada pelas influências culturais presentes na época em que esses paradigmas científicos foram criados. Isso é um pedido completamente banal, um pedido quase inquisitorial. Merquior não tenta ver se o conceito de alienação, tanto no marxismo como em outros campos científicos, serve para descobrir novas pistas e enriquecer, portanto, a problemática posta em questão. Além disso, acho que o Merquior não entendeu direito o que quer dizer alienação no marxismo. Alienação no marxismo não quer dizer nunca máscara nem loucura. Alienação no marxismo quer dizer a forma aparente. E há uma profunda imbricação entre forma aparente e forma essencial. Alienação é um mecanismo de movimento dessas duas formas. Isto toma no marxismo um caráter muito especial. Por quê? Porque o marxismo é teleológico, o que, a meu ver, não o joga fora o campo científico. Há vários outros campos científicos que também o são. Eu diria até que, no fundo, todos os campos científicos são teleológicos. A psicanálise também é teleológica. Por quê? Porque no fundo busca fazer o indivíduo reencontrar-se. No marxismo, a alienação comparece com o seu peso devido porque ele trabalha no sentido da transformação. Agora, se você tomar um campo científico aparentemente não minado de preconceitos, aparentemente limpo de qualquer atitude preconcebida, aparentemente limpo de qualquer teologismo, você encontra a mesma questão. Você toma a teoria econômica convencional, que hoje é uma mistura de neoclássico, marginalista, keynesianismo, pós-keynesianos. Por que eles procuram saber qual é o preço real das coisas? Por que os economistas usam indicadores de preços para distinguir entre preços normais e preços reais, entre preços constantes e preços correntes. Por quê? Porque acreditam que o fenômeno monetário encobre e ao mesmo tempo expressa certos fenômenos reais. A coisa mais inocente que você tome em qualquer revista de conjuntura contém em si essa tensão. Por que não tomamos que os preços nominais e os assumimos como reais? Por que toda discussão sobre a inflação? Porque há a convicção de que a inflação recobre o fenômeno real, impede o reconhecimento de fenômenos reais e é preciso, portanto, conhecer os fenômenos reais para não só fazer política econômica como para debelar a própria inflação. Há uma alienação dos preços reais em favor dos preços correntes, dos preços inflacionados. O que o marxismo faz é explicitar essas questões, que os outros campos não explicitam.
Folha - Duas coisas a respeito desse assunto: me parece que a diferença entre o marxismo e a psicanálise é que esta não pressupõe um estágio de resolução da alienação. O inconsciente nunca se torna completamente consciente. É uma pergunta perpétua. No marxismo, há a idéia de que se chega a um momento na história em que a alienação é rompida.
Oliveira - Essa é uma diferença importante.
Folha - Para os críticos do marxismo, isso faz com que o caráter teleológico e metafísico do marxismo apareça com relevo, porque pressupõe a idéia de um fim da história. Como o sr. pensa esse problema? O sr. acha que idéia de que haverá um reencontro completo em um ponto na história permanece válida?
Oliveira - Eu não me inclino a considerar que a história tem um fio nem que haja nenhum reencontro em algum ponto da história. Desse ponto de vista, portanto, se essa for a interpretação do teleologismo no marxismo, eu me afasto dela. Mas é possível ver nos clássicos do marxismo outra questão também que não é a do fim da história, mas é do começo da história. Isso também está muito presente. Nos textos políticos de Marx, por exemplo, o regime político que aparece depois do socialismo chama-se democracia. Não é o fim, é um novo começo. O que o marxismo tem, aparentemente desse teleologismo fatal, desse teleologismo vulgar que põe o fim da história, é que ele é o único sistema que declarou de forma explícita que o capitalismo é um modo finito de produção. É essa coisa que coloca em xeque e causa desconforto. Isto é tudo que tem de teleologismo fatal no marxismo. Dizer que este é um modo de produção finito e que ele vai acabar.
