quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

A classe trabalhadora dos EUA está se mexendo?

[Reginaldo Moraes] A evolução recente da classe trabalhadora norte-americana tem sido alvo de atenção de numerosos livros, artigos, conferências.
Um de seus segmentos, a chamada “classe trabalhadora branca”, foi amplamente anunciado, com algum acerto mais muito exagero, como uma base fundamental do eleitorado de Donald Trump.
O populista de direita teria explorado a angústia e a insegurança desse grupo diante dos efeitos perversos da globalização. A decepção da White working class com o Partido Democrata teria esvaziado Hilary Clinton e, até, levado votos a Trump.

Comentarei outros livros em outros artigos. Aqui resumimos argumentos do estudo de Tamara Draut - Sleeping Giant: How the New Working Class Will Transform America (ed. Doubleday, 2016). A autora é vice-presidente de Demos, um think tank progressista sediado em New York. Ela tenta responder ao mistério do suposto “desaparecimento”da classe trabalhadora e procura mostrar os sinais que mostrariam seu novo despertar, suas lutas, suas novas formas de organização.

Draut afirma, em síntese, que a classe trabalhadora norte-americana não ”morreu” nem se dissolveu numa hipotética classe média. É apenas diferente do que era. E essa diferença tem consequências muito importantes para sua falta de visibilidade e para a perda de protagonismo politico. Resumo a seguir apenas alguns de seus argumentos, com evidente injustiça para a riqueza de temas do livro. Serei por vezes repetitivo, desculpem-me o estilo. A intenção é apenas chamar atenção para aspectos que iluminem o fenômeno retratado – o caso americano – mas também sugiram ilações para o caso brasileiro.

Comecemos lembrando que, em 1980, 25% da força de trabalho norte-americana trabalhava na manufatura. Hoje, essa cifra caiu para perto de 13%. E a maior parte da FT (da manufatura ou não) começou a ser classificada, cada vez mais, de outro modo – principalmente como ”fornecedores de serviço”, graças a diversos expedientes de flexibilização dos contratos e de descaracterização dos vínculos trabalhistas.

A classe trabalhadora é hoje também mais diversificada do ponto de vista étnico: Afro-americanos(13%), Latinos (20%), e asiático-americanos (4%).

As ocupações mais numerosas estão fora das fábricas: vendedores do varejo, caixas, trabalhadores de restaurantes e fastfood, pessoal de portaria, zeladoria e limpeza, etc.

Esta é uma sociedade do conhecimento? - pergunta ela em tom de questionamento. Sim, em parte, mas isso não se reflete tão claramente na estrutura ocupacional, como por vezes parecem sugerir as analises novidadeiras:

“Durante décadas nos vendem a ideia de que a chave da prosperidade da nação seria um crescente exército de trabalhadores do conhecimento, inovando e em parques tecnológicos. Colunas e mais colunas escritas por gente como Thomas Friedman e David Brooks argumentam que o futuro de nossa econômica reside em cultivar habilidades como a solução criativa de problemas e o pensamento crítico, com especial atenção para áreas como a ciência, a tecnologia e a engenharia”

Contudo, diz a autora, várias vezes, a massa da nova classe trabalhadora concentra-se cada vez mais em quatro setores: varejo e alimentação, trabalhos manuais de reparo, manutenção e instalação, escritórios, cuidados pessoais. Algo que está, pelo menos, à margem daquele universo retratado pelos colunistas.

Flexibilização: trabalho precário e mal pago

E grande parte desses novos trabalhadores está conectada cada vez mais numa rede complicada de fornecedores de serviços “independentes“ e subcontratados, agencias de temporários, sistemas de franquias, todas elas formas de contratar que não se enquadram nas leis trabalhistas existentes, o que os torna cada vez mais precários e vulneráveis.

De fato, quando pensamos na longa marcha da classe trabalhadora, “civilizando o capital” e arrancando regulações, leis, políticas públicas, percebemos mais claramente que a “flexibilização dos contratos” é o meio através do qual o capital tenta escapar desses limites civilizadores e recuperar o moinho satânico do livre-mercado. Nesse sentido, poderíamos dizer que as “flexibilizações” são a vingança, o contra-ataque dos capitalistas ultraliberais em resposta aos avanços dos reformistas.

Alguns desses setores do proletariado cresceram enormemente. Vejamos por exemplo o segmento dos serviços de alimentação (incluindo o famigerado fastfood). Esse crescimento está muito ligado a uma mudança de hábitos e de ritmo de vida. Em 1970, a família americana média tinha este perfil: daquilo que gastava em comida, 25% ia para alimentação fora de casa. Isso mudou para 42% no começo do novo milênio.

Por outro lado, um percentual cada vez maior de indivíduos necessita do Food Stamp (ajuda federal instituída durante a grande depressão nos anos 1930) para comprar alimentos. Guardadas as muitas diferenças, uma espécie de Bolsa-Família ou Fome Zero norte-americano. Em 2014, nada menos que 46 milhões usavam o Food Stamp para cobrir seus gastos de “mercearia”. O programa tinha sido desativado nos anos 1960 – e retomado nos anos 1970, quando começou a grande virada da desigualdade na sociedade norte-americana.

E cada vez mais os recebedores do Food Stamp são gente que trabalha, em tempo parcial ou integral, aquilo que consegue arrumar. Uma parte nada desprezível dos trabalhadores em fast food e empresas comerciais gigantes, como a Walmart, por exemplo, precisa do Food Stamp para sobreviver. A rigor, o subsídio federal (via Food Stamp, Medicare e outros programas sociais) contribuiu para completar o salário que esses trabalhadores recebem da empresa. É o “salário indireto pago pelo contribuinte para subsidiar a “competitividade” dessa empresa “moderna.” Uma cadeia de fastfood teve a cara de pau de criar um site para “educar” seus funcionários (ou terceirizados) para que fizessem orçamentos “inteligentes”. Uma das dicas era se candidatar ao Food Stamp, para completar a renda! A outra, cultivar bons hábitos alimentares para evitar gastos com saúde: e recomendava evitar... fastfood! Essa mesma cadeia financiava campanhas políticas que diziam que recebedores de Food Stamp eram aproveitadores, vagabundos “encostados no governo”.

Fragmentar, dividir, dominar

A fragmentação e descaracterização da classe trabalhadora não acontece “naturalmente”. É criada. Geralmente associamos o neoliberalismo com politicas macroeconômicas como a privatização e a desregulamentacão do comércio (nacional e internacional). Está certo. Mas uma parte da desregulamentação é um resultado combinada do que ocorre no nível macro, predominantemente protagonizado pela esfera estatal (legislação, normas), e do nível micro em que se combinam esses instrumentos políticos (legislação), alternados com a ação dos empresários. Estes desbaratam regras e resistências no mercado de trabalho, com a reengenharia das empresas e a constituição de cadeias “colaborativas “ de subcontratados e a flexibilização dos contratos de trabalho, via expedientes como contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas, agências de temporários, “cooperativas de trabalho, franquias, etc.

Draut exemplifica:
”Subcontratação é um dos modos mais usados pelas empresas para lançar para fora trabalhadores que não se enquadram na atividade-core, como os serviços de zeladoria, portaria, limpeza, armazenagem e atendimento a clientes. Apenas uma década antes, ou algo assim, um trabalhador de estoque e armazenagem de uma grande empresa nacional como a Hershey seria um efetivo empregado da Hershey, beneficiando-se dos mesmos benefícios dos profissionais de colarinho branco do marketing e do desenvolvimento de produto: salários altos, plano de saúde e de aposentadoria, férias e pagamento de dias perdidos por doença. Hoje, não é mais assim”
 
O pessoal de São Bernardo do Campo talvez devesse olhar assim para a Volkswagen dos anos 1970 e como ela “evoluiu”.

Essa perda de direitos e benefícios se efetiva por uma série de políticas com as quais se fantasia o trabalhador como “contratado independente”, prestador de serviço, liberando a empresa dos benefícios, dos impostos e taxas ligados à folha de pagamento, bem como da obediência a normas trabalhistas que regulam coisas como salário mínimo e piso, jornada e hora-extra, segurança, e assim por diante.

Declínio de sindicatos e movimentos trabalhistas


Tudo isso se associa com outro fenômeno, que é ao mesmo tempo fator causal aditivo e, em seguida, consequência, em circulo vicioso de degradação não apenas do nível de vida e da segurança, mas, também da capacidade política de resistência: a des-sindicalização, a fragmentação dos contratos e, portanto, da negociação, não mais coletiva, cada vez mais individual. Os sindicatos vêem sua base escorrer entre os dedos.

A taxa de sindicalização nos EUA nunca foi especialmente alta. Mas desabou nas últimas décadas. Em 2014, era de apenas 7% no setor privado, perto de 7,3 milhões de trabalhadores – um percentual que era de mais de 30% no meio dos anos 1950 e 20% mesmo nos anos 1980.

Para ‘ajudar’ o enfraquecimento dos sindicatos ocasionado pela fragmentação da classe, as empresas passaram a investir cada vez mais na contração de serviços especializados em “desbaratar”sindicatos e evitar criação de sindicatos, sua penetração nas empresas. Desenvolveram-se escritórios e equipes especializadas em conseguir isso das mais diferentes maneiras, incluindo as mais abjetas. Essa atividade – a chamada union-avoidance - virou uma verdadeira indústria. Nos anos 1960 havia uma centena de empresas desse tipo, as desbaratadoras de sindicatos – no meio dos 1980 já eram um milhar.

Essa ofensiva anti-sindicato se combinava com a burocratização e direitização das entidades trabalhistas, outro fenômeno muito forte nos Estados Unidos, quase uma marca do país. E isso se somou com a exclusão, histórica e reiterada, de negros e imigrantes. A racialização do conflito de classe como ferramenta de dominação.

Negros eram excluídos da legislação favorável aos trabalhadores do New Deal (anos 1930), por exemplo. A legislação sobre sindicalização, previdência social e direitos (como salário mínimo, p.ex.) era explicitamente negada, pela lei, a dois setores predominantemente negros: o trabalhador doméstico e o trabalhador agrícola. A lei não tinha cor, mas sua aplicação, na prática, era branca. Coisa similar, por outras vias, acontecia com a legislação e normas sobre acesso a crédito para casa própria e acesso a ensino superior. Ira Katznelson certa vez contou essa estória em um livro que comentaremos em outro artigo – When Affirmative Action Was White: An Untold History Of Racial Inequality In Twentieth-Century America. 2005, ed. W.W. Norton.

