quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Aonde vamos chegar?

Que fez a inteligência, assim que desabrochou, como uma flor luminosa, no primeiro cérebro humano? Quis saber o que era ela própria, e o que era a humanidade, e o que era a Terra, e o que era o Universo. E endereçou então a tudo essa grande pergunta ansiosa e dolorosa, que ainda não teve resposta...
– Olavo Bilac (1865-1918)


Segundo cientistas antenados, o Universo teria surgido há 13,5 bilhões de anos e a Terra há 4,5 bilhões de anos. O primeiro hominídeo, denominado australopiteco, aproximadamente 5 milhões de anos atrás. Daí, a humanidade com o intrínseco fado de revolucionar a constituição de toda criação. Assim, os então “frágeis” humanos saíram da primitiva ferocidade de cavernas, em bandos de nômades aculturados na arribação, desbravaram selvas, romperam distantes prados e íngremes montes, rumaram largos rios e oceanos de procelas, adiante, automatizaram-se os membros de manipulação e mobilidade, passaram flutuantes a cruzar com revoadas soberbas, pulularam a espécie, poluíram e afoguearam o planeta, escarafuncharam a infinitesimal estrutura do átomo, produziram a bomba do caos ardente, recriaram o cérebro à eletrônica e dão ar de onipresença em esferas outras do sistema solar, com o estro aos extremos.

Mas, como revolução se faz com engenharia política, choque de superenergias, dinâmica entre forças antagônicas e a dor tenebrante dos tempos geológico e histórico, ocorreu um sem-número de vidas sacrificadas em selvageria de guerras e conflitos sociais, jorros de suor e sangue, para que, enfim, ousássemos transcender a condição de homo sapiens. Domamos e clonamos feras, idem, alteramos a genética de microorganismos. Isolamos raios. Superamos a velocidade do som. Arquitetamos edifícios sobre amortecedores, inabalados a terremotos. Prolongamos a estética do organismo com longevidade, configurando-nos em ultrabiônicos próprios. Demos intenso brilho à sapiência, quais entusiasmados isodeuses. E agora, em menos tempo, no anonimato, brotam-se da gênese mais geniais Aristóteles, Newton, Da Vinci, Shakespeare, Einstein... Não precisamos tanto da premissa “Deus” (deixemo-Lo descansar da Fiat Lux e do Sétimo dia!) para dominarmos os mistérios da existência.

Embora o massacre das potências bélicas e econômicas sobre a maioria das nações subjugadas. Embora mais, o horror da nescidade e a miséria sobrepondo-se a multidões socialmente excluídas, pela tirania de impérios. O extermínio à carnificina de raças afins. A história traçada a Poder e Mito, à força da crueldade e à comunicação alienista das elites sobre o povo. A democracia de oligarcas cunhada na ironia e na grasnada da politicagem. O desbarato de metade de toda produção alimentícia e a fome rude na Terra... E saciem-se, vermes! Ainda nesta desigual luta para eliminar nosso principal devorador: o Capitalismo – como que criado por um gênio gerado de ejaculação precoce e de gravidez indesejada.

O Capitalismo nos dias de Estados falidos, sitiado por protestos populares nas ruas da Europa e pela bananosa na economia dos EUA. O Capitalismo (carrasco dos “sonhos” de consumistas) que produz dívidas a números infinitamente negativos e geométricos pesadelos. Que dissemina ódio e sordidez universais, que induz à guerra entre nações para o faturamento insano de engenhos exterminadores, e reações estarrecedoras de homens-bomba. Que reduz a vida humana a mero produto carnal, na exploração da força do trabalho e do tráfico de jovens em ‘negócios’ de aluguel do sexo e de drogas horridamente necróticas. O Sistema que, excruciante, propiciou as pútridas condições de sobrevivência, que atualmente transforma centenas de milhões de mentes servis em presa de transtornos psiquiátricos e acumula capital pelas multinacionais de antidepressivos. E que alucina bilhões de vidas no fanatismo do futebol e da “palavra do Senhor”, para movimentação de nebulosas e incomparáveis cifras, mundo afora.

Na tredice da linguagem capitalista, Ética passou a significar utopia de filósofos, apenas; Karl Marx e comunismo, páginas cheirando a mofo. Sindicatos e partidos políticos, reduzidos a representações do crime organizado contra o erário. E, cada vez mais raro, encontrar militantes ideológicos da Esquerda tem sido trabalho para pesquisadores acadêmicos. Deste modo, o dedo indicador do capitalismo permite e financia o carreirismo político ascendente ao poder de novas caras (e com direito a jingle romântico!), desde que sejam dóceis e reneguem seus históricos de rebeldia. Ou “vão nadar, nadar e morrer na praia”. A exemplo de tantos arrivistas: Lula e Dilma no Brasil, Obama nos EUA e outros bonecos de ventríloquo na história recente.

Mas, como redimir a humanidade de todas essas maldições e prantos? O que fazer com os capitalistas de rapina? Fuzilá-los, cremá-los e jogar suas infames cinzas em Plutão? Esterilizar essa minoria de concentradores de riqueza, e todos os mercenários e pelegos que os servem, para que não reproduzam mais herdeiros de vastas fortunas e de vassalos? Transmutar genes de falantes parasitas da pregação? E, absortos no próprio breu da ganância, soterrar na grande vala de bestas-feras, ainda vivos, banqueiros e demais hematófagos do sistema financeiro?