Folha - Merquior, ainda na entrevista à Folha, diz que a única saída teórica do marxismo é o que ele chama de marxismo analítico. Cita dois autores John Elster e Jerry Cohen como típicos do que seria uma saída para a sobrevida do marxismo, embora diga também que eles acabam levando para fora do marxismo. Como o sr. encara esse problema?
Oliveira - Eu acho que aí há um problema. Merquior, no fundo, pede ao marxismo que se mantenha sectário, fatalista e, por um truque que não está explicitado na entrevista, tornar-se assim mais vulnerável aos ataques de gente do tipo Merquior. O que acontece com o marxismo é o que aconteceu com todas as grandes correntes de pensamento. Ele tornou-se universal. Dizer, como o Merquior diz, que não há um marxismo mas marxismos não é sinal de decadência, é sinal de riqueza. Como nós não podemos dizer hoje que há um liberalismo. Há vários. Nós não podemos dizer que há uma psicanalise, há várias. Isso é um enriquecimento da psicanálise e não uma degenerescência. No marxismo se operou a mesma coisa. O marxismo tornou-se uma referência universal, incorpou-se ao modo de conceber o mundo e, portanto, ele dá lugar hoje a desdobramentos, a explorações de variado teor, que tomam da matriz principal do marxismo e levam a conclusões que podem perfeitamente ser pós-marxistas. Pedir rigor e pedir fidelidade a si mesmo é um truque para tornar o atacado mais vulnerável. O que Merquior percebe, na verdade, é que o objeto de ataque não é tão vulnerável - na entrevista ele faz o reconhecimento explícito do marxismo analítico, dos gramscianos e dos neogramscianos (adeptos de Antonio Gramsci, teórico marxista italiano). E isto dificulta a tarefa dos merquiores da vida. Seria a mesma coisa que algum cretino quisesse agora tomar os clássicos do liberalismo inglês e procurasse ver nos liberais contemprâneos a repercussão dos clássicos do liberalismo neles. Seria um procedimento tão cretino, que revela aquela manobra que os intelectuais estão muito acostumados a fazer que é construir o fantasma para poder atacá-lo. O que ele percebe, e diz na entrevista, é que o marxismo tornou-se tão rico, tão diverso, fecundou tantas correntes de pensamento, que não é mais uno. Nunca foi, na verdade. Ora, ele percebe exatamente que essa variedade, essa diversidade, essa riqueza, tornam o marxismo mais invulnerável aos ataques do tipo Merquior. E isso certamente angustia o intelectual do tipo Merquior que vive de construir fantasmas para combatê-los sob as luzes dos holofotes da mídia. Qualquer pessoa séria olharia isso com outros olhos. Só um cego diria que o marxismo foi derrotado ao longo da sua existência enquanto campo de idéias. Poucas teorias sociais se converteram em ideologia. É muito frequente dizer que toda vez que um campo teórico se converte em ideologia se empobrece. Eu acho que é o contrário. Toda vez que um campo teórico se converte em ideologia significa que passou a prova da história. Quer dizer, se converteu, realmente, num forte instrumento de construção do mundo cotidiano. São poucas as construções teóricas que resistiram a essa prova. O marxismo é uma delas. Transformou-se num instrumento de luta, de compreensão do mundo e de ideologia de classes e isso é parte da construção do mundo contemporâneo.
Folha - José Arthur Giannotti define o trabalho do Merquior como o trabalho de um polemista. O sr. nessa crítica que fez agora, disse que o procedimento utilizado por ele é um procedimento cretino. Como o sr. define Merquior?
