domingo, 21 de junho de 2015

O CAOS IDEOLÓGICO (NO BRASIL)

Parece necessário reconhecer que a origem da grande confusão ideológica do país, neste momento, são as próprias forças progressistas e o governo
“O PSDB não tem um projeto de país”
Alberto Goldman, vice-presidente nacional do PSDB (FSP, 27/05/2015)
“O governo está sem rumo e está levando o PT junto”
Senador Paulo Paim (PT-RS) (Brasil 247, 27/05/2015)
Em meio à crise política e à retração econômica brasileira, o jantar do dia 12 de maio, da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, no Waldorf Astoria de Nova York, reunindo banqueiros, empresários e políticos da alta cúpula do PSDB, em torno da pessoa dos ex-presidentes Bill Clinton e Fernando H. Cardoso, foi um clarão no meio da confusão ideológica dominante. Em termos estritamente antropológicos, representou uma espécie de pajelança tribal de reafirmação de velhas convicções e alianças que estiveram na origem do próprio partido socialdemocrata brasileiro. Mas do ponto de vista mais amplo, pode se transformar numa baliza de referência para a clarificação e remontagem do mapa político brasileiro.
Afinal, este grupo liderado pelo ex-presidente FHC, foi o único que esteve presente e ocupou um lugar de destaque nas reuniões formais e informais que cercaram a posse de Bill Clinton, em 1993, em Washington. Naquele momento foi sacramentada a aliança do PSDB com a facção democrata e o governo liderada pela família Clinton. Uma aliança que se manteve durante os dois mandatos de Clinton e FHC, assegurando o apoio do Brasil à criação da ALCA e garantindo a ajuda financeira americana que salvou o governo FHC da falência. Estes dois grupos estiveram juntos na formulação e sustentação das reformas e politicas do Consenso de Washington e voltaram a estar juntos nas reuniões da “Terceira Via”, criada por Tony Blair e Bill Clinton, em 2008, reencontrando-se agora de novo, na véspera da candidatura presidencial de Hillary Clinton.
Durante todo este tempo, os socialdemocratas brasileiros mantiveram sua defesa incondicional do alinhamento estratégico do Brasil, ao lado dos EUA, dentro e fora da América Latina; sua opção irrestrita pelo livre-comércio e pela abertura dos mercados locais; pela redução do papel do Estado na economia; pela defesa da centralidade do capital privado no comando do desenvolvimento brasileiro; e finalmente pela aplicação e irrestrita das politicas econômicas ortodoxas. Estas posições orientaram a politica interna e a estratégia internacional dos dois governos do PSDB, na década de 90, e seguem orientando a posição atual do PSDB, favorável à reabertura de negociações para criação da ALCA; à mudança do regime de exploração do “pré-sal”; ao fim da exigência de conteúdo nacional nos mercados de serviços e insumos básicos da Petrobras e das grandes construtoras brasileiras.
Isto pode não ser “um projeto de país”, mas com certeza é um programa de governo rigorosamente liberal, que só coincide de forma circunstancial e oportunista com as teses neoconservadoras defendidas hoje no Brasil por movimentos religiosos de forte conteúdo fundamentalista. A novidade destes movimentos no cenário politico brasileiro atual surpreende o observador, mas suas teses sobre família, sexo, religião etc não são originais e sua liderança carece da capacidade de formular e propor um projeto hegemônico para a sociedade brasileira. O mesmo pode ser dito com relação ao poder real das recentes mobilizações de rua e de redes sociais, que fazem muito barulho mas também não conseguem dar uma formulação intelectual e ideológica consistente às suas próprias iras e reivindicações.
Deste ponto de vista, parece necessário reconhecer que a origem da grande confusão ideológica do país, neste momento, são as próprias forças progressistas e o governo que acabou de ser eleito por uma coalizão de centro-esquerda. Não é fácil identificar o denominador comum que une todas estas forças, mas não há duvida que seu projeto econômico aponta muito mais para o ideal de um “capitalismo organizado” sob liderança estatal, do que para o modelo anglo-saxônico do “capitalismo desregulado”; para uma politica agressiva de redistribuição de renda e prestação gratuita de serviços universais, do que para uma política social de tipo seletiva e assistencialista; e finalmente, para uma estratégia internacional de liderança ativa dentro de América Latina, e de uma aliança multipolar com as potências emergentes sem descartar as velhas potencias do sistema, muito mais do que para um alinhamento focado em algum país ou bloco ideológico de países.
Se assim é, como explicar à opinião publica mais ou menos ilustrada, que um governo progressista deste tipo coloque no comando de sua politica econômica um tecnocrata que não tem apenas convicções e competências ortodoxas, mas que seja também um ideólogo neoliberal que defende abertamente em todos os foros, uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo para o país absolutamente idêntica a que é defendida pelo grupo que participou do jantar no Waldorf Astoria, no dia 12 de maio? E como entender um ministro de Energia, que defende em reuniões internacionais, o fim da politica de “conteúdo local” e do “regime de partilha”, do pré-sal, duas politicas que são uma marca dos últimos 13 anos de governo, e uma diferença fundamental com a posição defendida pelos mesmos comensais de Nova York?