As restrições étnicas diminuíram com os programas de direitos civis dos anos 1960, mas não acabaram com muitos dos efeitos práticos da segregação.

Agora, aos negros, somam-se os latinos como os trabalhadores sem reconhecimento e sem direitos:

“Em algumas das maiores cidades americanas, imigrantes sem documentação batalham em nichos da economia em que o roubo de salários é crescente, pagamento abaixo do mínimo é usual, e trabalho abusivo e ambiente degradante são generalizados. Em cidades como Los Angeles, New York e San Francisco, o trabalho de imigrantes torna viáveis as muitas conveniências desejadas pela elite profissional afluente: manicures baratas, motoristas, entregadores de comida, cuidadores de crianças. E em todo o país, para americanos de todos os extratos sócio-econômicos, as safras da nação são colhidas majoritariamente por imigrantes.
 
Ironia número um: a política norte-americana de comércio, que envenena a sobrevivência de muitas famílias trabalhadoras do país, é também um fator determinante da imigração mexicana para os Estados Unidos.

No que diz respeito a imigrantes, aliás, uma ironia tétrica se junta a essa:
“Algumas pessoas desses países vêm para cá fugindo de ditaduras brutais, guerras civis e economias em desagregação – em grande parte um resultado da política externa norte-americana e da sua política de comércio – esperando que o Norte dê a eles e suas famílias uma vida melhor.”
 
Ou seja, Hilary Clinton pede aos latinos que votem nela, com a perspectiva de, talvez, ter algum tratamento mais humano. Mas esse voto também autoriza Hilary a fazer aquilo que mais comprovou estar pronta para fazer: criar problemas nos países dos quais os imigrantes saíram (mas seus parentes seguem morando...). Vote em mim, quem sabe você não seja expulso. Em troca, dê-me o poder de bombardear sua pátria, sabotar o governo do seu país, assassinar suas lideranças.

Mais irônico ainda é que a segregação é bi-partidária:
“Mesmo o presidente Obama, que foi um defensor verbal e ardente defensor sde uma reforma da imigração mais inclusiva, sucumbiu às pressões políticas para aumentar as deportações.De fato, mais imigrantes foram deportados sob seu governo do que durante a presidência de George W. Bush.
 
Desindustrialização e preconceito de classe

Aquilo que há muito tempo se chama de ”desindustrialização da América” contribuiu decisivamente para uma certa ”invisibilidade” da classe trabalhadora, a percepção de que havia “desaparecido”:

“Quando as grandes fábricas norte-americanas eram fechadas e esvaziadas, algumas de nossas maiores cidades ganhavam áridas extensões de terra desolada. Aquilo que um dia simbolizava produtividade e engenho tornar-se-ia uma reminiscência anacrônica da América blue-collar, ou destinada à decadência ou convertida em caros lofts para uma nova e ascendente classe de profissionais”

Algumas cidades foram particularmente atingidas. Entre 1972 e 1982, N.York perdeu 30% de seus empregos fabris, Detroit perdeu 40% e Chicago nada menos do que 57%. Uma devastação.

Para a população negra foi particularmente dolorosa a “transição” para essa nova ”sociedade do conhecimento” mesclada, de fato, com uma onda de empregos precários, vulneráveis e mal pagos. Em 1970, mais de 70% dos trabalhadores negros tinham empregos manuais na manufatura; em 1987, isso baixava para 27%.

Nesse cenário de destruição de empregos, algumas corporações, como dissemos, sugeriam que seus funcionários se candidatassem ao “bolsa família”do Food Stamp para completar salários baixos. Ao mesmo tempo, porém, apoiavam políticos e campanhas políticas que atacavam esses programas sociais como atrativos para preguiçosos e aproveitadores.

Draut mostra, porém, que 40% das famílias que usavam o Food Stampo tinham pelo menos um dos adultos trabalhando – os outros eram crianças, idosos, deficientes de todo tipo. Simplesmente metade dos trabalhadores do setor de aimentaçao e dos cuidadores (home care) dependiam do Food Stamp para suplementar seus magros salários!

Mesmo assim, de acordo com muitos republicanos, o uso do Food Stamp demonstrava uma “falha moral”. Os brasileiros conhecem bem essse discurso. Mitt Romney ficou ainda mais famoso como plutocrata e predador cínico quando declaram, na campanha presidencial de 2012, que 47% dos americanos eram pessoas que desprezava, aqueles que acreditam que sáo vítimas.. que acreditam que têm direitos a cuidados de saúde, comida, casa, a tudo que podem imaginar”

Discursos como esses tinham eco em parcelas da população, que verbalizava coisas como estas: “Claro, não quero que os impostos que pago sejam destinados a viciados que se aproveitam do sistema”. E exigem “critérios” e “testes seletivos”para filtrar esses aproveitadores. Mas... não exigem testes de drogas para benefícios públicos que vão para pessoas mais aquinhoadas, como as deduções fiscais para pagamento de juros de hipotecas, por exemplo. Nem para incorporadores de imóveis que utilizam grandes abatimentos de impostos. Não há teste de drogas para pais de classe média que reivindicam créditos e deduções para contratação de cuidados para seus filhos. Provavelmente ninguém pensaria em tais “critérios” para pessoas como essas. Draut sintetiza a razão de tal visão seletiva: existem uma premissa implícita de que elas são melhores, mais responsáveis e cumpridoras das normas, pelo simples fato de serem “de cima”. Portanto, merecem tais benefícios por definição.

A classe trabalhadora vista de fora. Ou de cima.

Um outro lado da “invisibilidade” da classe trabalhadora, ou de seu suposto “desaparecimento”, é o tratamento a ela conferido pela mídia. Exemplo:

“Tome por exemplo o Washington Post. Nos primeiros anos da Grande Recessão, o Post não tinha nenhum artigo sobre como os despejos por falta de pagamento atingiam principalmente os negros e latinos. Contudo, o jornal considerou muito relevante – relevante para primeira página – como alguns desses processos estavam atingindo proprietários em condomínios de Silver Springs, um afluente subúrbio de Washington D.C. e como compradores de casas de milhões de dólares estavam enfrentando esses processos”

Drauft destaca a importância desse pequeno exemplo, já que o Washington Post tem papel relevante na chamada “agenda-setting”, a definição dos temas no debate público. É o jornal de referencia para as elites políticas, diz ela. É a leitura diária para quem quer que trabalhe no Congresso ou procure influenciar o que ocorre em seus corredores.

Draut menciona ainda outro aspecto que estimula a baixa visibilidade dos temas relativos à classe trabalhadora: a origem das elites culturais, dos políticos e de seus assessores, em geral bem distantes desses segmentos populares. E tem mais: isso também será excluído dos temas privilegiados pelos financiadores de campanha. Afinal, cerca de 0,0011% da população, diz ela, controla essas mensagens, controlando os fundos que as financiam.

Dada essa invisibilidade planejada da CT e de seus problemas, não surpreende que quando se fale em alguma “soluçao” ela venha sob a forma do embuste.

Quando Obama venceu sua primeira eleição, ele e alguns de seus porta-vozes insinuavam que estava por vir um novo New Deal, para retomar a esperança que um dia Roosevelt utilizou como alavanca para transformar o pais e retirá-lo da paralisia da depressão. Curiosamente, agora, alguns jornalistas dizem algo similar com relacão aos projetos de Trump para atender às angustias da white working class que andou bajulando: um New Deal.

Mas, tanto no governo Obama quanto nas novas medidas anunciadas por Trump nada de similar ao New Deal aparece. Nenhum aperfeiçoamento ou ampliação da seguridade social, nada de planos de empregos públicos e frentes de trabalho para recuperar a infraestrutura e recuperar a renda dos trabalhadores. Nenhuma medida que reforme a democracia no local de trabalho, para contrabalançar o poder dos executivos.

Draut conclui que seria difícil algo assim ocorrer, a não ser que o “gigante adormecido”, a classe trabalhadora, se mexa. E indica alguns sinais de que isso está em marcha. Mas isso fica para outra estória, que fica para uma outra vez. Uma estória, como se vê, que nos ensina a pensar algo, também, sobre o gigante adormecido de um outro país...
Extraído: Diário Liberdade

domingo, 13 de novembro de 2016

Ruy Mauro Marini e a dialética da dependência


Ruy Mauro Marini e a dialética da dependência, produzido pela Editora Expressão Popular e pela Escola Nacional Florestan Fernandes faz parte da série Realidade Brasileira, destinada aos estudos em escolas do ensino médio, universidades, bibliotecas públicas, pontos de cultura e movimentos sociais. O principal objetivo desta publicação é disponibilizar para a juventude um material preparado a partir de ampla pesquisa bibliográfica sobre os lutadores sociais brasileiros, contando com a contribuição de especialistas no tema. 

Ruy Mauro Marini (1932-1997), representante da sociologia crítica latino-americana, dedicou sua vida à tarefa de explicar a causa da dependência e da desigualdade social e de propor os meios para sua superação à partir da perspectiva da classe trabalhadora. Seus estudos sobre o capitalismo latino-americano resultaram na reinterpretação de nossa história, profundamente atrelada à integração na dinâmica do capitalismo internacional.