Oliveira - Eu confesso que nunca li muita coisa do Merquior. E, certamente, na réplica ele dirá que nunca leu nada meu, o que é perfeitamente natural. Não tenho nenhuma grande tiragem de livro, embora de um lado grandes tiragens de livros pudessem me conduzir a uma situação financeira diferente. Mas só quem vive de direitos autorais no Brasil é Jorge Amado. Portanto, o sr. Merquior pode dizer solenemente, como ele dirá, que me desconhece, que eu sou um joão ninguém. Eu eu aceito. As únicas coisas que eu li dele foram "O Marxismo Ocidental", recentemente, e essa entrevista à Folha e a conhecida polêmica com a Marilena Chauí (Merquior acusou Marilena Chauí de plagiar o filósofo francês Claude Lefort), que foi muito badalada na época. O que me parece é que ele é um tipo que faz um trabalho intelectual diletante - diletante não tem o sendido de opor-se ao do intelectual engajado, velha imagem que se tem, sobretudo, daqueles que se reconhecem dentro do campo do marxismo. E eu o acho diletante porque escolhe os temas da moda para ganhar publicidade. Quer dizer, não há na produção do sr. Merquior, até onde eu conheça, nenhuma contribuição, nenhum avanço. Ele não propôs nada, já que é tão competente no terreno filosófico, não propôs nenhuma contribuição a qualquer sistema filosófico. E é muito confortante para tipos como ele ficarem atirando com metralhadora giratória e confrontarem-se na posição de que a pós-modernidade recusa qualquer teoria totalizadora ou qualquer teoria globalizadora. Isso é muito confortante. Mas isso é também, dizendo da forma mais direta, sinal de impotência.
Folha - Merquior critica o que ela chama de marxismo ocidental dizendo que é dominado pelo irracionalismo. Como o sr. enxerga essa questão?
Oliveira - Eu não vou responder essa questão, porque acho que o artigo do Giannotti dá conta disso. Há autores muito bem sucedidos na mídia, que estão aí liderando vendas de livros, há semanas, como Marshall Berman, que busca a inspiração do seu modernismo precisamente no marxismo. Talvez se pudesse dizer como paródia que, se "tudo o que é sólido desmancha no ar" (título do livro de Berman), a obra do Merquior é o seu oposto: tudo que é leve se espatifa como tijolo.

O MARXISMO ESTÁ MORTO

Para José Guilherme Merquior, o ensaísta e embaixador do Brasil no México, a teoria marxista não tem nenhuma perspectiva e não se sutenta à luz da razão (entrevista publicada em 1987)

André Singer


A morte de Marxismo é o mote preferido das últimas intervenções do ensaísta José Guilherme Merquior, 46, embaixador do Brasil no México e hoje, talvez, o maior polemista ativo na cultura brasileira. Merquior, cujo último livro é "O Marxismo Ocidental" (Nova Fronteira), vem assestando sua metralhadora giratória sobre autores e conceitos básicos do marxismo, como mais-valia e alienação. Entre os principais atacados está o alemão Jurgen Habermas, considerado por muitos o maior filósofo marxista vivo. De passagem, lança farpas sobre o também ensaísta diplomata brasileiro Sérgio Paulo Rouanet, por suas tentativas de fazer "ligações" entre Habermas e Foucault.
Categórico, Merquior não vê nenhum horizonte para o marxismo. Tece elogios a um certo "marxismo analítico", desenvolvido em algumas universidades européias e norte-americanas, mas não sabe se isso pode mesmo ser considerado marxismo. Para ele o marxismo tem raízes religiosas e nenhuma de suas principais teses resiste ao exame da razão.
Há três meses morando na agradável residência oficial da embaixada brasileira na Cidade do México, Merquior concedeu lá esta entrevista, um dia antes da chegada do presidente Sarney à capital mexicana, há duas semanas. Foi uma pausa entre os preparativos para mais uma festa da "unidade latino-americana". Aliás, soa curioso ouvir o erudito Merquior, na Cidade do México, se referir a torto e a direito à tal "unidade latino-americana". Mesmo se dizendo dedicado "full time" à diplomacia, Merquior anuncia que já tem outro livro na gaveta.
A seguir os principais trechos da entrevista:
Folha: O sr. acha que existe uma crise do marxismo e do pensamento da esquerda, hoje?
