No contexto do lançamento de seu novo livro, A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado, o filósofo marxista húngaro István Mészáros concedeu uma longa entrevista a Leonardo Cazes para o jornal O Globo,
em que discutia alguns aspectos centrais da obra, como sua concepção de
Estado, de democracia e da crise estrutural do capital, à luz de alguns
dos protestos e mobilizações políticas que vêm se alastrando mundo
afora. O resultado foi publicado parcialmente em fevereiro deste ano na matéria “Filósofo István Mészáros analisa ascenção de novos partidos na Europa como Syriza e Podemos“. A material completo, contudo, supera em mais de três vezes o espaço disponibilizado pelo jornal. A pedido do autor, o Blog da Boitempo
publica agora a versão integral da entrevista, enviada a nós
diretamente pelo jornalista e revisada pelo tradutor Nélio Schneider.
Também a pedido de Mészáros, a entrevista deve se somar ao apêndice
das próximas edições ampliadas de A montanha que devemos conquistar: reflexões acerca do Estado. Confira aqui a versão em inglês da entrevista, e abaixo a versão em português:
***
Por que o senhor, no título de seu novo livro, comparou o Estado que se deve conquistar a uma montanha?
No sentido
mais simples e direto, porque a estrada que devemos seguir para garantir
nossa sobrevivência e nosso avanço está bloqueada por um obstáculo
gigante – muitos Himalaias, um em cima do outro –, representado pelo
poder de decisão global do Estado. E não podemos dar a volta nessa
montanha, nem passar por cima dela. O perigo de fato consiste em que
alguns poucos Estados nacionais têm o poder de destruir a humanidade
inteira, um poder zelosamente defendido por eles como sua “segurança” e
“autodefesa” nos seus confrontos, reais e potenciais, uns com os outros.
E, enquanto os Estados e a sua necessária rivalidade sobreviverem, a
esmagadora maioria da humanidade não pode fazer absolutamente nada
contra isso. Nada pode ser mais absurdo do que isso.
A ideia de
que, na tentativa de superar as desigualdades estruturalmente arraigadas
e saná-las de uma forma duradoura, as pessoas poderiam usar a “sociedade civil” contra o poder do Estado é extremamente ingênua, para dizer o mínimo. Tal como a presunção de chamar de “ONGs”,
isto é, “Organizações Não Governamentais” essas organizações
pateticamente limitadas que dependem, para o seu financiamento e
funcionamento, dos recursos concedidos pelo Estado. Essas mitologias
autocontraditórias não podem oferecer soluções para os nossos piores
problemas. O Estado é a estrutura política global de comando do
sistema do capital em qualquer uma das suas formas conhecidas ou
concebíveis. Sob as condições atuais não pode ser de outra maneira. É
por isso que a ordem social reprodutiva do capital é antagônica ao seu
núcleo e precisa da problemática função corretiva do Estado para
transformar, num todo coeso, as partes constitutivas em conflito do
sistema, na sua incurável centrifugalidade. Houve um tempo em
que esse tipo de correção não era só defensável, mas trazia consigo um
avanço histórico que a tudo conquistava. Hoje, entretanto, a outrora
bem-sucedida função corretiva do Estado falha em funcionar de forma
duradoura, na medida em que a profunda crise estrutural do sistema do
capital fica cada vez mais clara. O resultado é uma destruição ainda
maior, não apenas em incontáveis guerras, mas também da natureza. É por
isso que argumento que a famosa frase de Rosa Luxemburgo, “socialismo ou
barbárie”, precisa ser reformulada para o nosso tempo em “barbárie, se tivermos sorte”.
A aniquilação da humanidade é a nossa sina se falharmos na conquista
dessa montanha que é o poder destrutivo e autodestrutivo das formações
estatais do sistema do capital.
No mundo atual, os Estados nacionais parecem ter cada vez
menos poder diante de organismos financeiros internacionais e mesmo de
organizações políticas interestatais, como a União Europeia. Assim, qual
é esse Estado que se deve conquistar?