À luz deste milênio, intelectivo seria o processo de reeducação coletiva, de democratização do conhecimento – pesquisa, tecnologia e sustentabilidade. De socialização da riqueza e bem-estar das massas, com justiça de Estado ilibada. De pluralização dos meios de comunicação livres e responsáveis, sem patrocínio e domínio de grupos econômicos. Restituir a revolta dos primeiros cristãos, cuja doutrina visava conscientizar e evolucionar o homem contra a exploração e opressão de seus semelhantes, o legado do alarmado e original Cristo (Agitador da inteligência, Mártir pelo amor); rejeitar o estereótipo do inumano alienígena, sacro-belo e casto, lêmure de supostos milagres e alucinações, matreiramente falsificado pelos poderosos para sufocar e dominar os cristãos do primeiro século. E que perdura sobre incautos fiéis.

Ao atingirmos a Era Digital da comunicação sem fronteiras ao vivo em fibra ótica e em redes sociais, ao dominarmos – por cognição e sabedoria – as ciências da Natureza e, excelsamente, suplantarmos a decrepitude com a regeneração do organismo através das células-tronco... Na condição de homo tressapiens, assim a Terra vai ficando apequenada e extenuantemente monótona ante a assombrosa elevação do cérebro iluminado. Dentro em breve, esta galáxia será povoada por nossa privilegiada espécie. E que supremacia, memorável poeta! (“ouvir estrelas?”) Contudo, antes, convém redefinirmos a relação social e econômica entre os humanos, inutilizando o abjeto Capitalismo. Do contrário, esses bilionários terráqueos hão de migrar e alienar mão-de-obra escrava, moldar corrupção noutros longínquos planetas. Ora, vates! Obamas, Lulas e coisas-à-toa da vida não faltarão para tanto, se vacilarem os supercérebros da civilidade.

Julio Cesar de Castro presta assessoria técnica em Construção Civil.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A renda dos 100 mais ricos poderia acabar com a pobreza no mundo

