terça-feira, 28 de abril de 2015

Inês Etienne Romeu – Uma vida devotada à luta contra a tortura


 A morte de Inês Etienne Romeu, última sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis, encerra o ciclo da história oral dos que ali foram torturados. Agora que ela se foi, só nos restam os documentos escritos e as centenas de depoimentos que ela prestou sobre este triste episódio, que envergonha a história brasileira.
Obstinada na busca pela justiça, ela mostrou, a todos os que se dispuseram a ouvir, até que ponto pode chegar um sistema ditatorial que transforma os homens em fera e, no dizer da pensadora Hannah Arendt, banaliza o mal , transformando a ação bárbara da tortura em um ato de mera rotina profissional.
O fato de ter sobrevivido às sessões de tortura e o erro cometido por seus arrogantes algozes, que esperavam ter dominado sua mente, julgando-a incapaz de reagir, deu a nossa população as condições de saber exatamente o que eram os porões da ditadura e a existência desses centros clandestinos, como a Casa de Petrópolis, onde inúmeros opositores do regime militar de 1964 foram eliminados.
Inês Etienne foi incansável na sua vida após a prisão. Devotou o que restou dela na denúncia dos que participaram de seu sequestro, prisão, tortura e seviciamento: cobriu todo o país com palestras, e deu importantes depoimentos às Comissões da Verdade que mais tarde foram criadas. Mostrou o quanto foi cruel o Sistema ilegal montado por aqueles que se apropriaram do poder, derrubando um presidente legitimamente eleito, e a que ponto eles puderam chegar através dessas Casas de Tortura.
Certamente, trata-se de uma personagem importante na nossa história, honrando uma geração de jovens utópicos que não tiveram dúvidas em enfrentar um inimigo poderoso, na busca pela liberdade que naquele momento faltava ao país.
Oxalá sua vida e sua morte chamem à reflexão os incautos que acreditam que um sistema ditatorial pode ser melhor do que a liberdade política que ainda temos, e expressam tal vontade instigando os militares a se apropriarem novamente do poder político.
Nenhuma proposta de avanço econômico ou material pode justificar supressão da liberdade, em qualquer dos seus níveis, pois nos seus porões os regimes ditatoriais geram apenas excrescências inumanas – com as quais Etienne se deparou.
Sabemos que a sua luta não foi em vão e a história não se repetirá.
Fonte: Alindenor

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Mészáros: A disputa pelo Estado

No contexto do lançamento de seu novo livro, A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado, o filósofo marxista húngaro István Mészáros concedeu uma longa entrevista a Leonardo Cazes para o jornal O Globo, em que discutia alguns aspectos centrais da obra, como sua concepção de Estado, de democracia e da crise estrutural do capital, à luz de alguns dos protestos e mobilizações políticas que vêm se alastrando mundo afora. O resultado foi publicado parcialmente em fevereiro deste ano na matéria “Filósofo István Mészáros analisa ascenção de novos partidos na Europa como Syriza e Podemos. A material completo, contudo, supera em mais de três vezes o espaço disponibilizado pelo jornal. A pedido do autor, o Blog da Boitempo publica agora a versão integral da entrevista, enviada a nós diretamente pelo jornalista e revisada pelo tradutor Nélio Schneider. Também a pedido de Mészáros, a entrevista deve se somar ao apêndice das próximas edições ampliadas de A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado. Confira aqui a versão em inglês da entrevista, e abaixo a versão em português:
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Por que o senhor, no título de seu novo livro, comparou o Estado que se deve conquistar a uma montanha?
No sentido mais simples e direto, porque a estrada que devemos seguir para garantir nossa sobrevivência e nosso avanço está bloqueada por um obstáculo gigante – muitos Himalaias, um em cima do outro –, representado pelo poder de decisão global do Estado. E não podemos dar a volta nessa montanha, nem passar por cima dela. O perigo de fato consiste em que alguns poucos Estados nacionais têm o poder de destruir a humanidade inteira, um poder zelosamente defendido por eles como sua “segurança” e “autodefesa” nos seus confrontos, reais e potenciais, uns com os outros. E, enquanto os Estados e a sua necessária rivalidade sobreviverem, a esmagadora maioria da humanidade não pode fazer absolutamente nada contra isso. Nada pode ser mais absurdo do que isso.
A ideia de que, na tentativa de superar as desigualdades estruturalmente arraigadas e saná-las de uma forma duradoura, as pessoas poderiam usar a “sociedade civil” contra o poder do Estado é extremamente ingênua, para dizer o mínimo. Tal como a presunção de chamar de “ONGs”, isto é, “Organizações Não Governamentais” essas organizações pateticamente limitadas que dependem, para o seu financiamento e funcionamento, dos recursos concedidos pelo Estado. Essas mitologias autocontraditórias não podem oferecer soluções para os nossos piores problemas. O Estado é a estrutura política global de comando do sistema do capital em qualquer uma das suas formas conhecidas ou concebíveis. Sob as condições atuais não pode ser de outra maneira. É por isso que a ordem social reprodutiva do capital é antagônica ao seu núcleo e precisa da problemática função corretiva do Estado para transformar, num todo coeso, as partes constitutivas em conflito do sistema, na sua incurável centrifugalidade. Houve um tempo em que esse tipo de correção não era só defensável, mas trazia consigo um avanço histórico que a tudo conquistava. Hoje, entretanto, a outrora bem-sucedida função corretiva do Estado falha em funcionar de forma duradoura, na medida em que a profunda crise estrutural do sistema do capital fica cada vez mais clara. O resultado é uma destruição ainda maior, não apenas em incontáveis guerras, mas também da natureza. É por isso que argumento que a famosa frase de Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”, precisa ser reformulada para o nosso tempo em “barbárie, se tivermos sorte”. A aniquilação da humanidade é a nossa sina se falharmos na conquista dessa montanha que é o poder destrutivo e autodestrutivo das formações estatais do sistema do capital.