A alegada redução do poder dos
Estados-nações é um grande exagero alardeado por governos com o objetivo
de justificar seus fracassos em promover até mesmo as limitadíssimas
reformas sociais solenemente prometidas por eles. Os fatos mostram o
contrário. Cito apenas alguns exemplos: o Syriza, respaldado por larga
margem de votos, está tentando hoje afirmar os interesses gregos contra o
FMI e a União Europeia. No Reino Unido, nas eleições gerais de maio
próximo, o partido que deve ter o maior crescimento percentual em número
de votos é o Partido Independente do Reino Unido (UKIP, na sigla em
inglês). Além disso, sob o impacto do crescente sucesso do UKIP, o
Partido Conservador (do primeiro-ministro David Cameron) está ameaçando
deixar a União Europeia caso não ocorram mudanças no bloco que atendam
aos interesses do país. A propósito, não se pode excluir a possibilidade
de que a própria União Europeia acabe. Ainda mais representativo foi o
plebiscito, realizado meses atrás, sobre a independência da Escócia. O
percentual de eleitores que apoiaram a independência atingiu a
impressionante marca de 45%, o que provavelmente levará à sua
realização quando eles puderem votar sobre esse assunto novamente. Ao
mesmo tempo, a Catalunha, na Espanha, está tentando afirmar os seus
interesses no mesmo sentido, como mostram as votações recentes. Na
Bélgica, temos contradições parecidas, em alguns casos com manifestações
violentas, e também na Itália, na região do Alto Adige, há um forte
movimento pressionando por independência. E não devemos esquecer que, na
Europa Central, não faz muito tempo que a Eslováquia se separou da
atual República Tcheca.
Assim, a realidade não é a eliminação das
aspirações dos Estados nacionais, mas o superaquecimento de um
caldeirão de perigosos antagonismos e contradições em vários níveis,
todos situados entre os atuais Estados nacionais e aqueles que aspiram a
tornar-se Estados nacionais e até mesmo as estruturas criadas para
solucionar os antagonismos interestatais como União Europeia – que está
muito longe de ser unificada. A crônica falta de solução para esses
problemas oferece grandes perigos para a sobrevivência da humanidade.
Por acaso devemos ignorar o fato de que os Estados Unidos estão
ameaçando armar a Ucrânia contra a Rússia, com consequências
potencialmente sérias e incalculáveis? Onde foram parar os dias de
glória em que líderes políticos mundiais alardearam em alto e bom som “o
fim da guerra fria”? E, para além do confronto entre EUA e Rússia, o
que pensar do antagonismo, num horizonte não muito distante, entre EUA e
China – os mais poderosos dos Estados nacionais – na disputa acirrada
pelos recursos naturais do planeta? Trata-se de um antagonismo ainda
limitado, mas com uma inegável tendência a intensificar-se. Estados
nacionais rivais são totalmente incapazes de oferecer uma solução para
esses antagonismos. Nenhuma organização financeira internacional, nem as
bem-intencionadas organizações políticas interestatais conseguem sequer
arranhar a superfície de problemas tão graves.
A gigantesca falha histórica do capital foi – e continua sendo – sua incapacidade de constituir o sistema do capital como um todo,
enquanto irresistivelmente proclama os imperativos do seu sistema como
as determinações materiais diretas da ordem reprodutiva do capital em
escala global. Essa é uma enorme contradição. Antagonismos interestatais
numa escala potencialmente autodestrutiva – um presságio foram as duas
guerras mundiais do século passado quando ainda não tinham sido
completamente desenvolvidas as atuais armas de autodestruição total
– são a consequência necessária dessa contradição. Portanto, o Estado
que devemos conquistar para a sobrevivência da humanidade é o Estado tal como nós o conhecemos, chamado de Estado em geral
na sua realidade existente, como foi articulado ao longo do curso da
história, e capaz de se afirmar apenas na sua modalidade antagônica
tanto internamente quando nas suas relações internacionais.