Uma mulher limpa o logo do Fórum Econômico Mundial em uma das salas de reunião do resort suíço em Davos. Foto: Johannes Eisele / AFP
Uma mulher limpa o logo do Fórum Econômico Mundial em uma das salas de reunião do resort suíço em Davos. Foto: Johannes Eisele / AFP
A renda líquida obtida em 2012 pelas 100 pessoas mais ricas do mundo, 240 bilhões de dólares, poderia acabar quatro vezes com a extrema pobreza no planeta. A conclusão está num relatório publicado (link em PDF, em inglês) no fim de semana pela ONG britânica Oxfam. A entidade não entra em detalhes a respeito das contas que fez para chegar ao dado, mas os números servem como alerta para a intensa e crescente desigualdade social no mundo. O documento serve para chamar a atenção para os debates do Fórum Econômico Mundial, que começa nesta terça-feira 22 em Davos, na Suíça. A desigualdade ganhou um painel próprio no encontro, marcado para sexta-feira 25, mas tanto suas conclusões quanto os avisos da Oxfam devem cair em ouvidos moucos. O mundo hoje está construído para ampliar a desigualdade e não há sinais de mudança.
O relatório da Oxfam ecoa estudos e análises econômicas recentes sobre a desigualdade. Hoje, as diferenças entre os países estão diminuindo, mas a desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres dentro de cada nação está crescendo. Essa é a regra na maior parte das nações em desenvolvimento e também nas desenvolvidas.
Nos Estados Unidos, a desigualdade social é tão grande hoje em dia que, nas palavras da revista The Economist, supera a das últimas décadas do século XIX, a chamada “Era Dourada” do capitalismo norte-americano. A porcentagem da renda nacional que vai para o 1% mais rico da população dobrou desde 1980, de 10% para 20%. Para o 0,01% mais rico, a bonança foi maior: sua renda quadruplicou.
Na União Europeia, a situação também é ruim. No livro Inequality and Instability (Desigualdade e Instabilidade, em tradução livre), o economista James Galbraith mostrou que, se tomada como um conjunto, a UE supera os Estados Unidos em desigualdade. Isso se explica, em parte, pelas diferenças entre os diversos países do bloco. Ainda assim, se tomadas separadamente, as nações europeias também têm observado aumento da desigualdade. Um estudo sobre o tema publicado em 2012 pela OCDE, concluiu que “desde a metade dos anos 1980″, os 10% mais ricos de cada país “capturam uma crescente parte da renda gerada pela economia, enquanto os 10% mais pobres estão perdendo terreno”. No Japão, onde 100 milhões de pessoas se diziam de classe média, estudos mostram, desde o fim da década de 1990, o aumento da desigualdade a partir da metade dos anos 1980.
A política sequestrada
Não é uma coincidência o aumento da desigualdade no mundo desenvolvido desde os anos 1980. Foi nesta época que começaram a ter efeito as políticas lideradas pelos governos de Ronald Reagan nos Estados Unidos (1981-1989) e Margaret Thatcher (1979-1990) no Reino Unido, mas adotadas em boa parte do mundo por outros governantes, como Helmut Kohl (Alemanha), Ruud Lubbers (Holanda) e Bob Hawke (Austrália): impostos mais baixos, desregulamentação do sistema financeiro, redução do papel do governo e outras medidas integrantes do receituário neoliberal. Essa política, arrimo da globalização, teve alguns efeitos positivos, mas foi levada a extremos por quem se beneficia delas. Para manter as políticas desejadas, que aumentavam sua riqueza (e também a desigualdade) esses grupos de interesse se encrustaram nos círculos de poder. Eles sequestraram a política.
Idoso pede esmola no chão de uma rua de Kandahar, no Afeganistão, na segunda-feira 14. Um relatório da ONU apontou que um terço da população do país vive "na mais abjeta pobreza porque os governantes estão mais interessados em proteger seus interesses escusos". Foto: Mamoon Durrani / AFP
Idoso pede esmola no chão de uma rua de Kandahar, no Afeganistão, na segunda-feira 14. Um relatório da ONU apontou que um terço da população do país vive “na mais abjeta pobreza porque os governantes estão mais interessados em proteger seus interesses escusos”. Foto: Mamoon Durrani / AFP
Este fenômeno é analisado no livro Winner-Take-All Politics (Política do vencedor leva tudo, em tradução livre), dos professores Jacob S. Hacker, de Yale, e Paul Pierson, da Universidade da Califórnia. Em artigo de capa da revista Foreign Affairs em dezembro de 2011, o jornalista George Packer resume o argumento do livro em duas palavras: dinheiro organizado. Foi no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980 que as grandes corporações de diversos setores da economia passaram a financiar as campanhas eleitorais, dando início a uma “maciça transferência de riqueza para os americanos mais ricos”.
Este modelo de política, e de fazer política, grassou no mundo desenvolvido e foi transplantado para os países em desenvolvimento, onde foi emulado com maestria pelas elites econômicas locais. Não é uma surpresa, então, que a desigualdade esteja aumentando também nesta região. A Índia acumula diversos bilionários, mas continua sendo o país com mais pobres no mundo. A África do Sul é mais desigual hoje do que era no fim do regime segregacionista do Apartheid. Na China, onde não é preciso sequestrar a política, apenas pertencer ou ter um bom relacionamento com o Partido Comunista, a desigualdade é semelhante à sul-africana: os 10% mais ricos ficam com 60% da renda.
A América Latina e o caso do Brasil
O único lugar do mundo onde a desigualdade está caindo de forma sistemática é a América Latina, justamente a região mais desigual do mundo. Isso ocorreu nos últimos anos por dois motivos. O modelo neoliberal, e a ascensão do “dinheiro organizado”, também chegaram aos países latino-americanos, mas em alguma medida entraram em choque com forças políticas contrárias a uma parte importante do receituário, a não-intervenção do Estado na economia. Assim, os governos da região, entre eles o de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, conseguiram estabelecer a redução da desigualdade social como uma prioridade. Em segundo lugar, os países da região, também incluindo o Brasil, foram muito beneficiados pelo rápido crescimento econômico provocado pela existência de um mundo faminto por commodities.
Imagem mostra a favela de Kataanga, em Kampala, a capital de Uganda. Foto: Michele Sibiloni / AFP
Imagem mostra a favela de Kataanga, em Kampala, a capital de Uganda. Foto: Michele Sibiloni / AFP
Há, entretanto, inúmeras dúvidas a respeito da sustentabilidade do modelo latino-americano de redução da desigualdade, especialmente quando a economia começar a desacelerar, situação em que o Brasil já se encontra. Como notou o colunista Vladimir Safatle em edição de dezembro de CartaCapital, o capitalismo de Estado do governo Lula promoveu um processo de oligopolização e cartelização da economia, o que favorece a concentração de renda nas mãos de pequenos grupos. Ao mesmo tempo, Lula não fez, e Dilma Rousseff não dá indícios de que promoverá, a universalização e qualificação dos sistemas públicos de educação de saúde. Sem essas reformas, a classe média seguirá gastando metade de sua renda com esses dois serviços básicos e os pobres continuarão com acesso a escolas e hospitais precários. Os ricos, por sua vez, não terão problemas. A desigualdade de renda poderá cair ainda mais, mas a desigualdade de oportunidades vai perseverar, e a imensa maioria dos pobres continuará pobre.
Para fazer essas reformas, e outras potencialmente capazes de reduzir a desigualdade, como a taxação de grandes fortunas e de heranças e reformas estruturais, o Brasil e outros países latino-americanos enfrentarão as mesmas questões do mundo desenvolvido. Em grande medida, a política latina foi sequestrada pelo “dinheiro organizado”. Levantamento do repórter Piero Locatelli mostra que, em 2010, 47,8% das doações eleitorais no Brasil foram feitas por empresas e que apenas 1% dos doadores foram responsáveis por 73,6% do financiamento da campanha.
O resultado disso, seja nos Estados Unidos, na Europa, na Índia ou no Brasil, é uma grave crise de representação. O cidadão não consegue participar da vida pública e ter seus anseios ouvidos pelo governantes. Os partidos, à esquerda e à direita, caminham cada vez mais para o centro e, como diz o filósofo esloveno Slavoj Zizek, fica cada vez mais difícil diferenciá-los. A esquerda, supostamente contrária aos absurdos do liberalismo econômico, ou aderiu a ele e também tem suas campanhas financiadas por grandes corporações ou não tem um modelo alternativo e crível a apresentar.
Em seu relatório, a Oxfam pede aos governos para tomar medidas que, ao menos, reduzam os níveis atuais de desigualdade social aos de 1990. É bastante improvável que os política e economicamente poderosos resolvam fazer isso do dia para a noite. Estão aí os brasileiros que chamam o Bolsa Família de bolsa-esmola e o ator francês Gerard Depardieu, que preferiu dar apoio a um ditador a correr o risco de pagar impostos de 75%, para provar isso. Talvez apenas o entendimento de que, como diz a ONG britânica, a desigualdade social é economicamente ineficiente, politicamente corrosiva e socialmente divisiva, provoque mudanças. Para isso, no entanto, é preciso que os poderosos entendam os riscos da desigualdade.
 
 Fonte Carta Capital

domingo, 6 de janeiro de 2013

A quem interessa confundir a construção da cidadania, em especial a emancipação das mulheres, com a ideia de consumo?