Com o golpe civil-militar de 1964, Ruy - então professor da Universidade de Brasília - é preso e torturado pela Marinha e Exército, sendo obrigado a um longo exílio, que teria fim somente com a anistia, em 1979. Num primeiro momento, ele segue para o México, onde inicia seus estudos sobre a realidade latono-americana. Com a repressão aos movimentos do trabalhadores, Ruy é expulso deste país e parte para seu segundo exílio, no Chile. Lá, diante da intensa participação política, com o Governo Popular de Salvador Allende, Ruy torna-se dirigente do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria). É no Chile que elabora, junto a intelectuais de esquerda, a teoria marxista da dependência.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Como a substituição do ‘trabalhador’ pelo ‘empreendedor’ afeta a esquerda

Como a substituição do ‘trabalhador’ pelo ‘empreendedor’ afeta a esquerda

 

Discurso do PT passa por transformação profunda, com queda no sindicalismo e ascensão de autônomos e pequenos empresários. Novo cenário impõe desafio para o futuro da esquerda, diz antropólogo Carlos Gutierrez ao ‘Nexo’

O Partido dos Trabalhadores saiu desta eleição municipal de 2016 como uma partido mais fraco e cada vez menos ligado aos trabalhadores. O binômio que justifica o nome da sigla perdeu grande parte do seu sentido original. E da mística de seu propósito de fundação também.
Parte disso diz respeito aos casos de corrupção que envolvem seus principais líderes, o impeachment da presidente Dilma Rousseff e o crescimento de uma oposição liberal na economia e conservadora nos costumes.
Porém, uma outra parte dessa desidratação está relacionada ao fim de um ciclo que, por décadas, nutriu o discurso da luta de classes e da organização sindical, que era alma do PT e da esquerda no Brasil.
A ascensão da classe C, ocorrida em grande medida durante os 13 anos de presidências petistas, também contribuiu para a mudança do perfil social e econômico de uma parcela importante dos brasileiros.
“Há um processo de desconstrução da noção de classes sociais”, disse ao Nexo o antropólogo Carlos Gutierrez. Esse processo “faz com que não pensemos mais a partir da dicotomia operários e patrões, mas sim como colaboradores de um mesmo ideal, sem divergências de interesses. Isso mina a crítica social da esquerda e explica, em parte, o momento de sua derrocada no mundo.”
Ex-empregados, agora empreendedores, mostram ‘indiferença com relação às bandeiras históricas da esquerda’
O crescimento evangélico tem sido um dos vetores de transformação dessa mentalidade, sobretudo nas periferias. Se nos anos 1970 a Igreja Católica politizava os “trabalhadores”, hoje as igrejas evangélicas politizam os “empreendedores”.
Gutierrez pesquisa especialmente as identidades religiosas nas periferias e a produção social dos evangélicos, em doutorado na Unicamp. Em 2014, ele cursou um semestre de “gestão empresarial” na Igreja Universal do Reino de Deus, igreja à qual o prefeito eleito do Rio, Marcelo Crivella, é ligado.
Para Gutierrez, “a esquerda deveria incorporá-los [os antigos trabalhadores, convertidos em empreendedores, especialmente evangélicos] em seus núcleos partidários e organizações, pois aceitar a diferença e a pluralidade de visões de mundo que esse grupo social carrega é fundamental para a esquerda se transformar e também transformá-lo”.
O pesquisador explica que, entre os moradores de favelas, “53% dos entrevistados atribuía a melhoria de vida ao seu esforço, 24% à fé pessoal e apenas 5% ao governo”. Portanto, “essa descrença com relação à ação governamental na melhoria de vida revela também uma indiferença com relação às bandeiras históricas da esquerda.”

O ‘trabalhador’ está dando lugar ao ‘empreendedor’? Essa mudança é mais forte nas periferias?

CARLOS GUTIERREZ A antiga legislação trabalhista começa a dar lugar à forma mais flexível do ‘colaborador sem vínculo empregatício’, nessa etapa atual do capitalismo. Isso obriga muitos trabalhadores a se tornarem Pessoa Jurídica para continuar em sua atividade. Esse fenômeno compreende uma clara precarização das relações de trabalho e também a queda de arrecadação na Previdência, complicando a receita do Estado. Há uma tendência para que todos sejam empreendedores, uma vez que as regras coletivas de negociação passam a ser substituídas por acordos individuais.
‘No Brasil, 35,4% da população adulta possui negócio próprio, índice superior à China e aos EUA’
A nova classe C - chamada pelo sociólogo Jessé de Souza de ‘batalhadores’ - encontrou no empreendedorismo uma possibilidade de ascensão social. Atualmente, boa parte de moradores das periferias das grandes cidades,  antigos assalariados, ou trabalhadores que ofereciam seu serviço de forma esporádica, dedica-se a um pequeno empreendimento, como bar, lanchonete, costura, salão de cabeleireiro, oficina mecânica.
Hoje, no Brasil, 35,4% da população adulta possui negócio próprio, índice superior à China e aos EUA. Evidentemente, parte desse crescimento pode ser explicado pelo aumento de formalizações de negócios já existentes, mas 45% dos novos empreendedores trabalhavam antes com carteira assinada, o que indica um aumento considerável. Nas favelas, 40% dos moradores deseja ser dono do próprio negócio.

Qual o papel das igrejas evangélicas nessa mudança?

CARLOS GUTIERREZ As igrejas evangélicas tiveram um importante papel no processo de ascensão social brasileiro, em conjunto com medidas como valorização de salário mínimo e diversos programas sociais. Na religião, os fiéis encontraram incentivo e apoio, e desenvolveram sua autoestima, ganhando uma nova esperança para reagir em um cenário completamente adverso. Além disso, a religiosidade evangélica contribui para a construção de um ethos baseado no trabalho duro, ou seja, uma disposição para lutar e aguentar extensas jornadas de trabalho, associadas, em muitos casos, a período de estudo noturno. Muitas dessas pessoas atribuem sua força e resistência à fé e aos ensinamentos ministrados nas igrejas.
‘As igrejas evangélicas foram responsáveis por instaurar um processo de reflexão acerca das relações de trabalho e da desigualdade social no país’
Em minha pesquisa, pude perceber um forte incentivo ao empreendedorismo, encarado por pastores e fiéis como uma solução frente ao cenário de desemprego e de empregos mal remunerados. Essa iniciativa não se reduz apenas a cultos e reuniões, mas há instituições que contam com cursos e oficinas de formação para capacitar seus fiéis a empreender. A Igreja Universal é uma delas. Os fiéis também são frequentemente convidados a refletir sobre o futuro, para estabelecer planos, conseguindo racionalizar a vida.
Porém, o que gostaria de ressaltar é que muito além do incentivo ao empreendedorismo, as igrejas evangélicas foram responsáveis por instaurar um processo de reflexão acerca das relações de trabalho e da desigualdade social no país. Na perspectiva dessas pessoas, a igreja foi fundamental para se revoltarem diante situações de humilhação e de degradação no emprego. Na perspectiva das pessoas que entrevistei e convivi, ser assalariado é estar condenado a ser explorado, a uma vida miserável, sem autonomia e sem realização pessoal. Para eles, a solução se encontra no negócio próprio. Trata-se de uma crítica complexa, pois ao mesmo tempo em que condena o capitalismo, encontra nele próprio uma solução.

Os partidos de esquerda têm como força maior, tradicionalmente, a defesa do direito do trabalhador, da organização sindical e da luta de classes. Que terreno essa mensagem tem encontrado hoje?

CARLOS GUTIERREZ Desde os anos 1970 a esquerda tem abraçado outras causas sociais como o ambientalismo, feminismo, movimento negro e LGBT. Logo, o próprio discurso da esquerda também se fragmentou e hoje a luta social divide espaço com outras bandeiras.
Eu digo isso pois são temas que podem levar setores da sociedade com uma perspectiva mais tradicional, com relação à moral, a rejeitar o projeto político da esquerda, mesmo que no plano econômico estejam de acordo com maior regulamentação da economia e proteção ao trabalhador. Enfim, são diversos os fatores que podem explicar o enfraquecimento da esquerda. A questão da moralidade é um deles.
Novos empreendedores estão interessados em menor carga tributária, mais segurança e melhores condições de empréstimo, que não são bandeiras históricas da esquerda
Para esses empreendedores, muitos atribuem o sucesso ao próprio trabalho e à fé. Pesquisa realizada pelo DataFavelamostra que 53% dos entrevistados atribuía a melhoria de vida ao seu esforço, 24% à fé pessoal e apenas 5% ao governo. Essa descrença com relação à ação governamental na melhoria de vida revela também uma indiferença com relação às bandeiras históricas da esquerda.
Considerando-se também que muitos desses assalariados, hoje, são empreendedores, a crítica nesse terreno não parece fazer muito sentido a essas pessoas, atualmente mais interessadas em temas como, por exemplo, carga tributária, segurança e condições de empréstimo para pequenos empresários. Isso não significa, absolutamente, que a defesa do trabalhador e da CLT deixaram de importar a um amplo setor da sociedade, mas sim que novos interesses emergiram a partir do desenvolvimento de uma nova classe social e seus anseios.

Quanto da derrocada da esquerda pode ser creditada a essa mudança na organização do trabalho?

CARLOS GUTIERREZ No capitalismo contemporâneo, em muitas atividades profissionais, as negociações coletivas deram lugar aos acordos individuais, o que enfraqueceu os sindicatos. Dessa forma, um importante agente mobilizador nas sociedades modernas perdeu espaço. Além disso, o setor industrial, onde se concentrava historicamente a classe trabalhadora, diminuiu em todo o mundo e perde espaço para o setor de serviços, em um ambiente menos sindicalizado.
Fim da dicotomia entre operário e patrão mina a crítica social da esquerda e explica, em parte, sua derrocada no mundo
No Brasil, a atividade industrial diminuiu em ritmo muito mais acelerado do que a taxa mundial, devido à financeirização da economia e ao crescimento da taxa de juros que favoreceram mais o capital especulativo.
Enquanto isso, no plano simbólico, há um processo de desconstrução da noção de classes sociais. Na gramática desse novo capitalismo, não temos mais patrões e funcionários, mas sim líderes e colaboradores; operário torna-se operador e assim por diante.
No ambiente das empresas, essas classificações mais neutras produzem novas pequenas hierarquias que desmobilizam anseios coletivos de trabalhadores, anteriormente organizados sob o mesmo status. Essa mudança não afeta somente uma palavra, mas é responsável por produzir uma nova forma de pensar e justificar o capitalismo. É a ideologia que sustenta o capitalismo moderno e que faz com que não pensemos mais a partir da dicotomia operários e patrões, mas sim como colaboradores de um mesmo ideal, sem divergências de interesses. Isso mina a crítica social da esquerda e explica, em parte, o momento de sua derrocada no mundo. No Brasil, acredito que essa queda da esquerda explica-se mais pelos escândalos de corrupção dos governos petistas e pelo atual momento de crise econômica, atribuída ao PT.