No mundo atual, os Estados nacionais parecem ter cada vez menos poder diante de organismos financeiros internacionais e mesmo de organizações políticas interestatais, como a União Europeia. Assim, qual é esse Estado que se deve conquistar?
A alegada redução do poder dos Estados-nações é um grande exagero alardeado por governos com o objetivo de justificar seus fracassos em promover até mesmo as limitadíssimas reformas sociais solenemente prometidas por eles. Os fatos mostram o contrário. Cito apenas alguns exemplos: o Syriza, respaldado por larga margem de votos, está tentando hoje afirmar os interesses gregos contra o FMI e a União Europeia. No Reino Unido, nas eleições gerais de maio próximo, o partido que deve ter o maior crescimento percentual em número de votos é o Partido Independente do Reino Unido (UKIP, na sigla em inglês). Além disso, sob o impacto do crescente sucesso do UKIP, o Partido Conservador (do primeiro-ministro David Cameron) está ameaçando deixar a União Europeia caso não ocorram mudanças no bloco que atendam aos interesses do país. A propósito, não se pode excluir a possibilidade de que a própria União Europeia acabe. Ainda mais representativo foi o plebiscito, realizado meses atrás, sobre a independência da Escócia. O percentual de eleitores que apoiaram a independência atingiu a impressionante marca de 45%, o que provavelmente levará à sua realização quando eles puderem votar sobre esse assunto novamente. Ao mesmo tempo, a Catalunha, na Espanha, está tentando afirmar os seus interesses no mesmo sentido, como mostram as votações recentes. Na Bélgica, temos contradições parecidas, em alguns casos com manifestações violentas, e também na Itália, na região do Alto Adige, há um forte movimento pressionando por independência. E não devemos esquecer que, na Europa Central, não faz muito tempo que a Eslováquia se separou da atual República Tcheca.
Assim, a realidade não é a eliminação das aspirações dos Estados nacionais, mas o superaquecimento de um caldeirão de perigosos antagonismos e contradições em vários níveis, todos situados entre os atuais Estados nacionais e aqueles que aspiram a tornar-se Estados nacionais e até mesmo as estruturas criadas para solucionar os antagonismos interestatais como União Europeia – que está muito longe de ser unificada. A crônica falta de solução para esses problemas oferece grandes perigos para a sobrevivência da humanidade. Por acaso devemos ignorar o fato de que os Estados Unidos estão ameaçando armar a Ucrânia contra a Rússia, com consequências potencialmente sérias e incalculáveis? Onde foram parar os dias de glória em que líderes políticos mundiais alardearam em alto e bom som “o fim da guerra fria”? E, para além do confronto entre EUA e Rússia, o que pensar do antagonismo, num horizonte não muito distante, entre EUA e China – os mais poderosos dos Estados nacionais – na disputa acirrada pelos recursos naturais do planeta? Trata-se de um antagonismo ainda limitado, mas com uma inegável tendência a intensificar-se. Estados nacionais rivais são totalmente incapazes de oferecer uma solução para esses antagonismos. Nenhuma organização financeira internacional, nem as bem-intencionadas organizações políticas interestatais conseguem sequer arranhar a superfície de problemas tão graves.
A gigantesca falha histórica do capital foi – e continua sendo – sua incapacidade de constituir o sistema do capital como um todo, enquanto irresistivelmente proclama os imperativos do seu sistema como as determinações materiais diretas da ordem reprodutiva do capital em escala global. Essa é uma enorme contradição. Antagonismos interestatais numa escala potencialmente autodestrutiva – um presságio foram as duas guerras mundiais do século passado quando ainda não tinham sido completamente desenvolvidas as atuais armas de autodestruição total – são a consequência necessária dessa contradição. Portanto, o Estado que devemos conquistar para a sobrevivência da humanidade é o Estado tal como nós o conhecemos, chamado de Estado em geral na sua realidade existente, como foi articulado ao longo do curso da história, e capaz de se afirmar apenas na sua modalidade antagônica tanto internamente quando nas suas relações internacionais.
O senhor aponta que o Estado tal como nós o conhecemos está fundado numa determinada ordem sociometabólica capitalista. É preciso conquistar o Estado para transformar essa ordem? Ou só a transformação da sociedade criará as condições para a transformação do Estado?
O Estado em si não pode refazer a ordem social reprodutiva do capital porque é uma parte integrante dela. O grande desafio da nossa época é a necessária erradicação do capital da nossa ordem sociometabólica. E isso é inconcebível sem erradicar, ao mesmo tempo, as formações estatais do capital historicamente constituídas em conjunção com a dimensão de reprodução material do sistema e inseparável dela.