Por fim, para levar a confusão até o limite do caos, como explicar que o ministro de Assuntos Estratégicos deste mesmo governo, proponha abertamente, pela imprensa, como se fosse apenas um acadêmico de férias, que se faça uma revisão completa da política externa brasileira da última década, com a suspensão do Mercosul que foi criado e é liderado pelo Brasil, e com a mudança do foco e das prioridades estratégicas do país, que deveria agora alinhar-se com os EUA para enfrentar a ameaça da “ascensão econômica e militar chinesa”?
Tudo isto dito de forma absolutamente tranquila, exatamente uma semana antes da visita oficial do primeiro-ministro chinês ao Brasil, que já havia sido anunciada junto com um pacote de projetos e de recursos para levar a frente uma estratégia de longo prazo que passa – entre outras coisas – pela construção de uma ferrovia transoceânica capaz de dar ao Brasil, finalmente, um acesso direto ao Pacifico, com repercussões óbvias no campo da geopolítica e geoeconomia continental. Além disto, este “grande estratego” do governo fez sua proposta um mês antes da reunião do BRICS, na Rússia, em que será criado o banco de investimento conjunto do grupo, sob a óbvia liderança econômica da China. Uma trapalhada pior do que esta, só se fosse proposta também a internacionalização da Amazônia.
Talvez por isto tantos humanistas sonhem hoje com o aparecimento de uma nova utopia de longo prazo, como as que moveram os revolucionários e os grandes reformadores dos séculos XIX e XX. Mas o mais provável é que estas utopias não voltem mais, e que o futuro tenha que ser construído a partir do que está aí, a partir da sociedade e das ideias que existem, com imaginação, criatividade, a uma imensa paixão pelo futuro do país.

Por:  JOSÉ LUÍS FIORI

sábado, 13 de junho de 2015

A rebelião não será gourmetizada

“Esta “nueva derecha práctica”. No es izquierda sino ex-quierda. 
…desde quando “somos todos de esquerda”?! Desde quando “é tudo a mesma coisa”?! Até quando sustentarão essa farsa conciliatória de classes do “amplo, geral e irrestrito” campo “democrático-popular”?!
A nossa rebeldia sentida na pele, atualizada a cada novo dia de trabalho, de transporte público e de humilhação cotidiana vivida nestas Cidades-Mercadorias frente os patrões e o estado, por quem hoje seguimos sendo monitorados, criminalizados e reprimidos pela simples rebeldia de existir pobre, preto ou periférico, desde pelo Exército de Lula e Dilma na Favela da Maré no Rio de Janeiro – e tb sempre a postos diante de qualquer manifestação popular mais radical (nossos presos de Junho e dos despejos e espoliações da #CopaDasCopas que o digam…); ou nas vilas e Cabulas cotidianas chacinadas pela Polícia Militar Baiana dos governadores-genocidas petistas, Sres. Jaques Wagner, este sionista baba-ovo de torturador, e agora o sr. Rui Costa (PT-BA); ou pela Guarda Civil Metropolitana de Haddad e seus “rapas” de todos os dias, por toda a região central da cidade de São Paulo. Esquerda?! Onde, cara pálida?! Essa “Democratização”, esse “Desenvolvimento” e essa “Pacificação” promovida por vocês… essa Exquerda e essa Paz são “uma senhora branca que nunca sequer olhou na nossa cara!”.”
Crítica coletiva e pública à realização do Seminário Internacional “Cidades Rebeldes”,organizado pela Boitempo Editorial e o SESC São Paulo. Por Movimento Independente Mães de Maio
“Eu sou problema de montão / De carnaval a carnaval / Eu vim da selva / Sou leão / Sou demais pro seu quintal” – Racionais MCs em “Negro drama”
No final da semana passada, após o cancelamento – por questões de saúde – da participação do intelectual-companheiro Stephen Graham no Seminário Internacional “Cidades Rebeldes”, alguns companheiros-trabalhadores da Boitempo Editorial (organizadora do seminário) convidaram integrantes de nosso movimento para completar a mesa específica sobre “Polis, polícia: violência policial & urbanização”, que compõe a sua programação completa (Confira as mesas na íntegra aqui:).
Diante do convite de última hora, durante o fim de semana nós do Movimento Independente Mães de Maio meditamos e discutimos bastante, coletivamente, e decidimos não participar deste Seminário Internacional pelas razões a seguir, as quais também achamos importante tornar públicas (não apenas para os inscritos e demais participantes do Seminário, mas também para a reflexão de toda esquerda autônoma e anticapitalista).
 Para começo de conversa, uma primeira grande decepção: com toda nossa história de luta cotidiana contra a violência policial no Brasil ao longo dos últimos 9 anos, e (humildemente) o barulho, as denúncias, as medidas práticas (e as reflexões) que temos feito, todos os dias, frente a cada execução/chacina da polícia não só aqui em SP, mas em todo o Brasil, o movimento Mães de Maio ter sido chamado apenas após a desistência de um dos intelectuais da mesa não nos soou digno, à altura do respeito que exigimos e fazemos por onde merecer cotidianamente nas ruas. Os companheiros intelectuais, sobretudo os de esquerda, a nosso ver deveriam ser os primeiros a tomar a iniciativa e construir espaços em conjunto com/de/para os movimentos sociais populares, principalmente para escuta e aprendizado mútuo. Rebeldemente rompidas algumas dessas persistentes torres de marfim – reprodutoras de hierarquizações e privilégios seculares, possivelmente muito teríamos a aprender de parte a parte. Porém, salvo raras exceções – as estrelas de sempre de alguns movimentos, as catracas das mesas de seminários, da participação em pesquisas ou em grandes colóquios públicos, as cercas dos “latifúndios do ar”, infelizmente, seguem erguidas para a grande maioria dos integrantes dos movimentos sociais.