Empreendedores individuais são por natureza mais liberais economicamente do que os empregados assalariados?

CARLOS GUTIERREZ A mudança da situação implica também uma transformação na visão de mundo e nos anseios das pessoas. Pode ser que as necessidades sejam outras, o que pode significar uma visão mais liberal com relação a impostos e encargos trabalhistas. Entretanto, em muitas igrejas, por exemplo, há uma pressão para a regularização dos negócios, por meio do Supersimples e também pela formalização dos empregados. Há um certo componente ético que atribui uma importância à carteira assinada dos trabalhadores, o que, talvez, não fosse encarado por muitos como uma visão perfeitamente liberal.

O que a esquerda tem a oferecer para esse novo setor da sociedade daqui para frente?

CARLOS GUTIERREZ A esquerda deve fazer um profundo processo de reflexão com relação à emergência dessa nova classe social e seus anseios e, de forma mais geral, e em relação às novas configurações do capitalismo. Além disso, precisa fazer uma autocrítica à forma como se relacionou com o poder e com o sistema político nas gestões petistas.
‘A melhor coisa que a esquerda pode oferecer é uma mudança de atitude, aceitando o protagonismo dos pobres e sua capacidade de reflexão, ao invés de limitar-se à crítica desses sujeitos como ignorantes e/ou alienados’
A sobrevivência da esquerda passa pela incorporação desses batalhadores, muitos deles evangélicos. Por isso, precisamos estabelecer uma comunicação direta com esses grupos, de forma aberta e respeitosa, aceitando o que eles têm a dizer. Só assim poderemos entender o que eles pensam e também aprender com eles, pois, certamente, eles devem ter algo a nos ensinar, principalmente no que diz respeito à mobilização de massas e auxílio social.
Isso não os exime de críticas, que devem ser feitas, mas também é necessário conhecer as críticas dessas pessoas. Acredito que a melhor coisa que a esquerda possa oferecer é uma mudança de atitude, aceitando o protagonismo dos pobres e sua capacidade de reflexão, ao invés de limitar-se à crítica desses sujeitos como ignorantes e/ou alienados. A esquerda deveria incorporá-los em seus núcleos partidários e organizações, pois aceitar a diferença e a pluralidade de visões de mundo que esse grupo social carrega é fundamental para a esquerda se transformar e também transformá-lo. A esquerda precisa, urgentemente, produzir um descentramento de seu ethos, predominantemente, de classe média, entender que não é dona de uma verdade absoluta e incorporar novas visões de mundo. Nesse processo, ganha a democracia brasileira.

Há relação entre o crescimento econômico da classe C e o crescimento da direita e da centro-direita nestas eleições municipais de 2016?

CARLOS GUTIERREZ Não. Acredito que os principais fatores de descrédito da esquerda foram os escândalos de corrupção dos governos do PT, uma cobertura maciça dos meios de comunicação a respeito desses casos, a intensa mobilização das pessoas nas redes sociais contra a esquerda e contra o que consideram como sendo de esquerda. Além disso, assistimos também ao surgimento de uma nova força política ultraliberal, caso do MBL (Movimento Brasil Livre), que teve grande poder de mobilização nas manifestações pelo impeachment.
Desde as manifestações de Junho de 2013, a esquerda vem perdendo espaço no plano eleitoral e mesmo na capacidade de mobilização de pessoas. Em 2014, Dilma reelegeu-se de forma muito apertada e os brasileiros elegeram um Congresso muito mais conservador. O atual pleito apenas foi o aprofundamento de um processo que já havia começado antes.
Com relação à classe C, não é possível afirmar que ela tenha abandonado o barco por conta de sua ascensão social. Abandonou por conta dos fatores acima. Da mesma forma, caso a economia não melhore, poderá voltar a votar em um candidato do campo de esquerda no futuro.
  • Por: João Paulo Charleaux
  •   
    Fonte: Nexo Jornal

    domingo, 30 de outubro de 2016

    Precisamos falar sobre a vaidade na vida acadêmica -

    Combater o mito da genialidade, a perversidade dos pequenos poderes e os “donos de Foucault” é fundamental para termos uma universidade melhor

    A vaidade intelectual marca a vida acadêmica. Por trás do ego inflado, há uma máquina nefasta, marcada por brigas de núcleos, seitas, grosserias, humilhações, assédios, concursos e seleções fraudulentas. Mas em que medida nós mesmos não estamos perpetuando essemodus operandi para sobreviver no sistema? Poderíamos começar esse exercício auto reflexivo nos perguntando: estamos dividindo nossos colegas entre os “fracos” (ou os medíocres) e os “fodas” (“o cara é bom”).

    As fronteiras entre fracos e ‘fodas’ começam nas bolsas de iniciação científica da graduação. No novo status de bolsista, o aluno começa a mudar a sua linguagem. Sem discernimento, brigas de orientadores são reproduzidas. Há brigas de todos os tipos: pessoais (aquele casal que se pegava nos anos 1970 e até hoje briga nos corredores), teóricas (marxistas para cá; weberianos para lá) e disciplinares (antropólogos que acham sociólogos rasos generalistas, na mesma proporção em que sociólogos acham antropólogos bichos estranhos que falam de si mesmos).

    A entrada no mestrado, no doutorado e a volta do doutorado sanduíches vão demarcando novos status, o que se alia a uma fase da vida em que mudar o mundo já não é tão importante quanto publicar um artigo em revista qualis A1 (que quase ninguém vai ler).

    Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, dizíamos que quando alguém entrava no mestrado, trocava a mochila por pasta de couro. A linguagem, a vestimenta e o ethosmudam gradualmente. E essa mudança pode ser positiva, desde que acompanhada por maior crítica ao sistema e maior autocrítica – e não o contrário.

    A formação de um acadêmico passa por uma verdadeira batalha interna em que ele precisa ser um gênio. As consequências dessa postura podem ser trágicas, desdobrando-se em dois possíveis cenários igualmente predadores: a destruição do colega e a destruição de si próprio.

    O primeiro cenário engloba vários tipos de pessoas (1) aqueles que migraram para uma área completamente diferente na pós-graduação; (2) os que retornaram à academia depois de um longo tempo; (3) os alunos de origem menos privilegiada; (4) ou que têm a autoestima baixa ou são tímidos. Há uma grande chance destas pessoas serem trituradas por não dominarem o ethos local e tachadas de “fracos”.

    Os seminários e as exposições orais são marcados pela performance: coloca-se a mão no queixo, descabela-se um pouco, olha-se para cima, faz-se um silêncio charmoso acompanhado por um impactante “ãaaahhh”, que geralmente termina com um “enfim” (que não era, de fato, um “enfim”). Muitos alunos se sentem oprimidos nesse contexto de pouca objetividade da sala de aula. Eles acreditam na genialidade daqueles alunos que dominaram a técnica da exposição de conceitos.

    Hoje, como professora, tenho preocupações mais sérias como estes alunos que acreditam que os colegas são brilhantes. Muitos deles desenvolvem depressão, acreditam em sua inferioridade, abandonam o curso e não é raro a tentativa de suicídio como resultado de um ego anulado e destruído em um ambiente de pressão, que deveria ser construtivo e não destrutivo.

    Mas o opressor, o “foda”, também sofre. Todo aquele que se acha “bom” sabe que, bem lá no fundo, não é bem assim. Isso pode ser igualmente destrutivo. É comum que uma pessoa que sustentou seu personagem por muitos anos, chegue na hora de escrever e bloqueie.

    Imagine a pressão de alguém que acreditou a vida toda que era foda e agora se encontra frente a frente com seu maior inimigo: a folha em branco do Word. É “a hora do vâmo vê”. O aluno não consegue escrever, entra em depressão, o que pode resultar no abandono da tese. Esse aluno também é vítima de um sistema que reproduziu sem saber; é vítima de seu próprio personagem que lhe impõe uma pressão interna brutal.

    No fim das contas, não é raro que o “fraco” seja o cavalinho que saiu atrasado e faça seu trabalho com modéstia e sucesso, ao passo que o “foda” não termine o trabalho. Ademais, se lermos o TCC, dissertação ou tese do “fraco” e do “foda”, chegaremos à conclusão de que eles são muito parecidos.

    A gradação entre alunos é muito menor do que se imagina. Gênios são raros. Enroladores se multiplicam. Soar inteligente é fácil (é apenas uma técnica e não uma capacidade inata), difícil é ter algo objetivo e relevante socialmente a dizer.

    Ser simples e objetivo nem sempre é fácil em uma tradição “inspirada” (para não dizer colonizada) na erudição francesa que, na conjuntura da França, faz todo o sentido, mas não necessariamente no Brasil, onde somos um país composto majoritariamente por pessoas despossuídas de capitais diversos.

    É preciso barrar imediatamente este sistema. A função da universidade não é anular egos, mas construí-los. Se não dermos um basta a esse modelo a continuidade desta carreira só piora. Criam-se anti-professores que humilham alunos em sala de aula, reunião de pesquisa e bancas. Anti-professores coagem para serem citados e abusam moral (e até sexualmente) de seus subalternos.

    Anti-professores não estimulam o pensamento criativo: por que não Marx e Weber? Anti-professores acreditam em lattes e têm prazer com a possibilidade de dar um parecer anônimo, onde a covardia pode rolar às soltas.

    O dono do Foucault

    Uma vez, na graduação, aos 19 anos, eu passei dias lendo um texto de Foucault e me arrisquei a fazer comparações. Um professor, que era o dono do Foucault, me disse: “não é assim para citar Foucault”.

    Sua atitude antipedagógica, anti-autônoma e anti-criativa, me fez deixar esse autor de lado por muitos anos até o dia em que eu tive que assumir a lecture “Foucault” em meu atual emprego. Corrigindo um ensaio, eu quase disse a um aluno, que fazia um uso superficial do conceito de discurso, “não é bem assim…”.

    Seria automático reproduzir os mecanismos que me podaram. É a vingança do oprimido. A única forma de cortamos isso é por meio da autocrítica constante. É preciso apontar superficialidade, mas isso deve ser um convite ao aprofundamento. Esquece-se facilmente que, em uma universidade, o compromisso primordial do professor é pedagógico com seus alunos, e não narcisista consigo mesmo.