O fato de o Estado, como a correção necessária para a centrifugalidade incurável do capital, poder se impor às partes constitutivas, sempre em nocivo conflito, de determinada ordem social não significa que o Estado possa impor arbitrariamente qualquer coisa imaginada pelas personificações políticas do capital. Pelo contrário, a imposição corretiva do Estado é objetivamente orientada pelo imperativo autoexpansionista da ordem reprodutiva material do capital. Uma ordem completamente incapaz de reconhecer algum limite a sua autoexpansão, gerando então uma contradição fatal. A insustentabilidade final dessa contradição é revelada pelo fato de que o que é internamente – no âmbito nacional – um requisito e uma conquista autoexpansionista de tendência internacional se tornam problemáticos e potencialmente autodestrutivos. A realidade repressiva do imperialismo monopolista e de suas guerras não é inteligível sem essa perversa dinâmica autoexpansionista instituída pelos Estados mais poderosos.
Assim, para que a tomada de decisão global no processo sociometabólico seja radicalmente alterada, é necessária a eliminação da já mencionada contradição fatal entre a dinâmica interna de reprodução produtiva do sistema e a tendência repressiva internacional inseparável dela, como vivido na ordem social do capital salvaguardada e defendida pelo Estado.
Alguns intelectuais veem a crise financeira iniciada em 2008 como uma crise do capitalismo. Para salvar os bancos, houve um endividamento gigantesco dos Estados. Esta crise do capitalismo é também uma crise do Estado?
Sem dúvida, a crise de que estamos falando é também a crise profunda do Estado. Os defensores do sistema passaram a promover a ilusão e o autoengano de que o Estado resolveu com sucesso a crise, despejando fundos astronômicos de trilhões de dólares no buraco sem fundo do capital quebrado. Mas de onde vieram esses trilhões astronômicos? O Estado como inventor desses fundos não é produtor de nenhum deles, mesmo que finja ser o distribuidor soberano com seus dispositivos, mais ou menos abertamente cínicos, de “quantitative easing [flexibilização quantitativa]” etc. No entanto, a amarga verdade  é que a maioria esmagadora dos Estados está quebrada – a quantia chega a 57 trilhões de dólares de acordo com os números mais recentes –, não importando o quanto consigam dissimular sua falência “ex officio”.
Há muitos anos, em um artigo escrito em 1987 e publicado pela primeira vez no Brasil em 1989, na revista “Ensaio”, citei uma fala do então presidente do Federal Reserve (o Banco Central norte-americano) no “Financial Times”, Robert Heller, defendendo que o déficit anual de US$ 188 bilhões na balança comercial norte-americana representava “a saudável continuação da expansão econômica atual”. E eu comentei isso com estas palavras: “Se US$ 188 bilhões de déficit na balança comercial, junto com déficits orçamentários astronômicos, podem ser considerados a continuação saudável da expansão econômica, é estarrecedor pensar o que serão as condições não saudáveis da economia quando nos defrontarmos com elas”. Agora estamos muito próximos disso. Assim, a resposta já está clara o suficiente, indicando o endividamento catastrófico e a falência velada das mais poderosas economias capitalistas, sendo os Estados Unidos responsáveis por 20 trilhões de dólares dessa conta, que continua crescendo inexoravelmente. Isso prosseguirá, não importando quantas vezes os presidentes dos Bancos Centrais ainda venham com a cantilena do que chamam “condições saudáveis de expansão”.
No livro, o senhor parece acreditar que o chamado “fenecimento do Estado” é inevitável. O que o leva a acreditar nisso?
Neste caso não se coloca a questão da inevitabilidade. Dizer que o “fenecimento do Estado” é necessário significa apenas que se trata de uma condição vital exigida para a solução dos problemas em jogo. Mas isso não significa que essa exigência vá realizar-se inevitavelmente. Pelo contrário, aumenta o perigo de que o Estado, com seu gigantesco poder de destruição, dê um fim catastrófico a todo o esforço de transformação e emancipação, o que contraria toda a ilusão da chamada “inevitabilidade histórica”.
Não pode haver algo como “inevitabilidade histórica” em direção ao futuro. História é um destino aberto para o bem ou para o mal. Ressaltar a necessidade do “fenecimento” do Estado foi, em primeiro lugar, um meio de contestar a ilusão anarquista de que a “derrubada do Estado” pode resolver os problemas em disputa. O Estado em si não pode ser “derrubado”, tendo em vista o seu profundo entranhamento no metabolismo social. As relações capitalistas de propriedade privada de determinado Estado podem ser derrubadas, mas isso por si só não é uma solução. Tudo que pode ser derrubado pode também ser restaurado, e tem sido assim, como o destino da “Perestroika” de Gorbachev demonstrou amplamente. Capital, trabalho e o Estado estão profundamente interligados no todo orgânico do metabolismo social historicamente constituído. Nenhum deles pode ser derrubado sozinho, nem ser “reconstituído” separadamente.
A mudança exigida requer a transformação radical do metabolismo reprodutivo social na sua totalidade e em todas as partes profundamente interconectadas que o constituem. E isso só pode ser feito com sucesso em sintonia com as circunstâncias históricas em mudança, dentro dos limites do nosso planeta. Esse é o significado da alternativa socialista à ordem sociometabólica do capital, agora perigosamente sobrecarregada e perdulária. Essa alternativa não é uma questão de “inevitabilidade”. A inevitabilidade deve ser deixada para a lei da gravidade, segundo a qual as pedras lançadas por Galileu da torre inclinada de Pisa atingiriam o solo com toda certeza. É por isso que, na conclusão do meu livro, escrevi que “aquilo pelo que essa alternativa socialista clama é a exigência tangível de sustentabilidade histórica. E isso também é oferecido como o critério e a medida de seu sucesso viável. Em outras palavras, o teste de validade em si é definido em termos da viabilidade histórica e sustentabilidade prática, ou não, como pode ser o caso” [p. 111-2].