José Guilherme Merquior - A crise do marxismo, tanto quanto eu possa ver, é permanente, quer dizer, eu não a sinto como uma conjuntura ou um modismo ideológico que, digamos, daqui a dez, quinze ou vinte anos estaria superado por uma possível revivescência, uma possível renascença do marxismo. Eu acho que o marxismo está, realmente, como proposta teórica, considerada no que lhe possa restar de unidade, num momento de liquidação. Os marxismos seriam um outro problema, porque o campo marxista se fracionou de tal maneira, teoricamente, que há marxismos. Eu posso contemplar alguns marxismos com capacidade de sobrevivência. Mas a questão de saber o grau de autenticidade marxista desses marxismos é uma questão muito cabeluda. Por exemplo, no chamado movimento do marxismo analítico, do qual pouco ou nada se tem falado no Brasil. Todo mundo se preocupa no Brasil com Habermas e outras tendências a meu ver infinitamente menos fecundas. Mas é perfeitamente possível que se diga que o marxismo analítico é apenas um marxismo pela metade ou marxismo sem luta de classe, marxismo sem profecias progressivas.
Folha: O que é o marxismo analítico?
Merquior - Eu chamo de marxismo analítico naturalmente esse movimento - que quase não é um movimento, o número de protagonistas ainda é reduzido, mas apesar de reduzido é muito brilhante -que se consubstancia em obras recentes, todas basicamente da década e de 80 ou do meio da década de 70 para cá, do John Elster, do Jerry Coehn, que são pessoas que reexaminaram em profundidade o conceito de exploração, o conceito de alienação e, sobretudo os instrumentos metodológicos que a tradição marxista utilizou, tanto Marx quanto seus sucessores da época da 2a. Internacional, ou posteriores, como os marxistas ocidentais, utilizaram. É um movimento de grande interesse intelectual, que eu acho que é o maior desafio intelectual hoje dentro do marxismo. Mas o que eu queria deixar claro é que o conjunto de conclusões a que alguns desses autores chegaram, como é certamente o caso do mais brilhante e produtivo deles que é o próprio Elster, são conclusões que o leitor inteligente e despreconcebido fica na dúvida se deve considerar conclusões marxistas ou conclusões pós-marxistas.
A minha tendência pessoal é considerá-las conclusões pós-marxistas porque resta muito pouco do sistema marxiano depois dessa filtragem crítica realizada pelo marxismo analítico. Essencialmente o que restaria aquilo que o Raymond Aron gostava de chamar do senso dos determinismos. Aquilo que Raymond Aron quase que poeticamente chamava de tema da infra-estrutura, que eu acho, aliás, que é uma coisa de muita substância e que realmente, nós devemos, na história das idéias, principalmente a Marx. Marx, não é à toa, continua a ser, com toda justiça, considerado como um dos principais fundadores da ciência social. Por quê? Por causa da ênfase posta no tema da infra-estrutura, quer dizer, a proposta do materialismo histórico, como enfoque de baixo para cima, como um enfoque que busca, na tentativa de explicar fenômenos sociais, um conjunto de determinismo, um conjunto de condicionamentos, no sentido forte da palavra evidentemente, mas não necessariamente na sua interpretação dogmática, transformando esse condicionamento numa espécie de lei universal, de "passpar tout" de lei universal da explicação histórica que, de resto é uma coisa contra a mal o próprio Marx se rebelou muitas vezes.
Esse marxismo analítico eu considero que tem condições de sobrevivência. Num plano que seria, digamos, entre o plano do conhecimento e o plano da política, mas, talvez, mais no plano da ação política do que no plano do conhecimento, eu acho que em determinadas áreas do mundo contemporâneo há um outro tipo de marxismo que também tem condições de sobrevivência apreciáveis que é, a meu ver, o que para simplificar eu chamaria de tendências neo-gramscianas. Acho que, especialmente em países como o Brasil essas tendências jogam uma carta historicamente ainda prenhe de possibilidades. E por quê? Porque justamente elas arquivam tudo o que pudesse haver e de demasiadamente isolacionista, intransigente, dogmático e sectário em postulações marxistas anteriores.