 Por outro lado, num primeiro momento, soou francamente tentador (e para nós seria uma honra) poder trocar ideia com intelectuais-realmente-compromissados-e-companheiros como Lúcio Gregori, David Harvey, Mariana Fix, entre outros que compõem as mesas atualizadas do Seminário e, sobretudo, trocar ideia com as centenas de pessoas inscritas no ciclo – a grande maioria delas, certamente, pessoas de esquerda e interessadas em buscar conhecimento crítico e transformador – que tem na editora e nesses intelectuais referências importantes nas suas trajetórias. Além de nossa contribuição ao debate-papo, poderíamos também levar os materiais de agitação/informação/formação do nosso movimento (camisetas, livros, DVDs etc produzidos nós por nós), que geralmente vendemos (a preços baixos) para garantir a nossa autonomia na luta cotidiana, ao mesmo tempo em que dividimos/difundimos nossa caminhada com outros tantos compas. Uma troca de ideia proveitosa com alguns verdadeiros camaradas, o “luxo curricular” de constar o nome de alguns de nossos integrantes em meio à galáxia de estrelas da nossa intelectualidade de esquerda (e de exquerda tb, de currículos que lattes-mas-não-mordem), muito possivelmente venderíamos um bocado de material – o que, tudo somado, poderia ser muito interessante para nós… (Particular e pessoalmente?)
PORÉM, HÁ UMA QUESTÃO MUITO SÉRIA E ANTERIOR A TUDO ISSO, REFERENTE A ESTE SEMINÁRIO ESPECÍFICO, que diz respeito a toda esquerda anticapitalista, implicando todos nós: participar desta programação significaria, a nosso ver, de alguma maneira, compactuar com a forma como foram concebidos e estão sendo realizados tanto a tônica/composição dessas mesas, como o mecanismo seletivo das suas inscrições (ao preço de R$ 60,00). Opções que, infelizmente, dão um sentido político claro e alarmante ao Seminário como um todo: uma verdadeira “gourmetização” da Rebeldia, bem concreta, vivida por muitas e muitos de nós no cotidiano. Na pele, na mente, e nos corações.
 Ora, em primeiro lugar, a nosso ver um Seminário Internacional intitulado “Cidades Rebeldes”, cujo tema remete de imediato às Revoltas Populares de Junho de 2013 e a uma publicação que a própria Boitempo coorganizou sobre esses acontecimentos (“Cidades Rebeldes – Passe Livre e as manifestações que tomaram conta das ruas do Brasil” -), num evento subsidiado e correalizado junto à organização patronal SESC – Serviço Social do Comércio, não poderia de maneira nenhuma ter este valor de inscrição (R$ 60,00) como efetiva Catraca para o público em geral. Quem conhece a realidade da classe trabalhadora brasileira – como muitos autores da Boitempo bem analisam em diversos livros, sabe que este valor é muito pesado no orçamento mensal dos trabalhadores, ainda mais pressionados pela crise atual. A nosso ver, preços mais acessíveis ou, de preferência, a entrada gratuita deveria ser um “princípio de esperança” e de “rebeldia” (de classe?) da própria organização do seminário para a plena realização dos fins anunciados pela sua convocatória.
TODAVIA, TALVEZ AINDA MAIS GRAVE DO QUE ISSO, a nosso ver, é tanto a ausência de nossos irmãos e irmãs, trutas de batalhas, do Movimento Passe Livre São Paulo na programação original – e mesmo na atualizada – do Seminário Internacional que leva o nome de sua rebeldia, ao mesmo tempo em que assistimos à simultânea presença de figuras como o Sr. Luís Inácio Lula da Silva (originalmente na Abertura do seminário, para uma palestra sobre “Das Diretas Já às Jornadas de Junho: os desafios para uma esquerda democrática” – palestra depois cancelada por ele); bem como do Sr. Fernando Haddad (que vai participar do Encerramento, junto ao David Harvey, na mesa “Da Primavera dos Povos às cidades rebeldes: para pensar a cidade moderna”). Afora a presença de algumas figurinhas carimbadas de mediadores e comunicadores totalmente integrados, e sempre a postos, à máquina petista-governista de lavagem cerebral (“progressista”, “livre” e “amorosa”) de trabalhadores e trabalhadoras…
Nós não acreditamos ser mais possível, a esta altura do campeonato, intelectuais de esquerda dignos deste nome, organizarem um seminário sugerindo que o Sr. Luís Inácio Lula da Silva tenha qualquer legitimidade para falar sobre “os desafios para uma esquerda democrática”. Logo este Sr. que, todos sabemos – ou deveríamos saber, se trata das figuras mais centralizadoras e autoritárias da chamada exquerda brasileira; que capitaneou, usou, abusou e ainda capitaliza até hoje todo um projeto coletivo de décadas e gerações de trabalhadores brasileiros [o hoje – não por acaso – agonizante Partido dos Trabalhadores (PT)], em torno de si e em favor de um projeto pessoal permanente de poder, que se renova a cada ciclo eleitoral. Uma figura cercada por fiéis correligionários que fazem todo o trabalho sujo para ele, que nunca permitiram qualquer democracia interna dentro do PT, e que nunca toleraram a ascensão de qualquer forma de questionamento/oposição a sua figura (desde a época de liderança sindical no ABC, e as muitas histórias tenebrosas que aquelas cidades escondem, até os dias atuais de Instituto Lula). Ademais, foi o próprio Lula quem disse, já em 2008, para um insuspeito Mino Carta e para quem mais quisesse ouvir, em alto e bom som, que ele “NUNCA FOI DE ESQUERDA”.