    Quais os valores que imperam na academia? Precisamos menos de enrolação, frases de efeitos, jogo de palavras, textos longos e desconexos, frases imensas, “donos de Foucault”. Se quisermos que o conhecimento seja um caminho à autonomia, precisamos de mais liberdade, criatividade, objetividade, simplicidade, solidariedade e humildade.

    O dia em que eu entendi que a vida acadêmica é composta por trabalho duro e não genialidade, eu tirei um peso imenso de mim. Aprendi a me levar menos a sério. Meus artigos rejeitados e concursos que fiquei entre as últimas colocações não me doem nem um pouquinho. Quando o valor que impera é a genialidade, cria-se uma “ilusão autobiográfica” linear e coerente, em que o fracasso é colocado embaixo do tapete. É preciso desconstruir o tabu que existe em torno da rejeição.

    Como professora, posso afirmar que o número de alunos que choraram em meu escritório é maior do que os que se dizem felizes. A vida acadêmica não precisa ser essa máquina trituradora de pressões múltiplas. Ela pode ser simples, mas isso só acontece quando abandonamos o mito da genialidade, cortamos as seitas acadêmicas e construímos alianças colaborativas.

    Nós mesmos criamos a nossa trajetória. Em um mundo em que invejas andam às soltas em um sistema de aparências, é preciso acreditar na honestidade e na seriedade que reside em nossas pesquisas.

    Transformação

    Tudo depende em quem queremos nos espelhar. A perversidade dos pequenos poderes é apenas uma parte da história. Minha própria trajetória como aluna foi marcada por orientadoras e orientadores generosos que me deram liberdade única e nunca me pediram nada em troca.

    Assim como conheci muitos colegas que se tornaram pessoas amargas (e eternamente em busca da fama entre meia dúzia), também tive muitos colegas que hoje possuem uma atitude generosa, engajada e encorajadora em relação aos seus alunos.

    Vaidade pessoal, casos de fraude em concursos e seleções de mestrado e doutorado são apenas uma parte da história da academia brasileira. Tem outra parte que versa sobre criatividade e liberdade que nenhum outro lugar do mundo tem igual. E essa criatividade, somada à colaboração, que precisa ser explorada, e não podada.

    Hoje, o Brasil tem um dos cenários mais animadores do mundo. Há uma nova geração de cotistas ou bolsistas Prouni e Fies, que veem a universidade com olhos críticos, que desafiam a supremacia das camadas médias brancas que se perpetuavam nas universidades e desconstroem os paradigmas da meritocracia.

    Soma-se a isso o frescor político dos corredores das universidades no pós-junho e o movimento feminista que só cresce. Uma geração questionadora da autoridade, cansada dos velhos paradigmas. É para esta geração que eu deixo um apelo: não troquem o sonho de mudar o mundo pela pasta de couro em cima do muro.

    Por  Rosana Pinheiro-Machado Do Carta Capital

    Retirado do: Site geledes.org.br

    quinta-feira, 27 de outubro de 2016

    'O governo está nos chamando para a guerra' Por: Nildo Ouriques



    Entrevista com o economista e presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC, Nildo Ouriques sobre a conjuntura econômica brasileira. Não há crise fiscal, é guerra de classes.

    sábado, 10 de setembro de 2016

    O caráter da repressão

    O caráter da repressão

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    Balzac, que percebeu tanta coisa, percebeu também qual era o papel que a polícia estava começando a desempenhar no mundo contemporâneo. Fouché a tinha transformado num instrumento preciso e onipotente, necessário para manter a ditadura de Napoleão. Mas criando dentro da ditadura um mundo paralelo, que se torna fator determinante e não apenas elemento determinado.
    O romancista tinha mais ou menos dezesseis anos quando Napoleão caiu, e assim pôde ver como a polícia organizada por Fouché adquirira por acréscimo (numa espécie de desenvolvimento natural das funções) o seu grande papel no mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação de legalidade.
    A polícia de um soberano absoluto é ostensiva e brutal, porque o soberano absoluto não se preocupa em justificar demais os seus atos. Mas a de um Estado constitucional tem de ser mais hermética e requintada. Por isso, vai-se misturando organicamente com o resto da sociedade, pondo em prática um modelo que se poderia chamar de “veneziano” — ou seja, o que estabelece uma rede sutil de espionagem e de delação irresponsável (cobertas pelo anonimato) como alicerce do Estado.
    Para este fim, criam-se por toda a parte vínculos íntimos e profundos. A polícia se disfarça e assume uma organização dupla, bifurcando-se numa parte visível (com os seus distintivos e as suas siglas) e numa parte secreta, com o seu exército impressentido de espiões e alcaguetes, que em geral aparecem como exercendo ostensivamente uma outra atividade. Este funcionamento duplo permite satisfazer também a um requisito intransigente da burguesia, dominante desde os tempos de Balzac, e dispensado só nos casos de salvação da classe: a tarefa policial deve ser executada implacavelmente, mas sem ferir demais a sensibilidade dos bem-postos na vida. Para isso, é preciso esconder tanto quanto possível os aspectos mais desagradáveis da investigação e da repressão.
    Para obter esse resultado, a sociedade suscita milhares de indivíduos de alma convenientemente deformada. Assim como os “comprachicos” d’O Homem que Ri, de Victor Hugo, estropiavam fisicamente as crianças a fim de obterem aleijões para divertimento dos outros, a sociedade puxa para fora daqueles indivíduos a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a tara — e os remete à função repressora.
    Daí o interesse da literatura pela polícia, desde que Balzac viu a solidariedade orgânica entre ela e a sociedade, o poder dos seus setores ocultos e o aproveitamento do marginal, do degenerado, para o fortalecimento da ordem. Nos seus livros há um momento onde o transgressor não se distingue do repressor, mesmo porque este pode ter sido antes um transgressor, como é o caso de Vautrin, ao mesmo tempo o seu maior criminoso e o seu maior policial.
    Dostoievski percebeu uma coisa mais sutil: a função simbólica do policial como sucedâneo possível da consciência — a sociedade entrando na casa de cada um através da pressão ou do desvendamento que ele efetua. Em Crime e Castigo, o juiz de instrução Porfírio Porfiriovitch vai-se tornando para Raskolnikof uma espécie de desdobramento dele mesmo.
    Mas foi Kafka n’O Processo, quem viu o aspecto por assim dizer essencial e ao mesmo tempo profundamente social. Viu a polícia como algo inseparável da justiça, e esta assumindo cada vez mais um aspecto de polícia. Viu de que maneira a função de reprimir (mostrada por Balzac como função normal da sociedade) adquire um sentido transcendente, ao ponto de acabar se tornando a sua própria finalidade. Quando isso ocorre, ela desvenda aspectos básicos do homem, repressor e reprimido.
    Para entrar em funcionamento, a polícia-justiça de Kafka não tem necessidade de motivos, mas apenas de estímulos. E uma vez em funcionamento não pode mais parar, porque a sua finalidade é ela própria. Para isso, não hesita em tirar qualquer homem do seu trilho até liquidá-lo de todo, física ou moralmente. Não hesita em pô-lo (seja por que meio for) à margem da ação, ou da suspeita de ação, ou da vaga possibilidade de ação que o Estado quer reprimir, sem se importar se o indivíduo visado está envolvido nela. Em face da importância ganha pelo processo punitivo (que acaba tendo o alvo espúrio de funcionar, pura e simplesmente, mesmo sem motivo), a materialidade da culpa perde sentido.
    A polícia aparece então como um agente que viola a personalidade, roubando ao homem os precários recursos de equilíbrio de que usualmente dispõe: pudor, controle emocional, lealdade, discrição — dissolvidos com perícia ou brutalidade profissionais. Operando como poderosa força redutora, ela traz à superfície tudo o que tínhamos conseguido reprimir, e transforma o pudor em impudor, o controle em desmando, a lealdade em delação, a discrição em bisbilhotice trágica.
    Daí uma espécie de monstruosa verdade suscitada pela polícia. Verdade oculta de um ser que ia penosamente se apresentando como outro, que de fato era outro, na medida em que não era obrigado a recair nas suas profundidades abissais. Aliás, seria mais correto dizer que o outro é o suscitado pela polícia. O outro, com a sua verdade imposta ou desentranhada pelo processo repressor, extraída, contra a vontade, dos porões onde tinha sido mais ou menos trancada.
    De fato, a polícia tem necessidade de construir a verdade do outro para poder manipular o eu do seu paciente. A sua força consiste em opor o outro ao eu, até que este seja absorvido por aquele e, deste modo, esteja pronto para o que se espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio. A polícia esculpe o outro por meio do interrogatório, o vasculhamento do passado, a exposição da fraqueza, a violência física e moral. No fim, se for preciso, poderá inclusive empregar a seu serviço este outro, que é um novo eu, manipulado pela dosagem de um ingrediente da mais alta eficácia: o medo — em todos os seus graus e modalidades.
    * * *
    Um exemplo dessa redução degradante é o comportamento do delegado com o encanador, no filme Inquérito sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, de Elio Petri.
    O delegado, que é também o criminoso, resolve brincar com o destino e como que provar o mecanismo autodominante da polícia, a sua finalidade em si mesma. Para isso, dirige-se a um transeunte qualquer, escolhido ao acaso, e confessa que é o matador procurado, dando como prova a gravata azul celeste que usa e fora vista nele. Convence então o pobre transeunte a ir à polícia e relatar o fato, dando-lhe para levar como indício (e evidentemente como baralhamento do indício) diversas gravatas iguais, que mostrariam como era a do assassino.
    Chegado à polícia, o transeunte, que é encanador, dá de cara com o assassino que se confessara na rua, e que ia delatar; mas que agora está no seu papel de delegado. Este o interroga com brutalidade e o pressiona física e moralmente para dizer quem era o assassino que se desvendara a ele na rua. Mas o pobre diabo, completamente desorganizado pela contradição inexplicável, não tem coragem para tanto. Com isso, vai ficando suspeito, vai-se caracterizando legalmente corno possível criminoso, até desaparecer dos nossos olhos, trôpego, arrasado, por uns corredores sujos que levam aonde bem suspeitamos.
    A força que o paralisa, e que nos paralisaria eventualmente, vem de uma ambiguidade, misteriosa na aparência, mas eficaz, cuja natureza foi sugerida acima: o repressor e o transgressor são o mesmo, não apenas fisicamente e do ponto de vista dos papéis sociais, mas ontologicamente (o outro é o eu).
    Tudo nesse episódio é modelar: a gratuidade com que se escolhe o culpado; a imposição de um comportamento não intencional (ir à polícia com as gravatas azuis no braço, delatar um criminoso sem nome, que não interessa); o baralhamento da verdade, quando ele constata que o homem que se denunciara como assassino é também o delegado; a transformação do inocente em suspeito e do suspeito em delinquente, aceita pelo próprio inocente, do fundo da sua desorganização mental, forjada pela inquirição.
    O fulcro desse processo talvez seja aquele momento do interrogatório em que o delegado pergunta ao pobre diabo, já zonzo, qual é a sua profissão.
    “— Sou hidráulico”, responde ele.
    O delegado esbraveja:
    ” — Qual hidráulico qual nada! Agora toda a gente quer ser alguma coisa bonita! O que você é é encanador, não é? En-ca-na-dor! Por que hi-dráu-li-co?!”.
    E o desgraçado, já sem fôlego nem prumo: “— Sim, sou encanador”’. (Cito de memória porque não tenho o roteiro.)
    Vê-se que o pobre homem, a exemplo de toda a sua categoria profissional, tinha adotado uma designação de cunho técnico (idraulico, em italiano), que o afasta da velha designação artesanal “encanador” (stagnaro, em italiano), e assim lhe dá a ilusão de um nível aparentemente mais elevado, ou pelo menos mais científico e atualizado. Mas o policial o reduz ao nível anterior, desmascara a sua autopromoção, lira para fora a sua verdade indesejada. E, no fim, é como se ele dissesse:
    “— Sim, confesso, não sou um técnico de nome sonoro, que evoca inocentemente alguma coisa de engenharia; sou mesmo um pobre diabo, um encanador. Estou reduzido ao meu verdadeiro eu, libertado do outro”.
    Mas, na verdade, foi a polícia que lhe impôs o outro como eu. A polícia efetuou um desmantelamento da personalidade, arduamente construída, e trouxe de volta o que o homem tinha superado. Sinistra mentalidade redutora, que nos obriga a ser, ou voltar a ser, o que não queremos ser; e que mostra como Alfred de Vigny tinha razão, quando anotou seu diário:
    “Não tenha medo da pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenha medo do medo”
    candido* ANTONIO CANDIDO DE MELLO E SOUZA é Sociólogo, estudioso da literatura brasileira e universal e professor universitárioTexto publicado em “Opinião”, em janeiro de 1972, resgatado pelo Outras palavras, disponível em http://outraspalavras.net/brasil/o-carater-da-repressao-segundo-antonio-candido/