Uma das principais críticas à concepção marxista da história é que ela seria muito teleológica. Esta concepção de que o colapso do Estado é inevitável não seria também um tanto teleológica?
Apenas marxistas dogmáticos mecanicistas argumentariam nesses termos. Marx nunca fez isso. Além do mais, sete décadas antes de “socialismo ou barbárie” de Rosa Luxemburgo, ele escreveu que a alternativa por ele defendida era necessária aos seres humanos “para salvar a sua própria existência”. Em outras palavras, se um pensador claramente afirma que a ação humana autodestrutiva em curso – que advém dos antagonismos internos e das contradições perigosas de certo sistema de reprodução social, estabelecido pelos próprios seres humanos – pode colocar um fim no desenvolvimento histórico, isso é o oposto da crença em uma misteriosa teleologia da inevitabilidade histórica, e não sua defesa.
De qualquer forma, indicar a crescente probabilidade do colapso ou da implosão é sempre muito mais fácil do que projetar em termos concretos algo como um mero o esboço de um resultado positivo viável. Porque este último depende de uma grande multiplicidade de fatores que interagem entre si, colocados em movimento por esforços humanos mais ou menos conscientes, confrontando-se uns aos outros em circunstâncias históricas confusamente complicadas e mudanças na relação de forças. É por isso que é tão importante o desenvolvimento de uma consciência social no âmbito de sistemas de valores rivais, junto com seus requisitos educacionais. Não passaria de uma ilusão autodestrutiva esperar um resultado positivo aparecer através de uma agência supra-humana fictícia de alguma teleologia histórica quase messiânica preexistente.
O senhor é bastante crítico à “democracia representativa”, mas também não demonstra entusiasmo pela assim chamada “democracia direta”. Em vez disso, propõe uma “democracia substantiva”. Quais são as bases dessa democracia substantiva e como ela funcionaria?
A defesa feita por Rousseau de algo parecido com a democracia direta, abraçada na fase inicial da Revolução Francesa, tem uma precedência histórica sobre a democracia representativa. Esta última foi concebida mais como uma reação do que como uma forma original sustentável de controle político. Além do mais, não devemos esquecer que o grande filósofo liberal/utilitarista Jeremy Bentham começou sua carreira intelectual como opositor da Revolução Americana, no calor dos acontecimentos. A democracia representativa foi convenientemente adotada por muitos parlamentos, mas produz resultados muito limitados. Trata-se de uma forma de controle muito problemática até mesmo nos seus próprios termos de referência e nas conquistas que reivindica para si. A crítica feita por Hegel foi certeira quando ele escreveu em sua “Filosofia da história” que, nessa forma de administração política, “os Poucos supõem ser os deputados, mas eles são quase sempre apenas os exploradores dos Muitos”. Ele poderia ter apontado também que os Muitos não são simplesmente os “Muitos”, mas simultaneamente também os “Todos”. Mesmo que os Muitos possam ser verdadeiramente representados pelo Partido temporariamente dominante, isso ainda assim excluiria boa quantidade dos “Todos”, o que fez Hegel cogitar a tirania da maioria sobre a minoria. Mas é claro que ele não pôde ir além disso, dado o seu próprio horizonte de classe e sua concepção econômica, adaptada da economia política de Adam Smith com sua combinação de benção e maldição orientada para o capital.
Apesar dos seus méritos relativos em comparação com a democracia representativa, a ideia da democracia direta é também muito problemática. Ao se colocar como alternativa à democracia representativa no domínio político, ela ainda está muito longe de começar a perceber a grande tarefa histórica da transformação radical do metabolismo social em sua totalidade. Por isso não surpreende nem um pouco que até seu contraexemplo institucional extremamente limitado dos “delegados revogáveis” em vez dos “deputados representativos” agora eleitos para o sistema político tenha se comprovado como totalmente incompatível, nos dois últimos séculos, com a ordem de reprodução social estabelecida. Além disso, a sugestão bem-intencionada de pagar a esses delegados o mesmo que se paga aos trabalhadores de fábrica não deu em nada, embora tenha sido defendida apaixonadamente por Lenin no seu livro “Estado e revolução” e também depois da vitoriosa Revolução de Outubro. Nas sociedades capitalistas ocidentais, temos ouvido falar da virtude da proposta de ter trabalhadores ou até conselhos de trabalhadores participando diretamente do processo de decisão das empresas, como um elemento de democracia direta, esperando assim uma grande transformação da sociedade como um todo com o tempo. Isso é como a raposa da fábula, ao pé da árvore, dizendo ao corvo, que segura no bico um enorme pedaço de queijo, como seu canto é lindo e pedindo que ele cante, na esperança de que ele deixe o queijo cair. Mas o corvo não é tão estúpido a ponto de alimentar a raposa e ficar com fome. A questão da democracia substantiva é um caso de processos decisórios vitais em todos os domínios e em todos os níveis do processo de reprodução social, com base numa igualdade substantiva. E isso exige a alteração radical no metabolismo social como um todo, substituindo o seu caráter alienado e a superimposição alienante de todo o processo de decisão política do Estado sobre a sociedade. Esse é o único modo em que a democracia substantiva pode adquirir e manter o seu significado.