O que este sujeito, então, teria agora a dizer sobre as “Jornadas de Junho” e a noção de “rebeldia” para a verdadeira esquerda brasileira nos dias de hoje – que não sejam dicas para a melhor cooptação (ou repressão) de movimentos sociais e para a preservação/renovação da ordem do capital e seus espaços/territórios de acumulação (e espoliação, como nos ensina Harvey) atualmente no Brasil?!
 A quem interessa promover, pela enésima vez, esta confusão na cabeça das pessoas realmente de esquerda (que acompanharão o Seminário), colocando joio e trigo juntos e misturados: sugerir que o Sr. Luís Inácio Lula da Silva, e a alta-burocracia do Campo Majoritário do PT (Lula, Dirceu, Pallocci et caterva, que destruíram este projeto coletivo de 30 e tantos anos, e ainda por cima carimbaram por longo-tempo o selo da “corrupção” em toda a esquerda do país), tenham qualquer coisa a dizer (em favor) ou a contribuir para uma real renovação da esquerda brasileira?! A quem interessa esta confusão (ou este proposital “red washing” na imagem de Lula), se não única e exclusivamente aos interesses pessoais, político-eleitorais, do Sr. Lula – o eterno-candidato dessa alta-burocracia e seus asseclas?! Acompanharíamos a sua bela retórica, pela enésima vez “na história deste país”, com uma total ingenuidade ou um total cinismo? Temos cara de trouxas?! Até quando?!
O mesmo raciocínio vale – ou deveria valer – para a participação do Sr. Prefeito Fernando Haddad na mesa de Encerramento do Seminário Internacional, justamente aquela que tratará “Da Primavera dos Povos às cidades rebeldes: para pensar a cidade moderna”, e que, emblematicamente, também não conta com nenhum integrante do Movimento Passe Livre São Paulo – nem de qualquer uma das centenas de organizações autônomas de trabalhadores que nos rebelamos e saímos às ruas cotidianamente ANTES, DURANTE E DEPOIS DE JUNHO DE 2013 (até os dias atuais), não apenas para “pensar”, mas efetivamente construir “uma cidade moderna” desde baixo, horizontal e coletivamente, sem velhos nem novos guias geniais dos povos, visando uma sociabilidade realmente mais igualitária, justa, não-punitivista, diversificada, autônoma e livre.
A organização de um Seminário Internacional intitulado “Cidades Rebeldes”, que se inspira na luta popular do Passe Livre e de todos nossos movimentos que saímos às ruas “por uma vida totalmente sem catracas”, não chamar nenhum dos integrantes desses movimentos para a mesa sobre o tema e, ao contrário, chamar aquele que criminalizou, reprimiu e até sugeriu que os integrantes do MPL seriam espécies de “fundamentalistas” “intolerantes” – os comparando com os terroristas do atentado contra o jornal Charlie Hebdo, nos parece uma tomada de posição política bastante clara por parte dos organizadores do Seminário. Em uma palavra: revisionismo total de Junho (e, inclusive, de muitos dos textos/análises editadas pela própria editora, a começar pelo livro homônimo do Seminário). Sob qual interesse? A soldo ou a serviço de quem?
Sob esta lógica, valeria então também convidar o governador-genocida Sr. Geraldo Alckmin, que no fatídico dia 19 de Junho de 2013 foi quem tomou a iniciativa, depois de toda pressão popular daquelas semanas, e telefonou ao Sr. Haddad, avisando que iria revogar o aumento ANTES deste e, se o Prefeito quisesse o seguir, que fosse ao Palácio dos Bandeirantes (sic) o acompanhar (desde que no humilhante papel de coadjuvante!) para o anúncio oficial da derrota de ambos os gestores – frente à persistente “rebeldia das ruas”.