O meu caro amigo e principal neo-gramsciano brasileiro - creio que seja ele o principal de longe - Carlos Nelson Coutinho, numa carta muito recente concluía, voltando de uma recentíssima viagem à Itália, feita neste verão italiano, que na Itália o gramscianismo está em fracionamento, dispersão e mesmo sofrendo um adiantado estágio de negligência - coisa que, naturalmente, não o agradou, como fiel gramscianista que é. E se ele tem razão, eu diria que há outras áreas do globo que podem transformar o nosso querido Carlos Nelson em alguém bem menos pessimista e mais otimista quanto às posições gramscianas. E essa área é, de uma maneira geral a nossa área, por exemplo, latino-americana, onde as propostas neo-gramscianas têm um charme, um tipo de apelo e de charme que, se elas não estão tendo na Europa neste momento, podem ter em outros quadrantes.
Procurei dar dois exemplos de possíveis sobrevivências do marxismo: uma teórica, que é o marxismo analítico, mas com um vasto ponto de interrogação que, palavra de honra, não é absolutamente um preciosismo de minha parte, é uma questão muito séria, que tenho colocado nos meus próprios escritos sobre marxismo, no meu livro sobre marxismo ocidental, em particular. É a questão de saber se...bom, tudo bem com o marxismo analítico, eu concordo com quase 90% das suas conclusões. O problema é que essas conclusões são tão demolidoras do edifício marxista no seu conjunto, que as pessoas têm todo o direito de se perguntar se isso ainda é marxismo ou se seus autores se dizem marxistas por uma espécie de fidelidade sentimental. Já houve quem dissesse isso, já quem diga isso de John Elster, que ele é marxista porque ele acha bonito.
Você não precisa ser marxista para ter preocupações de justiça social, para ter preocupações até humanitárias, enfim, para querer corrigir abusos, onde quer que eles se manifestem, em qualquer estrutura social. O marxismo, afinal de contas nunca teve monopólio dessas posições e não há porque ter daqui por diante. Certamente não é agora que ele sofre um descrédito intelectual bem maior do que no passado que ele vai ter esse monopólio. Mas de qualquer maneira é o exemplo de possível sobrevivência de uma corrente que se auto-rotula, se autointitula de marxista, mas é uma corrente naturalmente muito rarefeita. Uma corrente que tem um pé em Oxford, um pé na Escandinávia, um pé nas universidades da Costa Atlântica, nos Estados Unidos.
A outra corrente que é bem menos teórica e bem mais política e não é tão rarefeita, seria a sobrevivência possível do neo-gramscianismo.
Folha : Qual é a vertente de pensamento que pode ser uma alternativa ao marxismo? O pensamento liberal, que historicamente tem origem antes do próprio marxismo?
Merquior - Eu diria o seguinte: primeiro, o marxismo como fecundante da ciência social ou da busca de mecanismos sociais, da busca de condicionamentos sociais, enfim, da aspiração a um projeto de explicação da mudança social, permanece como um exemplo muito instigante. Na esfera econômica, o edifício da teoria econômica marxista, quer dizer, do próprio Marx, para não falar de marxistas posteriores, está carcomido por um defeito de base, que é a própria teoria nuclear, a própria teoria da mais-valia. Eu não vejo mais intelectual de real preeminência no terreno econômico se aprestar mais em defendê-la. É uma teoria caduca. É uma teoria - eu não direi nem mais agonizante - simplesmente morta.
O marxismo analítico talvez tenha sido o elegante golpe de misericórdia nessa teoria. Se se atribui -como eu acho que só pode ser correto atribuir- à teoria da mais-valia lugar central no pensamento econômico de Marx, o pensamento econômico de Marx fica automaticamente arquivável. Agora, o marxismo, de qualquer maneira, era uma teoria globalista demais, uma teoria com a vocação de ser uma explicação global - muita gente pensa até erroneamente que por ser uma explicação global é uma explicação tão totalizadora que explicaria tudo, a forma dos pés daquela cadeira, a curva de um arco gótico e assim por diante.