Na Europa, na Ásia e na América Latina, as ruas foram ocupadas por protestos contra o poder estabelecido, sejam ditaduras ou democracias. Como o senhor avalia esses movimentos? Eles podem ser o motor de uma mudança fundamental da sociedade capitalista?
Sem dúvida nenhuma, estamos assistindo às mais notáveis demonstrações de protesto em todo o mundo nos últimos anos. Ao mesmo tempo, já que as demandas das pessoas nesses protestos de massa não foram atendidas, dificilmente se poderá duvidar que eles reaparecerão em todo o mundo e até mais intensamente se continuarem a ser frustrados. Contudo, seria imprudente pular para uma conclusão otimista tendo em vista a imensa dimensão desses movimentos de protesto mundiais. Não obstante, seria muito prematuro ver neles já o motor de uma mudança fundamental da sociedade capitalista. Esses movimentos de protesto são certamente prenúncios de uma necessária mudança fundamental. A magnitude dessa mudança fundamental exigida é indicada não apenas pelas demonstrações de massa que inequivocamente dizem “não” à perpetuação de múltiplas injustiças, mas também pela subsequente expressão de simpatia e solidariedade das massas que ainda não estão nas ruas. Uma palavra de cautela é necessária, entretanto, porque é sempre mais fácil dizer “não” ao que existe de prejudicial do que elaborar uma alternativa positiva a ele. Se tomarmos a sustentabilidade histórica como critério e medida da alternativa exigida, devemos aplicá-la também aos movimentos de protesto de massa emergentes. Eles apareceram por todo mundo em geral de forma espontânea e numa grande variedade de formas, relacionadas à multiplicidade de suas queixas particulares. Em algum ponto do futuro, entretanto, eles devem se unir numa força historicamente sustentável, caso queiram se tornar o que você descreveu corretamente como “o motor de uma mudança fundamental da sociedade capitalista”. Só podemos torcer para que essa coesão estratégica se manifeste rapidamente, antes que seja tarde demais.
A Europa tem assistido a ascensão de novos partidos de esquerda, muitas vezes classificados como “radicais”. O Syriza venceu as eleições na Grécia e o Podemos já é a segunda força política na Espanha. Como o senhor vê esses novos partidos? Que tipos de mudança são possíveis por dentro das estruturas atuais?
Syriza e Podemos são bons exemplos da resposta necessária à imposição das cruéis medidas de austeridade pelas autoridades financeiras e estatais internacionais à Grécia e à Espanha, agravadas pela submissão servil de seus respectivos governos nacionais. Mas muito além desses dois países, as medidas de austeridade desumanizantes estão se tornando visíveis e intoleráveis em muitas partes do mundo capitalista, incluindo aqueles países que uma vez pertenceram ao punhado de privilegiados do “Estado de bem-estar”. O que torna esses partidos particularmente significantes não é apenas que nasceram na esteira de uma esquerda adormecida, mas também alcançaram uma grande massa de apoiadores em um período muito curto de tempo. Nesse sentido, eles claramente sublinham a insustentabilidade da ordem de reprodução social estabelecida que recorre a cruéis medidas de austeridade até na Europa do capitalismo avançado, depois de prometer por tanto tempo – e totalmente em vão – a difusão do bem-estar universal em todos os lugares do mundo. A expectativa de sucesso dos movimentos mundiais de protesto, mencionados na pergunta anterior, pode ser bastante reforçada pelo desenvolvimento desses partidos. Mas também a esse respeito, uma concepção global estrategicamente viável elaborada por eles, em busca de uma alternativa à ordem existente que seja sustentável historicamente, continua sendo um requisito necessário.
Mais de 20 anos após o fim da União Soviética, por que o senhor acredita que a alternativa socialista não é só possível, mas também necessária?
Em termos históricos, 20 anos é um período muito curto. Isso é um fato especialmente quando a magnitude da tarefa que se apresenta é a da necessidade de mudança radical do sociometabolismo reprodutivo como um todo de uma ordem de desigualdade substantiva para outra de igualdade substantiva. E o desafio histórico para garantir uma ordem de igualdade substantiva não é uma questão das últimas décadas. A demanda por essa mudança foi eloquentemente afirmada por Babeuf e seus camaradas da “Sociedade dos Iguais”, não há 20, mas há exatamente 220 anos, quando eles insistiram em que: “Não precisamos apenas da igualdade de direitos inscrita na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; precisamos dela em nosso meio, sob o teto das nossas casas”. Sua demanda era totalmente incompatível com a ordem do capital em consolidação, e eles foram executados por isso. Mas o desafio histórico não morreu com eles, já que envolve toda a humanidade. E nenhuma solução parcial ou o seu fracasso pode eliminar essa condição.