[Ainda se Haddad tivesse cedido (bem) antes à pressão da esquerda autônoma por singelos R$ 0,20 Centavos na passagem do Busão, que ali representavam uma vitória histórica, clara e necessária das ruas de esquerda (e talvez não tivesse sido criado todo este espaço/tempo/condições para a onda coxinha fascista subsequente…): só que não, Haddad quis demonstrar ser um gestor capaz de “segurar a pressão popular” “no limite da irresponsabilidade” e dos seus ótimos serviços prestados (em benefício das planilhas e dos lucros de quem?). A Direita o agradece profundamente até hoje… E pouco nos importa que o Sr. Prefeito Fernando Haddad se autodefina como um “gestor da nova esquerda” – diferente do assumidamente conservador Lula, afinal, na prática, Haddad cotidianamente beija a cruz das empreiteiras, construtoras, dos grandes empresários do transporte (cuja tarifa ele voltou a aumentar para pesados R$ 3,50 apenas um ano e meio depois de Junho: rebeldia?), do próprio padrinho Lula, e de todo o grande capital que financiou a sua eleição (a reboque do projeto de poder lulo-petista dos últimos anos). Ouviremos Haddad analisar, no Seminário, se ele será ou não rifado nas próximas eleições de 2016, mesmo sustentando-se nas Tattolândias e Andres Sanchezlândias deste neoPT, e mesmo com os já amarrados apoios “renovadores” do PMDB de Gabriel Chalita e do PDT de Luis Antônio Medeiros: a que projeto de “rebeldia” ISSO diz respeito? Porque não tem nada a ver com a nossa. Enquanto a esquerda intelectual insiste em cultivar seus autoenganos e seus gourmetizados ovos de serpente – não levando a sério sequer aquilo que ela própria escreveu, editou e publicou, eles todos (da exquerda à velha direita) sabem muito bem o que fazem…]
E por que seriam justamente eles, agora, na Abertura e no Encerramento do Seminário, o Criador e a Criatura – que, não esqueçamos, foram lá num ato de subversão incrível, não?, literalmente, beijar a mão do Sr. Paulo Maluf para a eleição de 2012 – a ditar os novos desafios e rumos da nossa histórica rebeldia?! A nossa rebeldia sentida na pele, atualizada a cada novo dia de trabalho, de transporte público e de humilhação cotidiana vivida nestas Cidades-Mercadorias frente os patrões e o estado, por quem hoje seguimos sendo monitorados, criminalizados e reprimidos pela simples rebeldia de existir pobre, preto ou periférico, desde pelo Exército de Lula e Dilma na Favela da Maré no Rio de Janeiro – e tb sempre a postos diante de qualquer manifestação popular mais radical (nossos presos de Junho e dos despejos e espoliações da #CopaDasCopas que o digam…); ou nas vilas e Cabulas cotidianas chacinadas pela Polícia Militar Baiana dos governadores-genocidas petistas, Sres. Jaques Wagner, este sionista baba-ovo de torturador, e agora o sr. Rui Costa (PT-BA); ou pela Guarda Civil Metropolitana de Haddad e seus “rapas” de todos os dias, por toda a região central da cidade de São Paulo. Esquerda?! Onde, cara pálida?! Essa “Democratização”, esse “Desenvolvimento” e essa “Pacificação” promovida por vocês… essa Exquerda e essa Paz são “uma senhora branca que nunca sequer olhou na nossa cara!”.
Definitivamente, companheiros e companheiras deste Seminário: desde quando “somos todos de esquerda”?! Desde quando “é tudo a mesma coisa”?! Até quando sustentarão essa farsa conciliatória de classes do “amplo, geral e irrestrito” campo “democrático-popular”?! O que nós temos a ver com as construtoras, empreiteiras e banqueiros que financiaram, por anos a fio e às pilhas de dinheiro, pelos Caixa 1, 2 ou 3, este projeto de poder-pelo-poder?! O que há de esquerda e de rebeldia nisto?! Quem foi que nos colocou neste balaio de gatos e ratos, cobras e porcos, nos tornando reféns da constante chantagem desta nova direita prática?! Desde quando houve/haverá “governabilidade” possível (à esquerda) com o padrão sarney-temer-renan-cunha que hegemoniza as instituições de todo o estado brasileiro há décadas – e estamos vendo muito bem a que ponto chegou na atual hiper-atuação, sob a regência de Cunha e Renan, das bancadas do Boi, da Bíblia e da Bala, sempre tratadas a pão de ló como “base aliada”, nos últimos anos, pelos “habilidosos” gestores petistas?! Verdadeiros “craques”… Em que?! Para quem?!
Qual será o próximo engodo de “esperança” e “rebeldia” “paz e amor” lulo-petista: uma “frente ampla” de exquerda forjada como “livre e independente” para esconder a desgastada “marca PT” nas próximas cédulas eleitorais?! Nossos sonhos e nossas rebeldias se restringirão, mais uma vez, ao ritual cívico de apertar algumas teclas a cada dois anos, em verdadeiras urnas funerárias de nossas ações diretas, para ato-contínuo tomar uma sucessão de tapas na cara e vacas tossindo, e nos conformar a participar todos os santos-dias de cada novo aparato-embuste criado pelo sistema petista de governabilidade biopolítica e contenção da nossa revolta (Conselhos, Encontros, Audiências, Fóruns, Seminários, Diálogos, Festivais etc etc etc)?! Como já disse os nossos companheiros Hamilton Borges e Fred Aganju, da campanha Reaja ou Será Mort@, frente ao sucesso de tantas políticas públicas de “inclusão social”, “afirmação dos direitos humanos”, “participação popular”, “mesas de diálogo”, “promoção da igualdade racial” e blá blá blá “nós preferimos o fracasso de enfrentar o Terror nas ruas”. O Terror para o qual eles, quando não protagonizam, colaboram ativamente contra as nossas Raças Perigosas e Classes Rebeldes.
De uma vez por todas: a alta burocracia, o Campo Majoritário petista e seus principais gestores – Sr. Lula e Sra. Dilma Rousseff à frente – não são de esquerda! A maioria deles sequer ex-querda é. Nunca foram, nem nunca “voltarão” a ser. Não nos confundam com eles! Simplesmente parem: não mais em nosso nome! Já basta!