O
senhor aponta que o Estado tal como nós o conhecemos está fundado numa
determinada ordem sociometabólica capitalista. É preciso conquistar o
Estado para transformar essa ordem? Ou só a transformação da sociedade
criará as condições para a transformação do Estado?
O Estado em si não pode refazer a ordem social reprodutiva do capital porque é uma parte integrante dela. O grande desafio da nossa época é a necessária erradicação
do capital da nossa ordem sociometabólica. E isso é inconcebível sem
erradicar, ao mesmo tempo, as formações estatais do capital
historicamente constituídas em conjunção com a dimensão de reprodução
material do sistema e inseparável dela.
O fato de o
Estado, como a correção necessária para a centrifugalidade incurável do
capital, poder se impor às partes constitutivas, sempre em nocivo
conflito, de determinada ordem social não significa que o Estado possa
impor arbitrariamente qualquer coisa imaginada pelas personificações
políticas do capital. Pelo contrário, a imposição corretiva do Estado é
objetivamente orientada pelo imperativo autoexpansionista da ordem reprodutiva material do capital. Uma ordem completamente incapaz de reconhecer algum limite
a sua autoexpansão, gerando então uma contradição fatal. A
insustentabilidade final dessa contradição é revelada pelo fato de que o
que é internamente – no âmbito nacional – um requisito e uma conquista autoexpansionista de tendência internacional se tornam problemáticos e potencialmente autodestrutivos. A realidade repressiva do imperialismo
monopolista e de suas guerras não é inteligível sem essa perversa
dinâmica autoexpansionista instituída pelos Estados mais poderosos.
Assim, para que a tomada de decisão global no processo sociometabólico seja radicalmente alterada, é necessária a eliminação da já mencionada contradição fatal entre a dinâmica interna de reprodução produtiva do sistema e a tendência repressiva internacional inseparável dela, como vivido na ordem social do capital salvaguardada e defendida pelo Estado.
Alguns intelectuais veem a crise
financeira iniciada em 2008 como uma crise do capitalismo. Para salvar
os bancos, houve um endividamento gigantesco dos Estados. Esta crise do
capitalismo é também uma crise do Estado?
Sem dúvida, a
crise de que estamos falando é também a crise profunda do Estado. Os
defensores do sistema passaram a promover a ilusão e o autoengano de que
o Estado resolveu com sucesso a crise, despejando fundos astronômicos
de trilhões de dólares no buraco sem fundo do capital quebrado. Mas de
onde vieram esses trilhões astronômicos? O Estado como inventor desses
fundos não é produtor de nenhum deles, mesmo que finja ser o
distribuidor soberano com seus dispositivos, mais ou menos abertamente
cínicos, de “quantitative easing [flexibilização quantitativa]”
etc. No entanto, a amarga verdade é que a maioria esmagadora dos
Estados está quebrada – a quantia chega a 57 trilhões de dólares de acordo com os números mais recentes –, não importando o quanto consigam dissimular sua falência “ex officio”.
Há muitos
anos, em um artigo escrito em 1987 e publicado pela primeira vez no
Brasil em 1989, na revista “Ensaio”, citei uma fala do então presidente
do Federal Reserve (o Banco Central norte-americano) no “Financial
Times”, Robert Heller, defendendo que o déficit anual de US$ 188 bilhões
na balança comercial norte-americana representava “a saudável
continuação da expansão econômica atual”. E eu comentei isso com estas
palavras: “Se US$ 188 bilhões de déficit na balança comercial, junto com
déficits orçamentários astronômicos, podem ser considerados a
continuação saudável da expansão econômica, é estarrecedor pensar o que
serão as condições não saudáveis da economia quando nos defrontarmos com
elas”. Agora estamos muito próximos disso. Assim, a resposta já está
clara o suficiente, indicando o endividamento catastrófico e a falência
velada das mais poderosas economias capitalistas, sendo os Estados
Unidos responsáveis por 20 trilhões de dólares dessa conta, que continua
crescendo inexoravelmente. Isso prosseguirá, não importando quantas
vezes os presidentes dos Bancos Centrais ainda venham com a cantilena do
que chamam “condições saudáveis de expansão”.