Os fatores que levaram à implosão do sistema soviético têm raízes muito profundas. Para citar muito rapidamente apenas duas: as contradições explosivas, herdadas dos czares, de um império multinacional que reprimiu suas minorias nacionais e a proclamação do “socialismo em um só país”, num contexto em que de fato prevalecia o sistema do capital pós-revolucionário. No que diz respeito à primeira contradição fatídica – cujas reverberações perigosas podem ser ouvidas ainda hoje –, Lenin defendia para as minorias nacionais o “direito de autonomia até o ponto de secessão”, e ele criticou incisivamente Stalin como um “nacional-socialista” arbitrário e “valentão da Grande Rússia”; ao passo que Stalin reduziu as minorias nacionais ao status de “região de fronteiras” indispensáveis para a manutenção do “poderio da Rússia”. Em relação à segunda deturpação fatídica, Stalin e seus seguidores afirmaram “a completa realização do socialismo em um só país”, em total contradição com a visão de Marx de que uma ordem social alternativa “só é possível como um ato dos povos dominantes de uma só vez e simultaneamente, o que pressupõe o desenvolvimento universal das forças produtivas e a inter-relação mundial a ele vinculado”.
Babeuf e seus camaradas tragicamente subiram ao palco da história antes da hora com a sua demanda radical. Naquele tempo, o capital ainda tinha o potencial de expansão através da conquista do mundo, mesmo que seu modo de operação nunca tenha podido superar as características problemáticas daquilo que até mesmo seus melhores defensores no campo da economia política descreveram como destruição criativa ou produtiva. Pois a destruição sempre foi parte integrante disso, tendo em vista o crescente desperdício inseparável da inexorável tendência autoexpansionista do capital, mesmo na fase de ascensão do seu desenvolvimento histórico. A maior e mais perigosa ironia da história moderna é que a outrora tão incensada “destruição produtiva” se converteu, na fase descendente de desenvolvimento sistêmico do capital, em uma produção destrutiva ainda mais insustentável, tanto no campo da produção de mercadorias quanto no domínio da natureza, complementada pela ameaça definitiva de destruição militar em defesa da ordem estabelecida. É por isso que a alternativa socialista não só é possível –no sentido já mencionado de sua sustentabilidade histórica –, mas também é necessária, no interesse da sobrevivência da humanidade.
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A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado, novo livro de István Mészáros, tem quarta-capa assinada por John Bellamy Foster, apresentação de Ivana Jinkings, texto de orelha de Alysson Leandro Mascaro, e vem acrescido de dois apêndices: o capítulo “Como poderia o Estado fenecer?”, de Para além do capital, e uma entrevista concedida pelo filósofo à jornalista Eleonora de Lucena em 2013.
István Mészáros é autor de extensa obra, ganhador de prêmios como o Attila József, em 1951, o Deutscher Memorial Prize, em 1970, e o Premio Libertador al Pensamiento Crítico, em 2008, István Mészáros se afirma como um dos mais importantes pensadores da atualidade. Nasceu no ano de 1930, em Budapeste, Hungria, onde se graduou em filosofia e tornou-se discípulo de György Lukács no Instituto de Estética. Deixou o Leste Europeu após o levante de outubro de 1956 e exilou-se na Itália. Ministrou aulas em diversas universidades, na Europa e na América Latina e recebeu o título de Professor Emérito de Filosofia pela Universidade de Sussex em 1991. Entre seus livros, destacam-se

Fonte: BOITEMPO 

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Antônio David: Vladimir Safatle e o difícil exercício da (auto)crítica

Vladimir Safatle é um dos mais renomados intelectuais brasileiros da nova geração. Filiado ao PSOL desde 2013, ele é hoje uma das vozes da esquerda socialista no Brasil, sobre a qual tem inegável influência.
Safatle concedeu entrevista à Rede Brasil Atual, na qual abordou os mais recentes acontecimentos da conjuntura política brasileira. Uma entrevista curta, porém rica em pontos de natureza estratégica. Vale a pena tomar suas declarações como ponto de referência para tratar dos impasses da esquerda no Brasil.
Neste artigo, pretendo tratar de um impasse, em particular: a ausência de autocrítica.
Safatle sustenta ser necessária uma transformação radical. Para tanto, propõe “uma nova Assembleia Constituinte”, que deve ser “autônoma”, “extra-parlamentar”, “com alta presença popular”, tudo com vistas a “voltar ao grau zero da representação”. Safatle tem em mente nada menos que “reconstruir uma experiência democrática”. Em suma, para Safatle, precisamos de “um sistema completamente diferente” do que temos.
A situação deveria ser de tal forma outra que, segundo Safatle, aqueles que foram para as ruas defender a volta da ditadura “deveriam estar na cadeia”. Segundo Safatle, para estes “não tem discussão, tem lei”. (Como sabemos, a realidade é bem diferente).
Quais são as condições para tal transformação radical?
Safatle não diz textualmente, mas supõe-se que as condições são criadas pela mobilização do campo da esquerda. Ao menos, é o que Safatle sugere quando critica a estratégia dos governos Lula e Dilma pela “desmobilização do campo de esquerda”. Infere-se que as condições poderiam ter sido (ou ainda podem ser) criadas pela esquerda. Esse ponto é central no argumento.
Se as condições podem ser criadas pela esquerda, por que a esquerda optou por não criá-las? O que deu errado?
Antes de examinarmos a questão, sigamos o raciocínio de Safatle.
Ele vai mais longe na crítica: diz ele que a “Nova República foi um fracasso do ponto de vista político” e que “a experiência democrática não deu certo”. Tais assertivas baseiam-se no fato de que “todo e qualquer governo deveria compor com agentes da ditadura e gerir uma massa fisiológica”. Note-se: “todo e qualquer governo”. De fato, foi o que ocorreu. Safatle conclui essa parte do raciocínio dizendo que se “criou um sistema que torna impossível governar um processo de transformação”.