Enfim, por tudo isso (e muito mais!), o nosso Movimento Independente Mães de Maio acha que seria – no mínimo – contraditório demais com a nossa caminhada autônoma, que trilhamos com muita luta, compromisso e sacrifício no dia-dia (sem receber favores nem pagar simpatia para ninguém), aceitar a cômoda e glamurosa participação neste seminário “Cidades Rebeldes” e, ao fim e ao cabo, compactuar com essa verdadeira operação político-ideológica de reescrita das Revoltas de Junho de 2013 e da história recente do país, com a colaboração e coparticipação ativa de nossos inimigos. Sentar à mesma mesa, como “aliados”, daqueles que nunca sequer olharam na nossa cara ao longo desses mais de 12 anos?! Jamais! Lembrem-se: os Crimes de Maio de 2006, que vitimaram fatalmente mais de 500 jovens, nossos filhos e filhas, irmãos e amigos – dando origem ao nosso movimento, ocorreram sob a gestão Lula no governo federal, o qual seguido por Dilma nunca sequer nos recebeu nem de forma protocolar – mesmo diante de pedidos formais feitos há anos – a não ser indiretamente, por meio de seus correligionários, para tentar nos cooptar… Por que nos receberiam, pois?! Não temos uma conta bancária que faça jus ao cerimonial do Palácio do Planalto (quantas vezes será que os Sres. Lula e Dilma Rousseff já não se reuniram com banqueiros do quilate e dos círculos íntimos dos Henriques Meirelles e Joaquins Levys que, afinal das contas, dão a tônica política-econômica de seus governos… Rebeldes?). E seguem comodamente encrustados no alto poder do país há mais de uma década (fazendo também lobbies internacionais para grandes corporações brasileiras, junto a sanguinários gestores mundo afora – Teodor Obiang da Guiné Equatorial que o diga, com dinheiro do FAT e FGTS dos trabalhadores brasileiros, via BNDES, para mais espoliações territoriais na reprodução ampliada do espaço capitalista global). Rebeldia?
Para colocar em prática estas operações de falsificação da realidade (das revoltas e das esperanças reais dos trabalhadores) eles não precisariam deste Seminário, pois já têm uma série de canais de comunicação-marketing, de certas mídias tradicionais ligadas ao que há de pior nas igrejas exploradoras da fé de nosso povo aos ditos meios “progressistas”, passando pelos Joãos Santanas contratados a peso de ouro, permanentemente à serviço de seu eterno projeto de poder (dentro e em prol da renovada ordem capitalista). De nosso lado, na “Margem Esquerda” do chão de terra que nós pisamos cotidianamente, mirando firmemente “Para Além do Capital”, não há espaço para compactuar com esses oportunistas da exquerda – que do alto de seus gabinetes e contratos com as agências de comunicação oficial do governo torciam e incentivavam que a Gaviões da Fiel “escorraçasse” das ruas os nossos companheiros de trincheiras da verdadeira Periferia Rebelde, tratados como cachorros “vira-latas” por quem desde lá – sem saber? – já fazia coro com os coxinhas fascistas antes destes saírem às ruas pedindo – na mesma toada de “escorraçar” e “ fazer faxina”, só que agora, em 2015, pela limpeza (leia-se prisão) dos petistas e pelo impeachment de Dilma Rousseff. Que rebeldia real há nesta falsa polarização histérica, doentia e fascista que marca a disputa espelhada entre a horda da fé oposicionista versus a horda da fé governista?! Não jogamos este jogo sujo.
Não ficaremos mais reféns deste tipo de exquerda, suas falsificações da história, nem cairemos mais em suas armadilhas. Não seria intelectualmente honesto de nossa parte, seja em relação aquilo que lemos (inclusive em vários livros da Boitempo – que deveriam ser levados mais a sério), seja principalmente em relação aquilo que vivenciamos na prática. David Harvey colocado lado-a-lado com um dos principais lobbistas globais da Oderbrecht, juntos no mesmo balaio de “rebeldia”?! Onde isso vai parar?! É urgente voltarmos a demarcar muito claramente limites, que não falamos essa mesma novilíngua, não “jogamos no mesmo time”, não estamos do mesmo lado da trincheira: NÃO!
Só nos faltava mais esta: seriam Lula e Haddad, agora, os “novos rebeldes” na visão da Boitempo?! Figuras para quem a verdadeira rebeldia é um espectro a assombrá-los, cotidianamente, ao menos, desde o ápice das revoltas populares de Junho de 2013…
En Mayo de 2006, la policía Paulista comete una masacre que permanece impune. A raíz de ésta, una entre muchas que siguen hasta el día de hoy, se organizan desde su dolor y dignidad las Madres de Mayo
“Cidades Rebeldes”, “Periferias Rebeldes”: no que depender de nossas forças, não se tornarão o novo “Nome da Marca”. Recusamos este espetáculo que nos sufoca e, por trás das suas “Videologias”, se alimenta do sangue de nossos mortos, aqui na periferia do “Planeta Favela”, que segue sangrando… Não em nosso nome! Nossos mortos têm voz em nossa luta, e exigimos respeito a sua memória – e à rebelde tradição dos oprimidos que nós carregamos no dia-dia conosco. Os movimentos sociais autônomos, em meio ao vertiginoso e sufocante “Novo Tempo do Mundo” e do Brasil, não permitiremos que a nossa rebelião seja gourmetizada pela exquerda que encarcerou e enterrou muitos dos nossos: sonhos, projetos e irmãos/ãs de carne e osso. E seguem enterrando.
O mínimo de rebeldia necessária, diante desta proposta política indecente, é a RECUSA pública deste convite.