A badalada entrevista de Walquíria Rêgo para a revista Marie Claire ostenta o processo de emancipação das mulheres garantido pelo programa Bolsa Família.  Como as reflexões da autora estão mais próximas de uma propaganda governamental, ao menos é isso que consta na matéria publicada pela revista das organizações Globo, considero importante apresentar um contraponto. Cito, portanto, o trecho de um artigo de Silvana Mariano e Cássia Carloto que problematizam o conteúdo central dos argumentos de Rêgo. "A principal questão que norteia nossa reflexão neste trabalho, em particular, é compreender o modo como o PBF, em uma estratégia de combate à pobreza, desenvolve mecanismos que reforçam a tradicional associação da mulher com a maternidade e as tarefas pertencentes à clássica esfera reprodutiva." 
Encerro as minhas considerações com uma pergunta

A quem interessa confundir a construção da cidadania, em especial a emancipação das mulheres, com a ideia de consumo?

O Bolsa Família e a revolução feminista no sertão

A antropóloga Walquiria Domingues Leão Rêgo testemunhou, nos últimos cinco anos, a uma mudança de comportamento nas áreas mais pobres e, talvez, machistas do Brasil. O dinheiro do Bolsa Família trouxe poder de escolha às mulheres. Elas agora decidem desde a lista do supermercado até o pedido de divórcio

 O dinheiro do Bolsa-Família trouxe poder de escolha às mulheres do sertão (Foto: Editora Globo)

Uma revolução está em curso. Silencioso e lento - 52 anos depois da criação da pílula anticoncepcional - o feminismo começa a tomar forma nos rincões mais pobres e, possivelmente, mais machistas do Brasil. O interior do Piauí, o litoral de Alagoas, o Vale do Jequitinhonha, em Minas, o interior do Maranhão e a periferia de São Luís são o cenário desse movimento. Quem o descreve é a antropóloga Walquiria Domingues Leão Rêgo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nos últimos cinco anos, Walquiria acompanhou, ano a ano, as mudanças na vida de mais de cem mulheres, todas beneficiárias do Bolsa Família. Foi às áreas mais isoladas, contando apenas com os próprios recursos, para fazer um exercício raro: ouvir da boca dessas mulheres como a vida delas havia (ou não) mudado depois da criação do programa. Adiantamos parte das conclusões de Walquiria. A pesquisa completa será contada em um livro, a ser lançado ainda este ano.
MULHERES SEM DIREITOS
As áreas visitadas por Walquiria são aquelas onde, às vezes, as famílias não conseguem obter renda alguma ao longo de um mês inteiro. Acabam por viver de trocas. O mercado de trabalho é exíguo para os homens. O que esperar, então, de vagas para mulheres. Há pouco acesso à educação e saúde. Filhos costumam ser muitos. A estrutura é patriarcal e religiosa. A mulher está sempre sob o jugo do pai, do marido ou do padre/pastor. “Muitas dessas mulheres passaram pela experiência humilhante de ser obrigada a, literalmente, ‘caçar a comida’”, afirma Walquiria. “É gente que vive aos beliscões, sem direito a ter direitos”. Walquiria queria saber se, para essas pessoas, o Bolsa Família havia se transformado numa bengala assistencialista ou resgatara algum senso de cidadania.
BATOM E DANONE
“Há mais liberdade no dinheiro”, resume Edineide, uma das entrevistadas de Walquiria, residente em Pasmadinho, no Vale do Jequitinhonha. As mulheres são mais de 90% das titulares do Bolsa Família: são elas que, mês a mês, sacam o dinheiro na boca do caixa. Edineide traduz o significado dessa opção do governo por dar o cartão do benefício para a mulher: “Quando o marido vai comprar, ele compra o que ele quer. E se eu for, eu compro o que eu quero.” Elas passaram a comprar Danone para as crianças. E, a ter direito à vaidade. Walquiria testemunhou mulheres comprarem batons para si mesmas pela primeira vez na vida. Finalmente, tiveram o poder de escolha. E isso muda muitas coisas.
O DINHEIRO LEVA AO DIVÓRCIO E À DIMINUIÇÃO DO NÚMERO DE FILHOS?
“Boa parte delas têm uma renda fixa pela primeira vez. E várias passaram a ter mais dinheiro do que os maridos”, diz Walquiria. Mais do que escolher entre comprar macarrão ou arroz, o Bolsa-Família permitiu a elas decidir também se querem ou não continuar com o marido. Nessas regiões, ainda é raro que a mulher tome a iniciativa da separação. Mas isso começa a acontecer, como relata Walquiria: “Na primeira entrevista feita, em abril de 2006, com Quitéria Ferreira da Silva, de 34 anos, casada e mãe de três filhos pequenos,em Inhapi, perguntei-lhe sobre as questões dos maus tratos. Ela chorou e me disse que não queria falar sobre isso. No ano seguinte, quando retornei, encontrei-a separada do marido, ostentando uma aparência muito mais tranqüila.”
A despeito do assédio dos maridos, nenhuma das mulheres ouvidas por Walquiria admitiu ceder aos apelos deles e dar na mão dos homens o dinheiro do Bolsa. “Este dinheiro é meu, o Lula deu pra mim (sic) cuidar dos meus filhos e netos. Pra que eu vou dar pra marido agora? Dou não!”, disse Maria das Mercês Pinheiro Dias, de 60 anos, mãe de seis filhos, moradora de São Luís, em entrevista em 2009.
Walquiria relata ainda que aumentou o número de mulheres que procuram por métodos anticoncepcionais. Elas passaram a se sentir mais à vontade para tomar decisões sobre o próprio corpo, sobre a sua vida. É claro que as mudanças ainda são tênues. Ninguém que visite essas áreas vai encontrar mulheres queimando sutiãs e citando Betty Friedan. Mas elas estão começando a romper com uma dinâmica perversa, descrita pela primeira vez em 1911, pelo filósofo inglês John Stuart Mill. De acordo com Mill, as mulheres são treinadas desde crianças não apenas para servir aos homens, maridos e pais, mas para desejar servi-los. Aparentemente, as mulheres mais pobres do Brasil estão descobrindo que podem desejar mais do que isso.