O marxismo, de Marx, pelos menos, jamais se propôs a ser tão assim enciclopédico; não era uma chave para a explicação de cada detalhe do mundo. Mas sem dúvida nenhuma era uma explicação global como hoje nós não mais nos atrevemos a construir - intelectualmente falando. Daí o problema de saber se nós não nos atrevemos a construir porque somos simplesmente inferiores, intelectualmente falando, a Marx ou a Hegel, que era tão globalista quanto Marx. Ou se, ao contrário, pertence à própria natureza das coisas essa nossa impossibilidade moderna de abarcarmos tanto. Eu me inclino, sinceramente, à segunda resposta. Acho que o mundo moderno se tornou ao mesmo tempo mais complexo na realidade e mais sofisticado intelectualmente para poder se permitir essa visão tão globalizante, que ainda tem uma marca religiosa, mesmo em espíritos tão pouco religiosos quanto Marx ou tão religiosos, mas de uma maneira muito especial, que não é a maneira confessional, quanto Hegel. Eu acho que o mundo moderno aposentou os sistemas, aposentou toda espécie de tentativa tão grandiosa de abarcar a explicação da história no seu conjunto.
Folha : Qual a sua opinião sobre a tentativa globalizadora de Habermas?
Merquior - Acho que o Habermas é intelectualmente falando, um conservador. É claro que no terreno político-social ele é um bravo social-democrata de esquerda; não estou empregando a etiqueta conservadora noutro sentido, mas apenas no sentido dos seus quadros mentais. Acho que nos seus quadros mentais realmente existe uma tentativa quase grandiosa como tentativa, mas muito pouco convincente a meu ver como resultado. É uma tentativa de restauração intelectual, porque é uma espécie de tentativa de ser o Hegel das Ciências Sociais, de construir uma suma totalizante a partir de resultados de várias disciplinas. Em conjunto, o resultado denota uma profunda ambivalência ante a modernidade, porque por um lado Habermas, com grande coragem, recusa a condenação barata do mundo moderno que nós encontramos em toda uma série de pensadores contemporâneos de grande prestígio e influência. Acho que nisso ele tem toda razão e é uma atitude muito válida e valente de sua parte - essa recusa desse repúdio à modernidade. E não posso concordar com aqueles brilhantes intelectuais que às vezes tentam concordar ao mesmo tempo com Habermas e com algumas dessas figuras que ele sem hesitação condena, como é o caso, por exemplo, do meu caro amigo Sérgio Paulo Rouanet, que pensa que é possível, ao mesmo tempo, você dar a mão direita a Habermas e a mão esquerda a Foucault.
Estou profundamente e convencido de que não é possível; é preciso você optar contra um, a favor de outro. Se você quiser ficar com Foucault você não pode ser habermasiano, se você quiser ser fiel à lição de Habermas você não pode dar a mão a Foucault - dar a mão intelectualmente falando, evidentemente, porque não estou pondo em questão o brilho da personalidade filosófica de Foucault; estou pondo em questão, certamente, o bem fundado das suas teses. Mas acredito que apesar de Habermas, por este lado, ser válido - a lado pelo que ele recusa a condenação barata da modernidade -, por outro lado a sua própria maneira de conceber essa modernidade ainda está profundamente determinada por uma desconfiança básica em relação ao "ethos" do homem moderno e portanto, ao espírito da modernidade. É muito difícil ser preciso quando a gente se move no terreno das idéias de Habermas, porque se há um pensador que é ao mesmo tempo plúmbeo na expressão e bastante nebuloso na concepção, é ele mesmo. Um escritor de graça quase elefantina e, naturalmente, de idéias possivelmente nebulosas. Mas tentando lançar um raio de sol nessa névoa toda, eu diria que o pensamento de Habermas ainda está profundamente dominado pela categoria da alienação. O conceito de alienação ainda é absolutamente central em Habermas. Ora uma série de resultados no trabalho filosófico - de um lado - e no trabalho sociológico - de outro -, que eu preciso muito na cena intelectual contemporânea, me levam à idéia de que o conceito de alienação precisa ser urgentemente revisto. Não é que não haja nada atrás do conceito de alienação, evidentemente .