Rebeldia, para nós, começa pela luta para se garantir a respiração. E pela ressuscitada fúria.
Movimento Independente Mães de Maio, Junho de 2015
PS – Fazemos questão de distinguir a postura pessoal dos companheiros-trabalhadores da Boitempo Editorial, em especial dos compas editores-adjuntos Kim Dória e Isabella Marcatti (sempre muito respeitosos conosco), das opções políticas-ideológicas e comerciais de seus patrões. Receamos que este “Seminário Internacional”, da forma como foi concebido – aparentemente sob milimétrica encomenda dos interesses político-eleitorais do Instituto Lula e cia. ltda., muito provavelmente tenha o “selo Emir Sader” de subserviência intelectual e política. Um selo-vergonha (reiterado até quando?) para uma editora que, simultaneamente, é capaz de trazer verdadeiros intelectuais de esquerda como David Harvey ou István Mészaros, e editar coleções como a “Tinta Vermelha” ou a “Estado de Sítio”, coordenada pelo compa-de-várias-horas, o professor e intelectual-rebelde Paulo Arantes. Menos submissão editorial ao “estado de sítio” atual no Brasil (copromovido pelo lulo-petismo e seus pau-mandados), e cada vez mais tinta vermelha de rebeldia real cairá bem para uma editora que pretende se manter como referência para as novas gerações da esquerda autônoma e anticapitalista no Brasil. “O dia é um pasto azul que o gado reconquista(rá)”.
 

domingo, 7 de junho de 2015

Assalto à Gameleira

Nos debates sobre temas considerados urgentes para o país, muitos pontos podem ser levantados, mas quase todos nascem e morrem a partir de duas perspectivas básicas. Uma vê o mundo como algo distante e alheio da porta de casa para fora. Outro observa a própria casa como parte integrante do mundo. Este se preocupa com o que acontece a quilômetros de sua porta porque não ignora um pressuposto: o vento soprado à distância ganha força ao chegar em nossa janela. A definição, com outras palavras, é do filósofo Gilles Deleuze e consta de um pequeno vídeo sobre o que é ser esquerda hoje (prometo usar outros termos para evitar restrições gástricas e cognitivas).
No ranking das preocupações do país, designou-se que a impunidade sobre jovens infratores, eleitos os responsáveis pelo clima de insegurança dentro e fora de nossas casas, consta da lista das causas urgentes a serem resolvidas. A abordagem envolve dois pressupostos que se anulam. Uma diz: “quero uma solução, mas este não é um problema meu”. A outra responde: “quero (também) uma solução, mas este é um problema nosso”.
Ninguém, em sã consciência, diria ser natural ver um adolescente apontar uma arma na cabeça de quem quer que seja. Ou participar, desde muito cedo, da violenta cadeia da produção e distribuição de drogas. Há, porém, pontos e pontos a serem levantados. O índice de adolescentes armados é realmente alarmante? São eles os responsáveis pela insegurança de um país composto por jovens, adultos e idosos? Existe mesmo impunidade? Cadeia resolve? Medidas restritivas resolvem? Quando passamos a ser responsáveis pelos nossos atos?
Nesses debates, é comum ouvir sentenças inabaladas e nem sempre aberta aos fatos ou contrapontos – e quem vê a casa como uma entidade isolada do mundo costuma escorregar na própria ânsia.
Listo abaixo algumas das falas mais comuns ouvidas após escrever sobre a questão na semana retrasada:
“É só não fazer merda”.
“É a certeza da impunidade que leva o adolescente a praticar o crime”.
“O ECA protege bandido”.
Confortável em uma suposta distância higiênica de qualquer desvio, o sujeito que diz trabalhar, estudar e pagar impostos costuma usar sua própria zona de segurança para lavar as mãos.
O discurso triunfalista tenta fechar numa caixa escura um canhão luminoso do nosso fracasso. Sim: nosso. Esse fracasso começa de muitas formas, mas termina quase sempre num arremedo: “não me importo com o mundo que eu patrocino e contribuo para a (in)segurança das crianças, mas quero solução urgente caso essas crianças precocemente amadurecidas ameacem minha segurança”.
Olhada de casa para dentro, a violência pode ser só uma questão de escolha: apertar o gatilho ou não. Os caminhos que levam até a arma é que são ignorados. Vejamos o caso do “Assalto à Gameleira”, documentário de conclusão de curso em Jornalismo da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul sobre o assalto a uma propriedade rural em Campo Grande, capital do estado. No filme, dirigido por André Patroni, os estudantes tiveram a coragem de fazer o básico: ouvir os personagens. Assaltado, assaltantes, amigos, familiares, carcereiros, polícia, pedagogos, especialistas, professores, direção escolar, apresentadores de TV…todos são chamados para participar do filme. Todos, direta ou indiretamente, estão envolvidos em uma tragédia maior.
O resultado não é, como poderiam supor os alarmistas, um monumento ao vitimismo ou à mão indulgente sobre a cabeça de criminosos. No documentário, o crime é tratado como crime. O mérito do documentário é mostrar o mundo, o de casa e o exterior, como um mesmo mundo: um mundo de veredas que se perdem e se bifurcam.
A conclusão causa um desconforto considerável. Entre o mundo ideal, digno e seguro, e uma ação considerada execrável (um assalto, que de fato é condenável), existem uma série de pequenas tragédias de urgências proteladas: alcoolismo, violência doméstica, machismo, omissão, leis não aplicadas, despreparo do poder público, das autoridades, das escolas.