    domingo, 27 de março de 2016

    Nós que Aqui Estamos, Por Vós Esperamos (1999)



    Numa grande colagem de imagens de arquivos, obras do cinema e documentos de vídeo, Marcelo Masagão retrata nesse documentário as grandes mudanças que marcaram o século XX, restratando pequenos personagens em grandes histórias e pequenas histórias com suas grandes personagens. Uma incrível retrospectiva de um século que marcou a mudança de como o homem pensa e interagecom o seu mundo e com ele mesmo.

    Sobre carecimentos radicais e a distinção entre “radicalismo de direita e radicalismo de esquerda”

    “Não se iludam / Não me iludo / Tudo agora mesmo
    pode estar por um segundo” (Tempo Rei – Gilberto Gil).
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    A modernidade capitalista, diz Agnes Heller, produziu carecimentos aos quais não pode responder. Por isto a filósofa húngara os chama de carecimentos radicais.
    O avanço das forças produtivas engendrou as possibilidades de saciar as necessidades básicas de alimentação, habitação, educação e bem-estar da população, mas forjou também relações sociais e de poder que negam estes benefícios para amplas parcelas da população.
    A modernidade arrancou o homem de seus localismos restringentes e o lançou num intrincado mundo de relações universais, ao mesmo tempo em que lhes tirou – das pessoas – quaisquer capacidades de intervir de modo consequente na própria comunidade ou nas estruturas sociais que põem suas condições de existência.
    O modo de vida da modernidade capitalista fez emergir um tipo de homem, afirma Leandro Konder, que perambula num mundo de coisas, sem conexões conscientes com os outros e com a comunidade. Trata-se de um tipo de homem que vive a anomia e a indeterminação dos fugazes momentos como expressão da liberdade. Este mesmo homem que se embriaga saltitante nos interstícios da vida moderna não tem nenhum controle efetivo sobre o que ele mesmo experimenta ou sobre as funções vitais da sociedade ou da cidade.
    O tipo de homem moderno experimenta contradições que, às vezes, dilaceram sua personalidade: ele sente o carecimento de trabalhar menos e usufruir mais, mas é constrangido a jornadas laborais cada vez maiores, mais intensas e, em muitos casos, em atividades mutiladoras do espírito e do corpo. Ele vive como carência o encontro, a abertura para o outro, num mundo que lhe constrange a olhar somente para si mesmo e ver o outro como meio de conseguir algum benefício. Ele deseja cultivar o espírito como fim em si mesmo no usufruto das artes, dos conhecimentos de todos os povos e em todas as línguas, mas é encantoado em afazeres alienadores cujo objetivo é unicamente acumular capital para a glória da classe burguesa… E mesmo quando frequenta a universidade, o homem moderno é instado a formar-se o mais rápido possível, tornando-se um eficiente funcionário do mister de fazer dinheiro. Pulsa nele o carecimento de abrir as portas de casa para a rua e caminhar por ela à noite, de preferência às noites de segunda-feira, colhendo seus cheiros, brisas e encontros… Mas é limitado pelas paredes dos barracos ou grades de condomínio; pelas vielas estreitas e escuras ou pelo medo dos donos da rua – os carros em disparada, os tiros da polícia e das classes perigosas, a vigilância armada ou as câmeras sempre focadas na transgressão.
    As contradições da modernidade capitalista interpelam em profundo os sentimentos e a razão do tipo humano moderno, impondo ingentes desafios para os que almejam algum equilíbrio em face das dilacerações que vivenciam. O pensamento capaz de responder satisfatoriamente a estas contradições é aquele que as assume como constituidoras do real, as problematiza em profundidade, procurando explicitá-las e conquistar um horizonte de sentido para sua ação no mundo. Nessa busca, há de haver sínteses entre os motivos pessoais – a busca da felicidade, por exemplo – e o engajamento na práxis social para transformar o mundo na pátria da humanidade. Esta é a filosofia radical, pois capaz de ir aos fundamentos das contradições e oferecer horizontes para a resolução positiva daquilo que obstaculiza a realização dos carecimentos radicais.
    Os indivíduos capazes de assumir as contradições sociais e os dilemas pessoais que os dilaceram e orientar sua conduta para a realização positiva destas contradições e dilemas é o homem radical de esquerda. Ele não se furta de assumir a transformação das condições estruturais da sociedade como experiência pessoal a ser vivida apaixonadamente. Ele aprende a lidar com as dissintonias de sua vida privada e os requerimentos de sua militância com coragem e é capaz de encontrar os momentos (mediações) em que uma dimensão se transforma na outra. Ele é capaz de interiorizar as dores da humanidade e transformá-las em motivo de engajamento sem deixar de cuidar de si e dos seus amados. Ele sabe que a superação positiva das contradições que dilaceram a sociedade é uma função da luta coletiva, mas está ciente, também, que precisa cultivar seu espírito e seus afetos.
    O radicalismo de esquerda, diz Heller, prima sempre pelo esclarecimento e pela democracia, mesmo quando está isolado e congrega poucas pessoas. Pois sabe que a tarefa da transformação social é histórica e resulta de sínteses complexas de forças coletivas que vivem e renovam nas ações dos indivíduos. Estes devem, portanto, estar conscientes e convencidos de seu papel. Sabe que, além das estratégias de guerra que jogam importante papel na definição dos rumos da conjuntura, há algo de mais universal e essencial: o fluxo de relações sociais e modos de vida que só se transformam pelo encadeamento de complexas forças sociais que agem com alto grau de espontaneidade. Intui, pois, que os valores mais universais se materializam na medida em que vão afastando os seus contrapostos e se plasmando no próprio cotidiano. Uma tarefa dessa envergadura é muito provável que exija a crítica das armas, mas jamais terá êxito se não puser em marcha um largo e complexo trabalho de educação e hegemonia. O esclarecimento e a democracia jogam, pois, papeis decisivos para as conquistas de longo alcance.
    As contradições da modernidade criam, com a mesma necessidade, o pensamento conformista e o tipo de homem conservador. A naturalização da vida social é a primeira e mais banal característica desse pensamento. Sua concepção de história postula que todo o passado da humanidade se fez para o aperfeiçoamento da natureza humana, que encontra no modo de vida capitalista as condições mais plenas para sua realização: o egoísmo, o individualismo possessivo, as trocas mercantis, o mercado e… o Estado como instância organizadora desse mundo. Para este tipo de homem moderno, o presente é a realização necessária do passado e o futuro apenas o aperfeiçoamento do que já temos. Ele reconhece as rupturas do passado (a revolução burguesa, por exemplo), mas as insere num fio de continuidade teleológica que teria por fim chegar aonde estamos: na modernidade capitalista.
    Inspirado nesse pensamento, o homem conservador sofre as contradições sociais e os carecimentos radicais como inevitabilidade, inexorabilidade, razão porque desenvolve uma atitude cambiante de desprezo ou de benevolência para com as dores da humanidade. Quando vive mais profundamente tais carecimentos e desafia suas convicções pessoais, o homem conservador chega mesmo a assumir um engajamento político ou religioso para melhorar a vida das amplas maiorias que não participam da riqueza moderna. Seus parâmetros e finalidades, entretanto, não ultrapassam o quadro do vigente, por isso o homem conservador é sempre eficaz funcionário defensor do status quo.
    O radicalismo de direita é outro aspecto incorporado e refuncionalizado pela modernidade capitalista. Retorno a Heller para o caracterizar.
    A estrutura de pensamento do radicalismo de direita não considera a humanidade como o supremo valor social, razão porque pode fundar racional e positivamente, como valores, a guerra e a extinção de raças, etnias, grupos de humanos. Ele não se dispõe a discutir sobre o caráter ideológico de seus próprios valores, mas repele com veemência o quadro valorativo de seus oponentes. Ao tomar parte nas discussões públicas sobre temas da época, o radicalismo de direita agarra-se a argumentos não racionais, valora os interesses particulares em detrimento dos coletivos, invoca a autoridade e a fé ao invés do convencimento e da persuasão. Ao eleger argumentos particularistas e irracionais, o radicalismo de direita reduz os seguidores à condição de objetos manobráveis. Ele é, portanto, estruturalmente elitista e autoritário.
    O homem radical de direita é reacionário, pois não suporta os valores universalmente eleitos na época histórica. É incapaz de vislumbrar o gênero humano como horizonte de sua atuação no mundo, pois elege como parâmetros os interesses e o ponto de vista de seu grupo ou segmento social em detrimento dos demais. Sempre que pode, submete toda e qualquer discussão pública aos interesses particulares. Ele não pode suportar sequer as práticas da democracia burguesa como, por exemplo, o respeito às decisões coletivas ou das maiorias. Ele nutre ódio por tais decisões quando se lhes confrontam e sua ação social é amplamente baseada em preconceitos e exclusivismos.
    EPITÁCIO MACÁRIO é professor de Economia Política da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