Fonte: Marie Claire


Gênero e combate à pobreza: programa bolsa família

RESUMO
A política de assistência social brasileira orienta-se pela perspectiva de ações de combate à pobreza, com prioridade aos programas de transferência condicionada de renda. Esses são programas que priorizam o repasse de renda às mulheres e envolvem-nas em uma rede de obrigações e condicionalidades, a exemplo do Programa Bolsa Família. A prática encerrada no Programa Bolsa Família coloca em evidência algumas contradições entre as ações estatais e as demandas feministas, notadamente no que diz respeito à problematização acerca da maternidade. Esse é, então, um ponto central para o diálogo entre o feminismo e as políticas sociais estatais de combate. 


Introdução
Os programas brasileiros de transferência condicionada de renda veem as mulheres como foco prioritário, e até objeto, de suas intervenções com vistas ao combate à pobreza. A mulher, a partir de seus papéis na esfera doméstica ou de reprodução, tem sido, portanto, a interlocutora principal dessas ações, tanto como titular do benefício quanto no cumprimento das condicionalidades impostas. O Programa Bolsa Família (PBF) é um exemplo paradigmático dessa política. Diante desse contexto, estudiosas feministas têm insistido que a categoria "gênero" não pode ser prescindida das análises sociológicas acerca das ações estatais, que têm por foco a família. Essa categoria de análise contribui para a compreensão da instrumentalização dos papéis femininos nessas políticas.
A implantação do PBF, de acordo com suas regras de seletividade e exigências de condicionalidades, bem como com as dimensões assumidas ao incluir mais de 11 milhões de famílias, expressa, em certa medida, a extensão da pobreza no Brasil. Do mesmo modo, a composição do público beneficiário ilustra o quadro de desigualdades persistente na história da sociedade brasileira. De acordo com dados do Retrato das desigualdades de gênero e raça, podemos, mais uma vez, constatar que a pobreza brasileira tem sexo e cor.1
A presença mais notável de mulheres negras entre as pessoas pobres é reflexo de um processo histórico de (re)produção de desigualdades sociais. Essas desigualdades têm como eixos estruturantes os marcadores sociais como gênero e raça-etnia, os quais orientam a construção da cidadania e a efetivação de direitos no Ocidente. Portanto, sexo e cor são também definidores das desigualdades sociais.
Esse processo interfere diretamente na relação entre as mulheres, brancas e negras, e o Estado. Um ponto de ilustração a esse respeito é o modo como os grupos de mulheres estão sujeitos a obrigações impostas pelo Estado e geram efeitos para o tempo e o trabalho femininos.2 Tais obrigações se expressam no cumprimento de atividades e responsabilidades estipuladas pelas políticas sociais, com destaque para as políticas de desenvolvimento e, mais recentemente, para as de combate à pobreza. O Estado cobra das mulheres pobres a execução de tarefas relacionadas ao cuidado de crianças, adolescentes, idosos, doentes e pessoas com deficiência. Igualmente, convoca as mulheres para a participação em atividades extras, como, por exemplo, grupos de geração de trabalho e renda (com duvidosa potencialidade para a melhoria do bem-estar) e grupos de ações educativas, sendo estas, via de regra, relacionadas às tarefas reprodutivas. Ao fazê-lo, o Estado está gerando, para as mulheres pobres, responsabilidades ou sobrecarga de obrigações relacionadas à reprodução social. Consideramos esse tipo de ocupação do trabalho e do tempo das mulheres um dos fatores vinculados à desigualdade, entre homens e mulheres e entre estratos sociais, pois disponibiliza menos as mulheres para o trabalho remunerado. Esse fator deve ser colocado em evidência quando nos dedicamos a investigar o modo de inclusão das mulheres nas ações estatais, a exemplo do PBF, uma vez que esse programa opera instituindo condicionalidades nas áreas de educação, saúde e atividades complementares, como os grupos socioeducativos.
A principal questão que norteia nossa reflexão neste trabalho, em particular, é compreender o modo como o PBF, em uma estratégia de combate à pobreza, desenvolve mecanismos que reforçam a tradicional associação da mulher com a maternidade e as tarefas pertencentes à clássica esfera reprodutiva.
O PBF, dada sua extensão em número de famílias beneficiárias no país e sua capacidade de exercer influências nas relações entre os indivíduos envolvidos nas ações estatais, torna-se um importante objeto de análise de pesquisas preocupadas em refletir o modo como o Estado incorpora padrões de relações de gênero e concepções de família e de mulher em seus programas que se dirigem ao âmbito das relações de cuidado.
A reflexão aqui desenvolvida se inspira em pesquisa qualitativa realizada em Londrina, PR, a fim de trazer questões sobre as relações entre gênero e políticas de combate à pobreza de forma geral. Londrina é um município com avançado processo de implantação do novo sistema de gestão da Política Nacional de Assistência Social, o que inclui ações de acompanhamento às famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família.