Em meio a tanta opinião formada por quem jamais leu o Estatuto da Criança e do Adolescente, os responsáveis pelo filme fizeram um trabalho aparentemente simples: mostraram que o documento, que completava 20 anos em 2010, ano da produção do documentário, era simplesmente ignorado não apenas pelos criminosos, ignorantes sobre seus direitos ou deveres, mas também pela sua família, seus amigos, o sistema carcerário e pela direção da escola onde estudavam os condenados.
A condenação, mostra o filme, começara muito antes de o carcereiro fechar as grades da unidade de ressocialização – uma unidade tomada pelo tédio, pelo descaso e pelas baratas.
Um dos garotos detidos, por exemplo, ganharia R$ 1.500 no assalto, o dobro do que ganhava como ajudante na fazenda. Dizia não ter dinheiro para comprar fraldas da filha recém-nascida e, por isso, topou a empreitada. Não tinha ideia de que poderia obter o benefício com a ajuda da prefeitura – no mundo de livre circulação de conhecimento, o acesso a informações é o primeiro selo do privilégio. Ali os direitos sociais, embora restritos, chegaram antes dos direitos civis. A consequência é um fosso considerável entre uns e outros.
Da mesma forma, quem defende o armamento como direito do cidadão poderia ver no filme uma consequência da própria campanha. Um dos adolescentes, que perdera a perna num acidente de trem (problema dele, certo?) se cansa de ser humilhado em subempregos e começa a fazer pequenos serviços para o tráfico. Descobre, então, o que qualquer adolescente da sua idade aprendeu nas escolas, propagandas, lições de moral: a gente é o que a gente veste, compra, ostenta. Morto em conflito, ele legou aos seus irmãos, que nada tinham com a história, dívidas e ameaças. Onde o Estado não atua, o cidadão se arma: com medo dos traficantes e sem ter pra onde correr, os irmãos mais novos começam a se armar. É claro que a história do abandono não poderia acabar bem.
Alguns, atrás do muro de casa, poderiam dizer: bastava ter estudado para escapar da vida, certo? A USP, afinal, tem portas abertas a todos, garante o menino rico que só queria ter aula de microeconomia e não queria debater as ampliações de acesso à universidade. Pois o documentário mostra que, naquele bairro esquecido, a direção escolar e os professores não tinham a menor ideia do seu papel no mundo. A diretora, entre o deboche e o conforto, fala sem qualquer constrangimento que JAMAIS havia lido o Estatuto da Criança e do Adolescente. Naquele bairro, um pesquisador entrevistado no documentário mostra que ninguém ali jamais ouvira falar dos direitos, nem em casa nem em sala de aula, mas quase todos conheciam alguém que acabou preso.
“Aqui funciona o regimento interno”, diz a diretora a certa altura do filme. Nada mais simbólico: de regimento interno a regimento interno, perdemos o sentido das leis universais – as mesmas que nos garantiriam, entre humanos, viver em segurança. A escola, quando ignora esses princípios, torna-se um depositário de crianças. À medida que não propõe luz ou caminhos, torna-se também uma forma de aprisionamento.
O ECA protege criminosos, diz o senso comum de quem, trancafiado em casa, pede soluções urgentes para um problema que não reconhece como seu. Se assistisse ao documentário, este saberia que os rapazes detidos antes mesmo de nascer não têm ideia sequer do que está escrito no documento.
Vítima do assalto, o fazendeiro chora ao relembrar o episódio traumático, mas o revide sobrevoa o próprio muro: até quando vamos suportar escolas que fingem ensinar e governos que fingem proteger?
As perguntas podem ser ampliadas. Onde estava o Estado quando a mãe de um dos criminosos procurava ajuda para fugir das surras do dono da casa? Onde estavam os defensores da pena de morte para estupradores quando mandavam uma mãe violentada se vestir decentemente e obedecer ao marido? Onde estavam os defensores dos “humanos direitos” quando os meninos que sonhavam em fazer curso de informática para tirar a mãe da verdadeira prisão domiciliar passaram também a ser violentados? Ou quando a mãe morrera de tanto apanhar em silêncio? Onde estavam os soldados da guerra às drogas que não se sensibilizaram com a cachaça vendida no bar que alimentava as fúrias do patriarca da porta de casa para dentro? Onde estavam os meritocratas para explicam como é possível estudar e planejar o futuro com botinas e armas apontadas para a cabeça? Que tipo de futuro construímos em escolas que obedecem o regimento interno e desconhece qualquer noção de direitos e cidadania?
Em outro depoimento, um juiz da cidade se queixa da falta de estrutura do conselho tutelar da cidade (uma profissional para dezenas de milhares de habitantes) e pergunta: o que dá mais votos na eleição, um trabalho invisível de orientação e proteção à infância ou imagens de prisão e apreensão?
As perguntas sobrevoam nossas casas. Podemos tirar delas uma conclusão quase óbvia. Por exemplo, que o crime e os riscos de ser pego desgraçadamente ainda compensam quando a vida, dentro ou fora das grades, é rebaixada a quase nada. A outra opção é erguer muros para evitar que as perguntas atinjam a nossa mais arraigada convicção: a de que nós (escola, família, formadores de opinião, Estado) não temos culpa nessa tragédia chamada Brasil.



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