    Fonte: Blog Espaço Acadêmico

    sábado, 26 de março de 2016

    A crise do PT: o ponto de chegada da metamorfose



    “Na luta política, não se pode macaquear
    os métodos de luta das classes dominantes
    sem cair em emboscadas fáceis”.
    ANTONIO GRAMSCI

    No momento em que encerrava meus estudos de doutorado sobre o PT em 2004 (As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o amoldamento. São Paulo: Expressão Popular, 2006) utilizei uma citação de José Genoíno que me parecia bastante representativa do ponto a que chegara este importante partido em sua trajetória. O mais interessante é que no texto, que foi publicado em 1989, o ex-presidente do PT que na época se localizava nas fileiras da esquerda daquela agremiação, buscava descrever as características dos partidos conservadores, próprios da estrutura política tradicional. Por uma das ironias da história, pareceu-me que tal descrição poderia bem ser utilizada para descrever o ponto a que chegou a metamorfose do PT.
    Dizia Genoíno:
    “Genericamente, na sociedade industrial moderna, os partidos políticos da ordem nascem e atuam fundamentalmente no terreno das instituições representativas do Estado. O seu modo de ser e sua atuação política têm como referência e destino estar aí, operando em algum dos aparatos do Estado. As formas como estes partidos se organizam e se estruturam já vem marcada por este objetivo interesseiro, o de conservar a funcionalidade do estado de coisas estabelecido. Ou, no máximo, moldando as exigências de mudanças a um esquema de representações significativas que não abalem os alicerces das relações sociais determinadas pelo conservadorismo. Estes partidos mantêm uma relação com as massas populares essencialmente manipulatória, fazendo-as crer que a sociedade (e o Estado) só terá garantias de funcionamento se determinados limites não forem ultrapassados e se determinados esquemas funcionais forem mantidos. E não poucas vezes, a manipulação e a mentira são revestidas com discursos moralizantes para encobrir a sua descarada hipocrisia”.   (GENOINO, José. “Um projeto socialista ainda em construção”In: GADOTI, Moacir. Pra que PT ?. São Paulo: Cortez, 1989. p. 356)

    O paradoxo é que o PT não nasceu no terreno das instituições representativas do Estado, mas no terreno fértil da luta de classes. Entretanto, a descrição acima indica com clareza o ponto de chegada de uma organização que, nascida no solo da luta de classes, deslocou seu ser para o terreno perigoso do “estar aí, operando em alguns dos aparatos de Estado”, com todas as consequências que daí derivam. Não apenas o respeitar dos limites, afirmados como intransponíveis pois ancorados nas restrições da “funcionalidade do estado de coisas estabelecido”, mas sobretudo aquilo que hoje se torna dramático: fazer crer às massas que a garantia de sua vitalidade só de dará na medida em que sejam respeitados tais limites, levando à uma ação marcada pela “manipulação e a mentira” revestidas por um discurso moralizante que tenta encobrir sua descarada hipocrisia.

    Seria este um destino inescapável para aqueles que buscam o poder? Creio que não. Tal conclusão nada mais é que a expressão mais sofisticada da máxima do senso comum segundo a qual o “poder corrompe”. Caso nos rendêssemos a esta conclusão, teríamos que nos aprofundar nos escritos de John Holloway buscando os caminhos para mudar o mundo sem tomar o poder, apenas para descobrir que ele também ainda não os encontrou.

    Continuo convencido de que a explicação para a metamorfose do PT tem de ser buscada na própria estratégia adotada pelo partido e seus limites. Ainda que o desfecho atual não possa ser entendido como o único desenvolvimento possível desta estratégia (governos como o da Venezuela e da Bolívia comprovam que haviam outras trajetórias possíveis, ainda que não isentas de impasses semelhantes), é seguro afirmar que o ponto de chegada guarda uma coerência com o caminho escolhido.

    A TRAJETÓRIA DA ESTRATÉGIA DEMOCRÁTICA POPULAR

    O caminho que leva das intenções iniciais da Estratégia Democrática Popular à sua implementação numa situação de governo é muito longo e cheio de matizes que não é possível aqui reproduzir. Desta maneira, vou centrar a atenção em alguns pontos que considero centrais para jogar um pouco mais de luz no desfecho trágico que agora presenciamos e pensar sobre perspectivas que se abrem.

    Em sua substância mais essencial, a Estratégia Democrática Popular esperava, através de uma combinação de dois movimentos em “pinça” (a construção de um movimento socialista de massas de um lado, e assegurar as expressões institucionais destas lutas na conquista de espaços institucionais de outro), chegar ao Governo Federal para executar um programa anti-latifundiário, anti-imperialista e anti-monopolista. Buscando diferenciar-se da antiga formulação do PCB sobre a Revolução Democrática Nacional, um governo nestas condições que busca realizar este programa não representaria uma nova teoria de “etapas”, uma vez que sua implementação só poderia se dar por um governo “hegemonizado pelos trabalhadores”, sem nenhuma aliança estratégica com a burguesia.

    Completa tal formulação a afirmação presente no V Encontro Nacional do PT (1987) segundo a qual a superação do capitalismo e o início da construção socialista marcava uma “ruptura radical” que pressupunha a necessidade dos trabalhadores tornarem-se classe “hegemônica e dominante no poder de Estado”, eliminando o “poder político exercido pela burguesia”.

    A conjunção de vários fatores (a derrota eleitoral para Collor, a reestruturação produtiva do capital, a crise nas experiências de transição socialista, etc.) fará com que um processo de inflexão moderada se iniciasse a partir do VII Encontro Nacional (1990). A diferença sutil, mas cheia de significado, aparece nas resoluções deste encontro quando cita a formulação do V Encontro que apresentamos antes, afirmando que os trabalhadores devem se tornar hegemônicos na sociedade civil e no Estado, deixando outros aspectos do projeto socialista como “desafios em aberto”.

    Para os bons observadores, é fácil notar que o que desaparece da frase é a necessidade dos trabalhadores tornarem classe dominante no Estado destruindo o poder político da burguesia e a desconsideração explicita na primeira formulação segundo a qual não haveria “qualquer exemplo histórico de uma classe que tenha transformado a sociedade sem colocar o poder político – o Estado – a seu serviço”.

    O que parece ficar implícito é que os trabalhadores poderiam ocupar a máquina do Estado burguês e colocá-la a seu serviço. Tal raciocínio se explicita já no I Congresso em 1991, quando as resoluções afirmam, para apontar o tipo de socialismo que se desejava e diferenciá-lo das experiências históricas do século XX, que no caso petista o socialismo deveria se dar no quadro de um “Estado de Direito”. Ainda que tal debate se dê no contexto de uma avaliação necessária da relação entre democracia e socialismo e os problemas nas experiências de transição realizadas, no caso do PT isso, parece-me, acaba desembocando para muito além. Vejamos mais de perto a passagem das resoluções do I Congresso que trata do tema:

    “O socialismo pelo qual o PT luta prevê, portanto, a existência de um Estado de Direito, no qual prevaleçam as mais amplas liberdades civis e políticas, de opinião, de manifestação, de imprensa, partidária, sindical etc.; onde os mecanismos de democracia representativa, libertos da coação do capital, devem ser conjugados com formas de participação direta do cidadão nas decisões econômicas, políticas e sociais. A democracia socialista que queremos construir estabelece a legitimação majoritária do poder político, o respeito às minorias e a possibilidade de alternância do poder”. (Resoluções do I Congresso (1991)

    Quando analisamos mais detidamente a afirmação, percebemos que trata-se do mesmo Estado Burguês na forma “democrática”, com todas seus princípios tornados universais (ordenamento jurídico como fundamento das relações, liberdades civis, democracia representativa combinada com formas de democracia direta, legitimação da maioria, respeito às minorias e alternância de poder), as famosas “regras do jogo”, tal como define ninguém menos que Norberto Bobbio e que foram invocadas pelo ex-presidente Lula em seu discurso recente. A diferença é que esta máquina política seria, agora, liberta da “coação do capital”.

    O problema é que se estas concepções navegam em um inevitável terreno de abstrações, na situação concreta da possibilidade de chegar ao governo do Estado burguês elas ganham materialidade. A principal alteração na operação da estratégia surge exatamente da possibilidade de chegar ao Governo Federal antes que o trabalho da “pinça” estivesse avançado o suficiente para criar uma correlação de forças que permitisse implementar o programa anunciado.

    Tal dilema se expressa em algumas perguntas: É possível, mesmo nesta situação, chegar ao governo? É desejável? Caso se chegue é possível manter-se, isto é, não ser derrubado por um golpe? As respostas a estas questões são chave na compreensão de nosso tema. Porque depois de avaliar que por conta crise econômica, das contradições dos governos burgueses de plantão, etc. essa era sim uma alternativa possível, e depois de definir que ela era de fato desejável, a discussão passa a se centrar nas condições para manter-se no governo.