Mulher e papéis de gênero no Programa Bolsa Família
A política de assistência social brasileira orienta-se pela perspectiva das políticas de combate à pobreza. Desde a década de 1990 têm recebido destaque os programas focalizados de transferência de renda. Os principais deles são o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o PBF, sendo o primeiro sem e o segundo com condicionalidades. As transferências condicionadas de renda priorizam o repasse de renda às mulheres e envolvem-nas em uma rede de obrigações com as ações estatais. Desse modo, referimonos a políticas e programas com claro marcador de gênero e, a partir de perspectivas feministas, os interpelamos acerca da condição de cidadania das mulheres usuárias.
Ao cruzarmos as demandas por cidadania com a problemática da pobreza e, de modo mais amplo, com a persistente situação de desigualdade brasileira, devemos tomar sexo e gênero, assim como cor e raça, como dimensões indispensáveis de análise acerca das políticas sociais. Gênero e raça devem, portanto, ser mobilizados como categorias de análise. Nesse sentido, o Retrato das desigualdades de gênero e raça traz relevante contribuição ao apresentar dados macrossociais desagregados por sexo e cor e raça que nos permitem captar as interconexões desses dois marcadores sociais na (re)produção das desigualdades. Os dados sobre renda explicitam, de modo mais cabal, o quadro de discriminação contra mulheres e negros e, ainda, a "dupla discriminação sofrida pelas mulheres negras".3
Esses dados são exemplos que demonstram parte da problemática relacionada à cidadania das mulheres, em especial das mulheres negras. Devemos, ainda, tomar em consideração que a divisão sexual do trabalho, as responsabilidades com as tarefas de reprodução, sobretudo quanto às atribuições domésticas, e a quase interdição dos espaços de poder às mulheres, notadamente as negras, são fatores que contribuem para obstar a conquista das mulheres no campo da cidadania.4
Conforme observação de Lena Lavinas e Marcelo Nicoll,5ainda que as condições de pobreza não sejam determinadas pela questão de gênero, os dados nos revelam que esse é um marcador que influencia as situações das famílias pobres quando analisamos, por exemplo, o fenômeno da chefia familiar feminina entre famílias pobres, grupo no qual esse fenômeno é mais expressivo se comparado às famílias com maior renda. Nesse caso, articula-se uma vulnerabilidade adicional.6
No Brasil, 22,3% das famílias eram chefiadas por mulheres em 1993. No ano de 2007 essa proporção aumentou para 33%.7 Tratando-se de Londrina e comparando-se as famílias chefiadas por mulheres, sem o critério de renda, observa-se que, em 1991, as mulheres respondiam por 20,42% das famílias e, em 2000, esse número saltou para 27,53%, o que representa um crescimento de 34,81%.8
Se nos perguntarmos em qual estrato de renda a chefia familiar feminina está mais presente, perceberemos diferenciais significativos entre as famílias com rendimento familiar por pessoa de até ½ salário mínimo e as famílias com renda superior a 2 salários mínimos. No primeiro estrato social, as famílias chefiadas por mulheres cresceram de 25,57% para 37,7%, o que representa um aumento de 47,43%. No segundo estrato social, as famílias chefiadas por mulheres cresceram de 17,54% para 25,54%, o que representa um aumento de 45,61%. O crescimento entre os dois estratos de renda é quase equivalente, com os números um pouco mais elevados entre as famílias pobres.
Comparando-se as famílias desses dois estratos de renda, percebe-se que a chefia familiar feminina concentra-se justamente entre os grupos sociais mais vulneráveis e ainda lhes acrescenta um grau a mais de vulnerabilidade por serem, muitas vezes, famílias monoparentais. é coerente com esses dados a suposição de que no universo de famílias pobres chefiadas por mulheres exista uma ocorrência maior entre aquelas chefiadas por mulheres negras, pois existem mais famílias negras em situação de pobreza e miséria. A esse respeito serve de comparativo o dado segundo o qual 11,7% dos domicílios urbanos em favelas são chefiados por mulheres brancas, enquanto 26% deles são chefiados por mulheres negras.9 Esse fenômeno revela a importância da incorporação da perspectiva de gênero, bem como do quesito cor e raça, nos programas de enfrentamento à pobreza e de desenvolvimento social.
Ao ser incluída no PBF, a mulher é tomada como representante do grupo familiar, vale dizer, o grupo familiar é materializado simbolicamente pela presença da mulher. Esta, por sua vez, é percebida tão somente por meio de seus 'papéis femininos', que vinculam, sobretudo, o ser mulher ao ser mãe, com uma identidade centrada na figura de cuidadora, especialmente das crianças e dos adolescentes, dadas as preocupações do PBF com esses grupos de idade. O papel social de cuidadora pode até, em algumas situações, ser desempenhado por outra mulher, como, por exemplo, a avó ou tia da criança ou do adolescente. Contudo, seguirá sendo um 'papel feminino'. Logo, o cuidado preserva, no âmbito do PBF, seu caráter vinculado aos papéis de gênero. Assim, tanto a maternidade (relacionada à procriação e/ou ao papel social de mãe) quanto a maternagem (o cuidado da criança e do adolescente desempenhado por outra mulher, geralmente com vínculo de parentesco, porém sem se designar como sua mãe) são funções focalizadas pelo PBF.
De acordo com observações e entrevistas realizadas no estudo de caso, em uma família beneficiária do PBF a mulher-mãe ou aquela que eventualmente a substitui na função de maternagem tem como responsabilidade, entre outras: a) a realização do Cadastro Único para inclusão da família no programa; b) a atualização do referido cadastro sempre que ocorre alguma modificação na situação familiar (por exemplo, mudança de endereço, alteração no número de pessoas no domicílio, oscilação nos rendimentos); c) o recebimento do recurso repassado pelo programa; d) a aplicação do recurso de modo a beneficiar coletivamente o arranjo familiar; e) o controle sobre crianças e adolescentes, tendo em vista o cumprimento das condicionalidades do programa; e f) a participação em reuniões e demais atividades programadas pela equipe de profissionais responsáveis pela execução e pelo acompanhamento do programa.
Ao analisar o Programa Bolsa Escola, antecessor do PBF, Carin Klein10 observou que