(Se, ao dizer isso, Safatle nega a existência de um processo de transformação em curso, ou se para ele a transformação em curso é tímida demais, pouco importa. O que importa no argumento é que a estratégia esgotou-se. Voltarei a esse ponto mais adiante, pois aqui reside parte importante do impasse).
Assim, “desmobilização do campo de esquerda” e fracasso da Nova República são como irmãos gêmeos.
O raciocínio de Safatle esconde aquela que é a polêmica fundamental que dividiu e ainda divide a esquerda brasileira. É necessário examiná-la.
A polêmica nasce de uma questão que pode ser expressa nos seguintes termos: se o sistema é blindado, tal como Safatle sustenta, como enfrentar tal blindagem?
Há muitas opiniões. Entretanto, correndo o risco de eliminar detalhes, penso ser possível reduzi-las a duas grandes correntes de pensamento.
Para alguns, cabe à esquerda adotar uma estratégia de enfrentamento. Safatle situa-se nesse campo. Para essa corrente de pensamento, a conciliação apenas produziria o que produziu: “fracasso”. É certo que “todo e qualquer governo” teria de lidar com um Estado blindado, mas um governo de enfrentamento ao menos produziria a “mobilização do campo da esquerda”. Eis ai a possibilidade da transformação. Claro que essa corrente de pensamento supõe que, com mobilização, a esquerda teria tido (tem) chances de triunfar em face da reação da direita.
Para outros, cabe à esquerda adotar uma estratégia de conciliação. Segundo essa corrente de pensamento, o enfrentamento invariavelmente levaria à derrota, e a esquerda sairia do processo pior do que entrou. Melhor é fazer mudanças lentamente, minimizando ao máximo os riscos. Trata-se da estratégia que foi implementada.
(Não é preciso lembrar que, no interior de cada uma dessas duas correntes, há grupos diferentes com pontos de vista diferentes).
Essa estratégia de fato esgotou-se? E caso tenha se esgotado, devemos dar razão à primeira corrente de pensamento?
Ao invés de dar razão a uma ou outra dentre as duas correntes, penso ser mais proveitoso procurar entender as razões de cada uma. Não só porque, de fato, cada uma tem suas razões, mas, sobretudo, porque os impasses vividos pela esquerda na atual conjuntura exigem uma síntese.
Quais são as razões da primeira corrente de pensamento, aquela que advoga pelo enfrentamento?
Em uma palavra: o enfrentamento é inevitável. Mesmo que façamos todo o esforço para evitá-lo, fazendo todas as concessões, o outro lado nunca aceitará a mudança, mesmo que a mudança seja lenta. A direita não admite mudança alguma e aproveitará todas as oportunidades para reagir, inclusive de maneira violenta. Já vemos no horizonte.
E quais são as razões da segunda corrente de pensamento, que defende a conciliação como estratégia?
O próprio Safatle evoca os argumentos que dão razão para a segunda corrente de pensamento quando reconhece que haveria no Brasil “uma direita extremada que se aproveita de um descontentamento popular real”. Não escolhi essa frase aleatoriamente. Note-se: o fato de haver, tal como Safatle enuncia, “um processo de caça à esquerda formado há muito tempo”, não dá razão à segunda corrente de pensamento, mas o fato de haver descontentamento popular, sim.
Deveríamos no mínimo refletir se uma estratégia de enfrentamento pode suportar uma reação da direita se considerarmos que o enfrentamento produz instabilidade econômica e que, num cenário de instabilidade econômica, não é razoável esperar apoio popular. O povo não apoia um governo de esquerda pelo simples fato de o governo ser de esquerda. O povo apoia o governo quando sua vida melhora.
Aqui, afasto-me de Safatle quando ele afirma que “o Brasil sempre foi um país dividido entre direita e esquerda”. Trata-se de uma má leitura do Brasil. Na verdade, o Brasil sempre foi dividido entre ricos e pobres e entre brancos e negros, mas a divisão política entre direita e esquerda só raras vezes veio à tona. Na verdade o povo não é por natureza nem de esquerda, nem de direita, mas vulnerável à mobilização da esquerda e da direita de acordo com a situação.
Dito isso, se as duas correntes de pensamento possuem as suas razões, penso ser o caso de perguntar se existe espaço para uma síntese entre ambas.
A síntese, assim penso, pode ser formulada nestes termos: se por um lado o enfrentamento é inevitável (de sorte que negá-lo é como cometer suicídio), por outro lado a esquerda tem de preparar as condições – ou seja, a si mesma e ao povo – para o enfrentamento (pois enfrentamento sem apoio popular é igualmente suicídio).
Ora, o apoio popular não se conquista com propaganda; por melhor que seja a propaganda, se a mesa e o bolso estão vazios, a propaganda da direita sempre será melhor. Apoio popular conquista-se com a melhora real e concreta das condições de vida material e cultural do povo.
Penso ser inegável ter havido nos últimos doze anos melhora nas condições de vida material do povo. Então por que o povo parece agora afastar-se do governo? Onde foi que o governo errou?