No livro, o senhor parece acreditar que o chamado “fenecimento do Estado” é inevitável. O que o leva a acreditar nisso?
Neste caso não se coloca a questão da inevitabilidade. Dizer que o “fenecimento do Estado” é necessário significa apenas que se trata de uma condição vital exigida para a solução dos problemas em jogo. Mas isso não significa que essa exigência vá realizar-se inevitavelmente.
Pelo contrário, aumenta o perigo de que o Estado, com seu gigantesco
poder de destruição, dê um fim catastrófico a todo o esforço de
transformação e emancipação, o que contraria toda a ilusão da chamada
“inevitabilidade histórica”.
Não pode haver algo como “inevitabilidade histórica” em direção ao futuro. História é um destino aberto
para o bem ou para o mal. Ressaltar a necessidade do “fenecimento” do
Estado foi, em primeiro lugar, um meio de contestar a ilusão anarquista
de que a “derrubada do Estado” pode resolver os problemas em disputa. O
Estado em si não pode ser “derrubado”, tendo em vista o seu profundo
entranhamento no metabolismo social. As relações capitalistas de
propriedade privada de determinado Estado podem ser derrubadas, mas isso
por si só não é uma solução. Tudo que pode ser derrubado pode também
ser restaurado, e tem sido assim, como o destino da “Perestroika” de
Gorbachev demonstrou amplamente. Capital, trabalho e o Estado estão
profundamente interligados no todo orgânico do metabolismo social
historicamente constituído. Nenhum deles pode ser derrubado sozinho, nem
ser “reconstituído” separadamente.
A mudança
exigida requer a transformação radical do metabolismo reprodutivo social
na sua totalidade e em todas as partes profundamente interconectadas
que o constituem. E isso só pode ser feito com sucesso em sintonia com
as circunstâncias históricas em mudança, dentro dos limites do nosso
planeta. Esse é o significado da alternativa socialista à ordem
sociometabólica do capital, agora perigosamente sobrecarregada e
perdulária. Essa alternativa não é uma questão de “inevitabilidade”. A
inevitabilidade deve ser deixada para a lei da gravidade, segundo a qual
as pedras lançadas por Galileu da torre inclinada de Pisa atingiriam o
solo com toda certeza. É por isso que, na conclusão do meu livro,
escrevi que “aquilo pelo que essa alternativa socialista clama é a
exigência tangível de sustentabilidade histórica. E isso também é oferecido como o critério e a medida de seu sucesso viável. Em outras palavras, o teste de validade em si é definido em termos da viabilidade histórica e sustentabilidade prática, ou não, como pode ser o caso” [p. 111-2].
Uma das principais críticas à
concepção marxista da história é que ela seria muito teleológica. Esta
concepção de que o colapso do Estado é inevitável não seria também um
tanto teleológica?
Apenas
marxistas dogmáticos mecanicistas argumentariam nesses termos. Marx
nunca fez isso. Além do mais, sete décadas antes de “socialismo ou
barbárie” de Rosa Luxemburgo, ele escreveu que a alternativa por ele
defendida era necessária aos seres humanos “para salvar a sua própria
existência”. Em outras palavras, se um pensador claramente afirma que a
ação humana autodestrutiva em curso – que advém dos antagonismos
internos e das contradições perigosas de certo sistema de reprodução
social, estabelecido pelos próprios seres humanos – pode colocar um fim
no desenvolvimento histórico, isso é o oposto da crença em uma misteriosa teleologia da inevitabilidade histórica, e não sua defesa.