    O sentido geral desta equação resolveu-se da seguinte forma. É possível chegar ao governo mesmo sem a correlação de forças necessária, mas isto implica que não seria possível implementar o programa anti-latifúndio, anti-imperialista e anti-monopolista, o que significaria seguir o acúmulo de forças em novo patamar – agora numa situação privilegiada de poder por se encontrar no governo.
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    REGRAS DO JOGO

    Neste ponto, no entanto, a operação da estratégia se torna complexa, pois a chegada ao governo significava, no esquema anterior, a oportunidade para desencadear o programa democrático popular e, num segundo momento, confirmada a impossibilidade de levá-lo a cabo em sua integralidade no interior da ordem burguesa (até pela resistência óbvia dos segmentos conservadores), a possibilidade de seguir com uma ruptura mais radical em direção ao socialismo. Agora, no novo contexto, trata-se de seguir a acumulação de forças utilizando-se do espaço de governo, para depois buscar este desfecho. Mas, para isso, é preciso e essencial permanecer no governo e a única forma de fazê-lo era não implementar os eixos do programa e sua radicalidade para não despertar a reação das classes dominantes.

    A forma do Estado proposta e os termos deste dilema se resolvem, no andar da carruagem, na equação que conduziria à inflexão moderada: rebaixar o programa, ampliar alianças, ganhar as eleições e garantir a governabilidade.

    Durante todo o tempo em que, nas novas condições apresentadas, o PT levaria o processo de acúmulo de forças para uma situação de governo, o Estado burguês não interviria no sentido da interrupção do processo, uma vez que o PT estaria comprometido a respeitar as regras do jogo.

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    Acontece que as regras não dizem respeito apenas ao tabuleiro político. O jogo principal se dá na luta de classes, e é em seu terreno (que são as relações sociais de produção e as formas de propriedade) que se encontram as principais regras que a burguesia quer ver respeitada. O equilíbrio não estaria, portanto, apenas na aceitação das regras da disputa política e do exercício de governo, mas na aceitação explícita que ninguém estava disposto a chutar o tabuleiro da acumulação capitalista, ou nas palavras do jovem Genoino, “moldando as exigências de mudanças a um esquema de representações significativas que não abalem os alicerces das relações sociais determinadas pelo conservadorismo”, diríamos nós, determinadas pela forma capitalista de produção e a sociabilidade burguesa que dela deriva.

    É neste ponto que a estratégia petista desemboca no pântano do pacto social e da conciliação de classes como condição de sua governabilidade. Os termos do XII Encontro Nacional em 2002, às vésperas da eleição que levaria Lula ao seu primeiro mandato é reveladora desta intenção ao falar da necessidade de um “novo contrato social”, uma ampla aliança entre forças políticas para dar “suporte ao Estado-Nação”, leque de forças que deveria incluir “empresários produtivos de qualquer porte”. O problema era como atrair o empresariado de qualquer porte e a resposta é os benefícios de superar a lógica rentista, a ampliação do mercado de massas e garantir a “previsibilidade para o capital”.

    Ora, previsibilidade para o capital significa garantir para a burguesia que não se mexerá nas formas de propriedade, nas relações sociais de produção e, conjunturalmente, não se alteraria o rumo da contra reforma em curso e seus mecanismos macro-econômicos. Ou seja, exatamente o que foi depois expresso na “Carta aos brasileiros”, de Lula em 2002.

    Quatro mandatos presidenciais demonstram, é certo, a eficiência tática do caminho do pacto social. Mas algo salta à vista de qualquer analista atento: a tática de permanência no governo não acumulou forças no sentido esperado no quadro da estratégia democrática popular. Pelo contrário: desarmou a classe trabalhadora de sua autonomia necessária, a desorganizou, despolitizou, e deslocou o campo de luta para o terreno do inimigo: seu Estado. Aí está um nó principal no grande equívoco de implementação da estratégia na situação de governo. O Estado não é neutro, nem altera sua natureza de classe pela ocupação de seus espaços por forças sociais oriundas de outras classes, segue funcionando como Estado-classe, nos termos gramscianos.
    Para manter os termos necessários ao pacto e a conciliação de classes, o governo é obrigado a golpear os trabalhadores em seus direitos mais elementares. O preço da governabilidade não é o adiar da execução integral do programa democrático popular, é sua mais retumbante renúncia.

    MAS E A OPERAÇÃO LAVA JATO?

    Neste ponto da exposição, o leitor inquieto do Blog da Boitempo se pergunta: “puxa, a conjuntura explodindo em fatos dramáticos, a Presidente sob risco de impedimento, Lula sendo levado sob condução coercitiva para depor na Lava-Jato, e este cara nos falando de estratégia!?”

    Pois é, o problema é que não creio ser possível entender os acontecimentos envoltos nas brumas enganosas da conjuntura, e muito menos posicionar-se politicamente, sem compreender estes fatos à luz do processo histórico mais recente. Aquele que tomar as decisões pelo fígado ou movido pelas paixões mais candentes, corre um enorme risco de errar.

    Uma lembrança pessoal pode me ajudar a finalizar esta reflexão. Inúmeras vezes, quando militava no PT, era provocado pela veemente afirmação segundo a qual Lula tinha uma casa no Morumbi. Ocorre que naquela época eu morava em São Bernardo e era vizinho de Lula. Ele morava ao final da Rua São João e eu uma rua acima. Era uma casa absolutamente compatível com as condições de um operário e dirigente sindical. Desta forma, sempre respondia a tais provocações com humor, afirmando que meu pequeno apartamento na cidade do ABC paulista tinha então valorizado muito, pois não sabia que ali era o Morumbi.
    Conto isso para afirmar duas coisas. Primeiro, que o que tem aparecido é apenas uma cortina de fumaça. Não se trata de bens pessoais ou favorecimentos. Não tenho o menor interesse em saber onde fica ou qual o tamanho da moradia do ex-Presidente, nem de onde ele descansa nos fins de semana. Segundo, que diferente daquela época, não estou disposto a botar minha mão no fogo para atestar a inocência de Lula, como parece ter se prontificado Fernando Morais. Não pelos fatos que o imputam, como disse, mas por algo maior que se refere à reflexão aqui apresentada.

    Uma das consequências da conciliação de classes operada é uma relação promiscua entre o poder público e os interesses monopolistas privados. Vejam, não discuto a dimensão legal de tais atos, uma vez que exércitos de bons advogados podem chegar a provar que nada do que foi feito é ilícito. Não opino e não quero opinar neste campo. Interessa-me uma dimensão política e moral.

    Pode ser perfeitamente legal, num exemplo hipotético, que um ex-Presidente aproveite suas viagens para apresentar a um determinado candidato em um certo país, seu amigo publicitário com um portfólio invejável de vitórias eleitorais; ou ainda, um esforçado empresário de uma grande empreiteira disposto a contribuir desinteressadamente com os custos de tal campanha e depois discutir, já que está por ali, a eventualidade de um ou outro contrato caso o candidato ganhe. Independente de discutir a legalidade de tais procedimentos, do ponto de vista moral é reprovável e do ponto de vista político tal postura é indefensável.

    Em outro plano, com o perdão dos adoradores da álea singular dos acontecimentos conjunturais, o desenvolvimento da estratégia petista na situação de governo comprovou que o malabarismo do pacto social acabou por favorecer muito os interesses das camadas dominantes, ao mesmo tempo em que se operavam ataques severos contra nossa classe trabalhadora, como a reforma da previdência, o rigor na aplicação do ajuste fiscal, a lei antiterrorismo que criminaliza as lutas sociais, a entrega do pré-sal, o abandono da reforma agrária, o código florestal e o código de mineração, a liberação dos transgênicos, e uma lista que não caberia neste espaço.

    Assim, nos parece que a burguesia está disposta a se livrar de seu aliado, não por suas eventuais virtudes de um líder operário que um dia foi, mas pelo simples fato de que, tendo sido muito útil para operar uma democracia de cooptação fundada no apassivamento da classe trabalhadora, torna-se agora fonte de instabilidade que pode colocar em risco os interesses dominantes. E a burguesia vai usar todos os meios para tanto, fazendo uso inclusive daqueles instrumentos de seu Estado-classe que o PT julgava que fossem “republicanos” e que estariam a serviço desta abstração chamada “nação”.

    O PT não se preparou para esta eventualidade pelo simples fato de que em sua estratégia tal possibilidade inexistia – seria neutralizada pelo caminho escolhido e o respeito às regras do jogo. Não há culpados na luta de classes, não somos cristãos. Mas há responsabilidade. Se a direita, como parece ser o caso, resolver se livrar do PT com os métodos mais escusos, certamente a responsabilidade não pode ser atribuída àqueles que sempre apontaram esta possibilidade e indicaram os limites do desenvolvimento desta estratégia.

    O argumento que convoca à defesa pública de Lula (e, por via de consequência, de seu partido), de que se é a direita que o ataca, a esquerda “tem a obrigação de defendê-lo”, é absolutamente falacioso. A única maneira de defender Lula é torná-lo um fetiche. Isto é, abstrair toda a particularidade concreta que o constitui para produzir um Lula simbólico muito distinto da pessoa real que ele é e que sua prática demonstrou ser. Para emergir um Lula defensor injustiçado dos mais pobres e dos trabalhadores, perseguido pelos poderosos, é necessário abstrair o Lula amigo destes poderosos, levando-os em vôos fretados para fazer negócios e criando as condições para que ganhassem dinheiro como nunca, como ele próprio gosta de dizer. Mas mesmo assim, proclamam outros, este símbolo pode ser o que nos resta para resistir contra o ataque da direita.

    Os caminhos nefastos do culto à personalidade – de se acoplar o destinos da classe ao carisma pessoal de um líder independente do sentido real que sua ação política aponta – já demonstrou seus enormes riscos na história de nossa classe. Se um Lula abstrato e fetichizado – em outras palavras, o lulismo – for nossa última e única linha de resistência (o que não creio que seja verdade) contra o próximo movimento da direita, seja qualquer que for o resultado, nós já estaremos derrotados.
    Por: Mauro Iasi
    Fonte: Blog Boitempo

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