O equívoco da estratégia do lulismo não consiste em ter levado a cabo um governo de conciliação; consiste em ter acreditado na conciliação. Ao acreditar naquilo que deveria ser visto como instrumental, o lulismo não preparou sua base militante nem o povo para o enfrentamento. Acreditou que o processo iniciado em 2002 seguiria adiante de maneira linear.
Ao mesmo tempo, o equívoco daqueles que advogam pelo enfrentamento é não ter visto o potencial transformador da estratégia de conciliação. Foi exatamente um governo de conciliação que propiciou a melhora das condições de vida material do povo e que, paradoxalmente, alimentou o conflito, mesmo quando sua intenção era evitá-lo. Se hoje o povo quer mais, é porque foi empurrado (pelo governo) a querer mais.
A origem e a persistência dos equívocos remonta a um período anterior à eleição de Lula em 2002.
Ao invés de enfrentar o desafio teórico e prático de buscar uma síntese quando da crise aberta pela derrota de Lula em 1989, os dois lados foram aos poucos transformando suas leituras em dogmas, num processo em que as convicções e identidades dos dois grupos forjaram-se mutuamente, no embate, na base mesmo da polarização. Uns empurraram os outros para o pólo oposto. Quanto mais uns negavam a conciliação, mais os outros apegavam-se a ela, tomando-a como princípio. O mesmo vale para o enfrentamento.
Não é por acaso que, hoje, enquanto uns tomam a conciliação como se esta fosse um princípio sagrado e descartam todo e qualquer enfrentamento, outros consideram a conciliação impensável em quaisquer circunstâncias e não cogitam agir de outra maneira que não através do enfrentamento. A luta interna nos anos 80 e 90 forjou duas correntes de pensamento num processo centrífugo que jogou os dois grupos para pólos extremos, incapazes de dialogar e cooperar.
O que essa divisão produziu? De um lado, uma esquerda forte eleitoralmente, mas, salvo exceções, incapaz de cumprir as tarefas de mobilização exigidas pela atual conjuntura; de outro lado, uma esquerda vocacionada para a mobilização, mas, salvo exceções, incapaz de mobilizar o povo, pois manteve-se distante dos processos reais de melhora das condições de vida dos trabalhadores (especialmente dos mais pobres) levados à cabo na última década.
Negando-se uma à outra, as duas correntes de pensamento não se prepararam para os embates de agora e que estão por vir. Não se prepararam cada uma a si porque não tiveram a generosidade de preparar uma à outra.
Mas o mundo dá voltas, e os acontecimentos das últimas semanas abriram (mais uma vez) a oportunidade de uma síntese entre os dois campos. No entanto, só haverá síntese se houver autocrítica, e esta, ao contrário dos embates com a direita, não parece estar no horizonte. A derrota política parece causar menos medo do que a crise de identidade virtualmente aberta pelo exercício da autocrítica.
No lugar da autocrítica, insiste-se nos esquemas cristalizados: uns partem do pressuposto de que  a conciliação promove a mudança, não reconhecendo o papel do enfrentamento; outros partem do pressuposto de que  o enfrentamento promove a mudança, ignorando o papel da conciliação.
Os primeiros ignoram que só uma sociedade na qual a cultura democrática é predominante admite mudança sem enfrentamentos e que, cada vez mais, conciliar significará colocar a perder o que foi conquistado nos últimos anos. Os segundos ignoram que só faz sentido cogitar em enfrentamento se houver na sociedade uma força social expressiva, grande e massiva disposta a fazer enfrentamento, e que a parte da sociedade brasileira que tem interesse nas mudanças foi (e ainda é) beneficiada pelos governos Lula e Dilma.
Conciliação e enfrentamento não são palavras necessariamente antagônicas e excludentes. É a estratégia que as torna divergentes ou convergentes. A superação dos impasses históricos do Brasil, herdados do passado colonial, exigem convergência entre conciliação e enfrentamento.
Todos criam uma narrativa do passado com vistas a justificar suas escolhas no presente. Ao abstrair o governo e o PT da história da esquerda no Brasil, a narrativa segundo a qual a estratégia do governo teria levado a uma “desmobilização do campo da esquerda” esconde o fato de que tal desmobilização deu-se não apenas ou simplesmente pela ação deste ou daquele ator, mas, sobretudo, no interior do processo de luta interna na esquerda, como fruto do desencontro entre os desafios impostos pela conciliação e os desafios impostos pelo enfrentamento, e que desse desencontro produziu-se o atual quadro de desmobilização de massas.
Se o desafio consiste em mobilizar, há que se olhar para as raízes do problema. Tocando em pontos capitais da conjuntura política brasileira, Safatle ainda não conseguiu ultrapassar os limites de um pensamento que não consegue acertar constas consigo mesmo.
PS. Num determinado momento da entrevista, Safatle afirma que “durante anos uma parte muito significativa da classe média votou no PT”. A expressão “parte muito significativa” é um tanto vaga. Convém notar, no entanto, que o voto no PT nunca foi predominante nessa classe. Em relação à relação entre voto e classe, se é certo não haver uma clivagem total (evidentemente, há pobres entre os eleitores de Aécio e ricos entre os eleitores de Dilma), Safatle perde de vista a predominância. Em cada fração de classe, predomina certa preferência. O fenômeno da predominância verifica-se inclusive nas recentes manifestações, como as pesquisas mostraram.
Antônio David desenvolve pesquisa de doutorado no Departamento de Filosofia da USP.

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