De qualquer
forma, indicar a crescente probabilidade do colapso ou da implosão é
sempre muito mais fácil do que projetar em termos concretos algo como um
mero o esboço de um resultado positivo viável. Porque este último
depende de uma grande multiplicidade de fatores que interagem entre si,
colocados em movimento por esforços humanos mais ou menos conscientes,
confrontando-se uns aos outros em circunstâncias históricas confusamente
complicadas e mudanças na relação de forças. É por isso que é tão
importante o desenvolvimento de uma consciência social no âmbito de sistemas de valores rivais, junto com seus requisitos educacionais.
Não passaria de uma ilusão autodestrutiva esperar um resultado positivo
aparecer através de uma agência supra-humana fictícia de alguma
teleologia histórica quase messiânica preexistente.
O senhor é bastante crítico à
“democracia representativa”, mas também não demonstra entusiasmo pela
assim chamada “democracia direta”. Em vez disso, propõe uma “democracia
substantiva”. Quais são as bases dessa democracia substantiva e como ela
funcionaria?
A defesa
feita por Rousseau de algo parecido com a democracia direta, abraçada na
fase inicial da Revolução Francesa, tem uma precedência histórica sobre
a democracia representativa. Esta última foi concebida mais como uma
reação do que como uma forma original sustentável de controle político.
Além do mais, não devemos esquecer que o grande filósofo
liberal/utilitarista Jeremy Bentham começou sua carreira intelectual
como opositor da Revolução Americana, no calor dos acontecimentos. A
democracia representativa foi convenientemente adotada por muitos
parlamentos, mas produz resultados muito limitados. Trata-se de uma
forma de controle muito problemática até mesmo nos seus próprios termos
de referência e nas conquistas que reivindica para si. A crítica feita
por Hegel foi certeira quando ele escreveu em sua “Filosofia da
história” que, nessa forma de administração política, “os Poucos supõem
ser os deputados, mas eles são quase sempre apenas os exploradores
dos Muitos”. Ele poderia ter apontado também que os Muitos não são
simplesmente os “Muitos”, mas simultaneamente também os “Todos”. Mesmo
que os Muitos possam ser verdadeiramente representados pelo Partido
temporariamente dominante, isso ainda assim excluiria boa quantidade dos
“Todos”, o que fez Hegel cogitar a tirania da maioria sobre a minoria.
Mas é claro que ele não pôde ir além disso, dado o seu próprio horizonte
de classe e sua concepção econômica, adaptada da economia política de
Adam Smith com sua combinação de benção e maldição orientada para o
capital.
Apesar dos
seus méritos relativos em comparação com a democracia representativa, a
ideia da democracia direta é também muito problemática. Ao se colocar
como alternativa à democracia representativa no domínio político, ela
ainda está muito longe de começar a perceber a grande tarefa histórica
da transformação radical do metabolismo social em sua totalidade. Por
isso não surpreende nem um pouco que até seu contraexemplo institucional
extremamente limitado dos “delegados revogáveis” em vez dos “deputados
representativos” agora eleitos para o sistema político tenha se
comprovado como totalmente incompatível, nos dois últimos séculos, com a
ordem de reprodução social estabelecida. Além disso, a sugestão
bem-intencionada de pagar a esses delegados o mesmo que se paga aos
trabalhadores de fábrica não deu em nada, embora tenha sido defendida
apaixonadamente por Lenin no seu livro “Estado e revolução” e também
depois da vitoriosa Revolução de Outubro. Nas sociedades capitalistas
ocidentais, temos ouvido falar da virtude da proposta de ter
trabalhadores ou até conselhos de trabalhadores participando diretamente
do processo de decisão das empresas, como um elemento de democracia
direta, esperando assim uma grande transformação da sociedade como um
todo com o tempo. Isso é como a raposa da fábula, ao pé da árvore,
dizendo ao corvo, que segura no bico um enorme pedaço de queijo, como
seu canto é lindo e pedindo que ele cante, na esperança de que ele deixe
o queijo cair. Mas o corvo não é tão estúpido a ponto de alimentar a
raposa e ficar com fome. A questão da democracia substantiva é um caso de processos decisórios vitais em todos os domínios e em todos os níveis do processo de reprodução social, com base numa igualdade substantiva.