Mas ou o conceito de alienação é passível de ser traduzido em termos empíricos bastante concretos e de fácil compreensão - a obra de Elster para citar uma última vez o principal nome do marxismo analítico, é um exemplo notável desse tipo de tendência - ou o conceito de alienação é uma tradução profunda, é uma tradição secularizada de um mito religioso, que o marxismo, na sua dimensão de escatologia revolucionária, herdou de um velho leito místico de um velho leito religioso ocidental. Evidentemente que o conceito de alienação nesse sentido místico é fascinante como tema de história das idéias e eu próprio me detive nele algumas vezes. Mas embora fascinante como tema de história das idéias, ele só é fascinante como qualquer grande veio do pensamento religioso - e se um pensamento religioso que exerceu muita influência é fascinante, não quer dizer que eu ache que aquilo é um instrumento de análise.
É fascinante para mim porque a cultura religiosa, especialmente a grande cultura religiosa que para mim pertence ao passado, e não ao presente da humanidade, é fascinante para o entendimento do que foi um sem número de aspectos da cultura humana no seu passado. Mas não como instrumento válido de análise. Como instrumento válido de análise o conceito de alienação nesse plano elevado -em que, segundo ele, se processa um verdadeiro drama para salvação e resgate da humanidade- me parece algo de muito bonito mas perfeitamente arbitrário, quando usado para a caracterização do homem em geral e do homem moderno em particular.
Eu noto que há um grande inconformismo em vários trabalhos filosóficos contemporâneos, especialmente de vinte anos para cá, em relação a isso. Há uma liquidação do conceito de alienação. Se você quer eu cito o caso de alguém exemplar nesse terreno -porque veio justamente do marxismo- que chegou a ser um brilhante representante do marcismo em seu país e sofreu uma evolução de abandono crítico do conceito de alienação: Lucio Coletti.
Folha : A fragmentação do conhecimento de que o sr. fala, a impossibilidade de globalização, seriam características do tal pós-moderno?
Merquior - Você aponta a possibilidade de um equivoco, baseado nessa aparente semelhança entre a idéia do pós-moderno e essas conclusões a respeito da morte do sistema e do esvaziamento do conceito de alienação. Durante muito tempo se nos quis vender uma certa tradição de filosofia, de corte alemão.
Quando nós fazemos um pouquinho de genealogia desta maneira de entender filosofia, que é muito mais sistêmica e totalizante do que analítica e fracionadora, nós deparamos com o quê? Nós deparamos com origens claramente teológicas.
Este tipo de pensamento alemão teve raízes claramente teológicas. Pensadores como Hegel são notórios casos desse impulso, desse ímpeto sistêmico e dessa visão totaliza que tinha como ponto de partida quadros mentais, categorias, claramente herdadas de uma tradição teológica. Não estou negando de maneira nenhuma, que haja interesse na contribuição poderosamente original que Hegel deu a determinados temas teológicos. O que eu estou tentando fazer notar é que há uma espécie de marca teológica de origem, há uma espécie de pecado original, para empregar justamente uma metáfora teológica, nesse tipo de pensamento, que faz com que ele esteja demasiado comprometido com uma ânsia de salvação e com um molde de pensamento onde a visão do todo é mais importante do que a filtragem crítica do conhecimento.
Há mais compromisso com a possibilidade de totalizar a visão e de atribuir a essa visão totalizante uma carga salvífica, uma carga de salvação, do que com a filtragem crítica, passo a passo do pensamento. Embora seja, a meu ver, ridículo colocar esse problema em termos de saber quem foi o maior, se um filósofo como Hegel ou sem um filósofo como Hume que representaria, digamos assim, o conjunto de hábitos mentais exatamente opostos aos de Hegel. Esse tipo de debate é ridículo, porque a obra de Hegel é riquíssima - e eu estou cada vez mais convencido da profunda riqueza temática da sua obra - mas eu não posso negar que, como modelo de rigor cognitivo, Hume está mais perto do nosso espírito moderno do que essa visão totalista, repito, de origem empírico-teológica, do pensamento de Hegel.

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