Ao pagar um valor determinado, definido como salário, pretende-se que a mãe sinta "[...] a dignidade de seu trabalho e a importância de investir na construção de um futuro melhor para os seus filhos". Como importantes argumentos apresentados na cartilha 100 perguntas e respostas que você precisa saber sobre o Bolsa-Escola, encontramos que é através do Programa que se investe também na "valorização da mulher" ao torná-la a "provedora do núcleo familiar", contribuindo, assim, para que ela assuma um papel ativo na vida da família e no "controle da educação" de seus/suas filhos/as. Buarque considera que o benefício da Bolsa-Escola, pago à mãe para que ela cuide da educação de seu/sua filho/a, representa um "Emprego Social", pois garante estabilidade econômica e social para toda a família.
Carin Klein11 chama atenção na atuação desses programas que atuam para converter em termos equivalentes categorias como "mulher" e "mãe". A estratégia de inclusão e de interpelação das mulheres supõe a seguinte operação ideológica: mulher = mãe ou família = mãe. Essa estratégia relaciona-se ao processo de revalorização da família. Diante dos novos desenhos das políticas sociais voltadas para o combate à pobreza e dirigidas às famílias, uma antiga questão feminista deve ser retomada: qual é o lugar das mulheres na família e na relação com o Estado? Nesse aspecto, as contribuições feministas atualizam o debate sobre os riscos da cristalização dos papéis sociais de gênero que aprisionam as mulheres nas tarefas relacionadas ao cuidado, à maternagem e, de modo mais geral, à reprodução social.
As atividades reprodutivas das mulheres pobres aparecem como recurso aditivo dos programas de combate à pobreza, de modo a tornar mais eficientes os impactos produzidos pela transferência condicionada de renda. As contrapartidas do PBF, relacionadas à saúde e à educação,12 exigidas notadamente das mulheres, facilitam a ação da política na tarefa de mobilizar as mulheres para o cumprimento das obrigações, as quais são primordialmente consideradas 'femininas'.
Ocorre no PBF uma estratégia semelhante à encontrada em ações estatais junto às organizações populares de mulheres, pelo menos desde a década de 1980. Nessas ações são fomentadas as demandas que focalizam as necessidades das mulheres, como é o caso dos tradicionais projetos de geração de renda com trabalhos manuais.13 Essas demandas correspondem às necessidades práticas, visando minimizar as dificuldades das mulheres dentro do padrão das relações de gênero, sem atacar diretamente a questão da subordinação feminina e sem alterar, portanto, o padrão das relações sociais de gênero.14 As necessidades das mulheres, nesses casos, são interpretadas em relação à situação de pobreza, sem levar em consideração a situação de subordinação feminina.
No caso de ações como o PBF, as preocupações quanto à pobreza são dirigidas à família. O próprio direito ao recurso transferido é tipificado em termos de benefício à família, e não a indivíduos. Como consequência, as demandas feministas por atenção prioritária à situação das mulheres vão se transformando em familismos, que, no processo de tradução político-cultural, substituíram a demanda por empoderamento das mulheres por demandas que visam ao fortalecimento das famílias.15 A defesa da família como foco de preocupação é uma característica constitutiva de políticas de combate à pobreza como o PBF. Na medida em que a defesa da família é operacionalizada com foco nas funções femininas, logo essas políticas familistas reforçam a associação da mulher à maternidade.
O que nos interessa destacar para os objetivos da análise aqui proposta é que, mesmo com revisões teóricas a respeito da subordinação feminina, a maternidade segue sendo um ponto de debate e de preocupação entre as feministas, especialmente nas circunstâncias atuais de políticas familistas.
A família é, entre outros aspectos, o lugar social e simbólico16 em que a diferença, especialmente a diferença sexual, é assumida como base e, ao mesmo tempo, construída como tal. Chiara Saraceno comenta que não se trata apenas da necessidade fisiológica da reprodução e muito menos de legitimar a sexualidade, na família o reconhecimento de que a humanidade tem dois sexos torna-se princípio organizativo social global e a estrutura que organiza as relações sociais e os destinos individuais. A autora comenta que

Lugar em que os dois sexos se encontram e convivem, a família é também o espaço histórico e simbólico no qual e a partir do qual se desenvolve a divisão do trabalho, dos espaços, das competências, dos valores, dos destinos pessoais de homens e mulheres, ainda que isso assuma formas diversas nas várias sociedades. é, antes de mais nada, em nível da família que o fato de se pertencer a um determinado sexo se transforma em destino pessoal, implícita ou explicitamente regulamentado e que se situa numa hierarquia de valores, poder, responsabilidade.17
A gerência do recurso para beneficiar a família, principalmente as crianças, tem sido citada por diferentes autores e gestores dos programas de combate à pobreza, nos diferentes escalões, desde o âmbito federal até o municipal, e é nesse sentido que tem recaído sobre a mulher a preferência pela titularidade do benefício. As mulheres, na sua grande maioria, realmente utilizam o benefício para melhoria das condições de vida da família, em particular das crianças, nos quesitos alimentação, vestuário, compra de material escolar, mobiliário para a casa e material de construção para melhoria das condições físicas da casa.
A família moderna, como família dos sentimentos e da educação,18 nasce em torno das figuras da mãe e da criança, não só porque o espaço que as circunscreve é, cada vez mais, exclusivamente o doméstico-familiar, mas "porque se trata exatamente de duas figuras interdependentes. é a mulher identificada como mãe, não só no sentido biológico, mas também em termos afetivos e educativos, que exprime antes de tudo esta nova atenção e responsabilidade familiar para com as crianças".
Chiara Saraceno19 observa que o programa educativo e moral que está no centro da família moderna diz respeito à mãe como educadora e como sujeito a educar na própria "autêntica e natural vocação".
Quanto à utilização dos recursos para uso em benefício exclusivo dos filhos, a autora afirma, tendo por base a realidade europeia, que neste caso não difere da brasileira, que mais frequentemente a mulher-mãe renuncia "naturalmente a consumos individuais a favor dos consumos dos outros membros da família, o marido ou os filhos". E é sempre ela que põe todo o dinheiro no caixa comum, no caso de trabalhar, enquanto o marido e, eventualmente, os filhos descontam uma parte para si.20 A autora afirma, com base em uma pesquisa inglesa feita por Pahl, o quanto pode ser difícil, para uma mulher, distinguir entre despesas familiares e despesas para si, mesmo quando o dinheiro gasto é ganho por ela. O uso de recursos por parte da mulher constitui-se em um bom indicador, embora não único, das dinâmicas de poder e controle dentro da família.
Os discursos sobre feminilidade e maternidade apropriados pelo PBF com o intuito de potencializar o desempenho de suas ações no combate à pobreza reforçam o lugar social tradicionalmente destinado às mulheres: a casa, a família, o cuidado, o privado, a reprodução. é preciso que o programa se questione sobre o peso de cada uma dessas categorias para a subordinação e a autonomia das mulheres.