E isso exige a alteração radical no metabolismo social como um todo,
substituindo o seu caráter alienado e a superimposição alienante de todo
o processo de decisão política do Estado sobre a sociedade. Esse é o
único modo em que a democracia substantiva pode adquirir e manter o seu
significado.
Na Europa, na Ásia e na América
Latina, as ruas foram ocupadas por protestos contra o poder
estabelecido, sejam ditaduras ou democracias. Como o senhor avalia esses
movimentos? Eles podem ser o motor de uma mudança fundamental da
sociedade capitalista?
Sem dúvida
nenhuma, estamos assistindo às mais notáveis demonstrações de protesto
em todo o mundo nos últimos anos. Ao mesmo tempo, já que as demandas das
pessoas nesses protestos de massa não foram atendidas, dificilmente se
poderá duvidar que eles reaparecerão em todo o mundo e até mais
intensamente se continuarem a ser frustrados. Contudo, seria imprudente
pular para uma conclusão otimista tendo em vista a imensa dimensão
desses movimentos de protesto mundiais. Não obstante, seria muito
prematuro ver neles já o motor de uma mudança fundamental da sociedade
capitalista. Esses movimentos de protesto são certamente prenúncios
de uma necessária mudança fundamental. A magnitude dessa mudança
fundamental exigida é indicada não apenas pelas demonstrações de massa
que inequivocamente dizem “não” à perpetuação de múltiplas
injustiças, mas também pela subsequente expressão de simpatia e
solidariedade das massas que ainda não estão nas ruas. Uma palavra de
cautela é necessária, entretanto, porque é sempre mais fácil dizer “não”
ao que existe de prejudicial do que elaborar uma alternativa positiva a
ele. Se tomarmos a sustentabilidade histórica como critério e
medida da alternativa exigida, devemos aplicá-la também aos movimentos
de protesto de massa emergentes. Eles apareceram por todo mundo em geral
de forma espontânea e numa grande variedade de formas, relacionadas à
multiplicidade de suas queixas particulares. Em algum ponto do futuro,
entretanto, eles devem se unir numa força historicamente
sustentável, caso queiram se tornar o que você descreveu corretamente
como “o motor de uma mudança fundamental da sociedade capitalista”. Só
podemos torcer para que essa coesão estratégica se manifeste
rapidamente, antes que seja tarde demais.
A Europa tem assistido a ascensão
de novos partidos de esquerda, muitas vezes classificados como
“radicais”. O Syriza venceu as eleições na Grécia e o Podemos já é a
segunda força política na Espanha. Como o senhor vê esses novos
partidos? Que tipos de mudança são possíveis por dentro das estruturas
atuais?
Syriza e
Podemos são bons exemplos da resposta necessária à imposição das cruéis
medidas de austeridade pelas autoridades financeiras e estatais
internacionais à Grécia e à Espanha, agravadas pela submissão servil de
seus respectivos governos nacionais. Mas muito além desses dois países,
as medidas de austeridade desumanizantes estão se tornando visíveis e
intoleráveis em muitas partes do mundo capitalista, incluindo aqueles
países que uma vez pertenceram ao punhado de privilegiados do “Estado de
bem-estar”. O que torna esses partidos particularmente significantes
não é apenas que nasceram na esteira de uma esquerda adormecida, mas
também alcançaram uma grande massa de apoiadores em um período muito
curto de tempo. Nesse sentido, eles claramente sublinham a insustentabilidade
da ordem de reprodução social estabelecida que recorre a cruéis medidas
de austeridade até na Europa do capitalismo avançado, depois de
prometer por tanto tempo – e totalmente em vão – a difusão do
bem-estar universal em todos os lugares do mundo. A expectativa de
sucesso dos movimentos mundiais de protesto, mencionados na pergunta
anterior, pode ser bastante reforçada pelo desenvolvimento desses
partidos. Mas também a esse respeito, uma concepção global
estrategicamente viável elaborada por eles, em busca de uma alternativa à
ordem existente que seja sustentável historicamente, continua sendo um
requisito necessário.
Mais de 20 anos após o fim da
União Soviética, por que o senhor acredita que a alternativa socialista
não é só possível, mas também necessária?
Em termos históricos, 20 anos é um
período muito curto. Isso é um fato especialmente quando a magnitude da
tarefa que se apresenta é a da necessidade de mudança radical do
sociometabolismo reprodutivo como um todo de uma ordem de desigualdade substantiva para outra de igualdade substantiva.
E o desafio histórico para garantir uma ordem de igualdade substantiva
não é uma questão das últimas décadas. A demanda por essa mudança foi
eloquentemente afirmada por Babeuf e seus camaradas da “Sociedade dos
Iguais”, não há 20, mas há exatamente 220 anos, quando
eles insistiram em que: “Não precisamos apenas da igualdade de direitos
inscrita na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; precisamos
dela em nosso meio, sob o teto das nossas casas”. Sua demanda era
totalmente incompatível com a ordem do capital em consolidação, e eles
foram executados por isso. Mas o desafio histórico não morreu com eles,
já que envolve toda a humanidade. E nenhuma solução parcial ou o seu
fracasso pode eliminar essa condição.
Os fatores
que levaram à implosão do sistema soviético têm raízes muito profundas.
Para citar muito rapidamente apenas duas: as contradições explosivas,
herdadas dos czares, de um império multinacional que reprimiu suas
minorias nacionais e a proclamação do “socialismo em um só país”, num
contexto em que de fato prevalecia o sistema do capital
pós-revolucionário. No que diz respeito à primeira contradição fatídica
– cujas reverberações perigosas podem ser ouvidas ainda hoje –, Lenin
defendia para as minorias nacionais o “direito de autonomia até o ponto
de secessão”, e ele criticou incisivamente Stalin como um
“nacional-socialista” arbitrário e “valentão da Grande Rússia”; ao passo
que Stalin reduziu as minorias nacionais ao status de “região
de fronteiras” indispensáveis para a manutenção do “poderio da Rússia”.
Em relação à segunda deturpação fatídica, Stalin e seus seguidores
afirmaram “a completa realização do socialismo em um só país”, em total
contradição com a visão de Marx de que uma ordem social alternativa “só é
possível como um ato dos povos dominantes de uma só vez e
simultaneamente, o que pressupõe o desenvolvimento universal das forças
produtivas e a inter-relação mundial a ele vinculado”.
Babeuf e
seus camaradas tragicamente subiram ao palco da história antes da hora
com a sua demanda radical. Naquele tempo, o capital ainda tinha o
potencial de expansão através da conquista do mundo, mesmo que seu modo
de operação nunca tenha podido superar as características
problemáticas daquilo que até mesmo seus melhores defensores no campo da
economia política descreveram como destruição criativa ou produtiva.
Pois a destruição sempre foi parte integrante disso, tendo em
vista o crescente desperdício inseparável da inexorável tendência
autoexpansionista do capital, mesmo na fase de ascensão do seu
desenvolvimento histórico. A maior e mais perigosa ironia da história
moderna é que a outrora tão incensada “destruição produtiva” se converteu, na fase descendente de desenvolvimento sistêmico do capital, em uma produção destrutiva
ainda mais insustentável, tanto no campo da produção de mercadorias
quanto no domínio da natureza, complementada pela ameaça definitiva de
destruição militar em defesa da ordem estabelecida. É por isso que a
alternativa socialista não só é possível –no sentido já mencionado de
sua sustentabilidade histórica –, mas também é necessária, no interesse
da sobrevivência da humanidade.
***

Fonte: BOITEMPO
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