Considerações finais
A pesquisa qualitativa do estudo de caso em Londrina e as reflexões suscitadas nos possibilitaram apreender como uma política de combate à pobreza pode atuar para reforçar lugares sociais marcados pelos papéis tradicionais de gênero e, ao fazê-lo, encontra sérias dificuldades para se viabilizar como um programa de redução das desigualdades. A experiência coloca em evidência obstáculos que são gerados pelo uso acrítico de tradições sociais e culturais, que, na realidade, atuam de modo a favorecer a (re)produção das desigualdades. Os papéis de gênero, ao mesmo tempo binários e complementares, simbolizam essas tradições incorporadas pelo PBF. Consideramos que o PBF teria mais contribuições a oferecer na luta pela redução das desigualdades se viesse a incorporar concepções mais críticas acerca dos papéis de gênero.
Perante a política de assistência social, a família é identificada pela figura da mulher, e não pela do homem. E a mulher, por sua vez, é considerada com base nas funções maternas, o que fixa e essencializa o sujeito mulher, vinculando-o à maternidade. Consideramos, à luz de influências feministas a partir de autoras como, por exemplo, Joan Scott,21 Judith Butler,22 Chantal Mouffe23 e Nancy Fraser,24 que os processos de fixação e 'essencialização' de identidades, de homens e mulheres, constituem-se em sérios obstáculos para uma sociedade democrática, a qual exige a construção de sujeitos plurais e identidades contingentes. Consideramos, ainda, que a fixação de papéis sexuais, a exemplo do aprisionamento das mulheres às tarefas reprodutivas, contribui para o reforço da lógica binária de classificação e para a (re)produção da subordinação feminina.25
O modo como o Programa Bolsa Família atua em Londrina cria mecanismos que minimizam a responsabilidade dos homens e produzem a responsabilização das mulheres com o cuidado de crianças e adolescentes. Ao fazê-lo, contribui para a cristalização dos papéis de gênero. 


Silvana Aparecida MarianoI; Cássia Maria CarlotoII
IUniversidade Federal de Uberlândia
IIUniversidade Estadual de Londrina


Referências bibliográficas
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1 Luana PINHEIRO et al., 2008.
2 Henrietta MOORE, 1996.
3 PINHEIRO et al., 2008, p. 33.
4 Maria Lygia Quartim de MORAES, 2003.
5 Lena LAVINAS e Marcelo NICOLL, 2006.
6 Adotamos a referência de Mary Garcia CASTRO (2002), que compreende a vulnerabilidade social como o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais que provêm do Estado, do mercado e da sociedade. Esse resultado se traduz em debilidades ou desvantagens para o desempenho e a mobilidade social dos atores. Esse enfoque faz referência a três elementos de conformação de situações de vulnerabilidade de indivíduos, famílias ou comunidades: recursos materiais ou simbólicos, também chamados de ativos (Carlos Henrique FILGUEIRA, 2001); estruturas de oportunidades dadas pelo mercado, pelo Estado e pela sociedade; e estratégias de uso dos ativos.
7 PINHEIRO et al., 2008.
8 IBGE, 2000.
9 PINHEIRO et al., 2008.
10 Carin KLEIN, 2005, p. 37.
11 KLEIN, 2005.
12 De acordo com orientações do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MS), "ao entrar no Programa, a família se compromete a cumprir as condicionalidades do Bolsa Família nas áreas de saúde e educação, que são: manter as crianças e adolescentes em idade escolar freqüentando a escola; e cumprir os cuidados básicos em saúde, que é seguir o calendário de vacinação para as crianças entre 0 e 6 anos, e a agenda pré e pós-natal para as gestantes e mães em amamentação" (2009, grifo nosso).
13 Silvana Aparecida MARIANO, 2001 e 2008.
14 Leda Maria Vieira MACHADO, 1999.
15 Sonia ALVAREZ, 2000.
16 Chiara SARACENO, 1997.
17 SARACENO, 1997, p. 14.
18 SARACENO, 1997, p. 194.
19 SARACENO, 1997.
20 SARACENO, 1997, p. 195.
21 Joan SCOTT, 2002.
22 Judith BUTLER, 1998 e 2003.
23 Chantal MOUFFE, 1999 e 2003.
24 Nancy FRASER, 2002.
25 MARIANO, 2005 e 2008.




 


 

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