domingo, 6 de janeiro de 2013

A quem interessa confundir a construção da cidadania, em especial a emancipação das mulheres, com a ideia de consumo?

A badalada entrevista de Walquíria Rêgo para a revista Marie Claire ostenta o processo de emancipação das mulheres garantido pelo programa Bolsa Família.  Como as reflexões da autora estão mais próximas de uma propaganda governamental, ao menos é isso que consta na matéria publicada pela revista das organizações Globo, considero importante apresentar um contraponto. Cito, portanto, o trecho de um artigo de Silvana Mariano e Cássia Carloto que problematizam o conteúdo central dos argumentos de Rêgo. "A principal questão que norteia nossa reflexão neste trabalho, em particular, é compreender o modo como o PBF, em uma estratégia de combate à pobreza, desenvolve mecanismos que reforçam a tradicional associação da mulher com a maternidade e as tarefas pertencentes à clássica esfera reprodutiva." 
Encerro as minhas considerações com uma pergunta

A quem interessa confundir a construção da cidadania, em especial a emancipação das mulheres, com a ideia de consumo?

O Bolsa Família e a revolução feminista no sertão

A antropóloga Walquiria Domingues Leão Rêgo testemunhou, nos últimos cinco anos, a uma mudança de comportamento nas áreas mais pobres e, talvez, machistas do Brasil. O dinheiro do Bolsa Família trouxe poder de escolha às mulheres. Elas agora decidem desde a lista do supermercado até o pedido de divórcio

 O dinheiro do Bolsa-Família trouxe poder de escolha às mulheres do sertão (Foto: Editora Globo)

Uma revolução está em curso. Silencioso e lento - 52 anos depois da criação da pílula anticoncepcional - o feminismo começa a tomar forma nos rincões mais pobres e, possivelmente, mais machistas do Brasil. O interior do Piauí, o litoral de Alagoas, o Vale do Jequitinhonha, em Minas, o interior do Maranhão e a periferia de São Luís são o cenário desse movimento. Quem o descreve é a antropóloga Walquiria Domingues Leão Rêgo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nos últimos cinco anos, Walquiria acompanhou, ano a ano, as mudanças na vida de mais de cem mulheres, todas beneficiárias do Bolsa Família. Foi às áreas mais isoladas, contando apenas com os próprios recursos, para fazer um exercício raro: ouvir da boca dessas mulheres como a vida delas havia (ou não) mudado depois da criação do programa. Adiantamos parte das conclusões de Walquiria. A pesquisa completa será contada em um livro, a ser lançado ainda este ano.
MULHERES SEM DIREITOS
As áreas visitadas por Walquiria são aquelas onde, às vezes, as famílias não conseguem obter renda alguma ao longo de um mês inteiro. Acabam por viver de trocas. O mercado de trabalho é exíguo para os homens. O que esperar, então, de vagas para mulheres. Há pouco acesso à educação e saúde. Filhos costumam ser muitos. A estrutura é patriarcal e religiosa. A mulher está sempre sob o jugo do pai, do marido ou do padre/pastor. “Muitas dessas mulheres passaram pela experiência humilhante de ser obrigada a, literalmente, ‘caçar a comida’”, afirma Walquiria. “É gente que vive aos beliscões, sem direito a ter direitos”. Walquiria queria saber se, para essas pessoas, o Bolsa Família havia se transformado numa bengala assistencialista ou resgatara algum senso de cidadania.
BATOM E DANONE
“Há mais liberdade no dinheiro”, resume Edineide, uma das entrevistadas de Walquiria, residente em Pasmadinho, no Vale do Jequitinhonha. As mulheres são mais de 90% das titulares do Bolsa Família: são elas que, mês a mês, sacam o dinheiro na boca do caixa. Edineide traduz o significado dessa opção do governo por dar o cartão do benefício para a mulher: “Quando o marido vai comprar, ele compra o que ele quer. E se eu for, eu compro o que eu quero.” Elas passaram a comprar Danone para as crianças. E, a ter direito à vaidade. Walquiria testemunhou mulheres comprarem batons para si mesmas pela primeira vez na vida. Finalmente, tiveram o poder de escolha. E isso muda muitas coisas.
O DINHEIRO LEVA AO DIVÓRCIO E À DIMINUIÇÃO DO NÚMERO DE FILHOS?
“Boa parte delas têm uma renda fixa pela primeira vez. E várias passaram a ter mais dinheiro do que os maridos”, diz Walquiria. Mais do que escolher entre comprar macarrão ou arroz, o Bolsa-Família permitiu a elas decidir também se querem ou não continuar com o marido. Nessas regiões, ainda é raro que a mulher tome a iniciativa da separação. Mas isso começa a acontecer, como relata Walquiria: “Na primeira entrevista feita, em abril de 2006, com Quitéria Ferreira da Silva, de 34 anos, casada e mãe de três filhos pequenos,em Inhapi, perguntei-lhe sobre as questões dos maus tratos. Ela chorou e me disse que não queria falar sobre isso. No ano seguinte, quando retornei, encontrei-a separada do marido, ostentando uma aparência muito mais tranqüila.”
A despeito do assédio dos maridos, nenhuma das mulheres ouvidas por Walquiria admitiu ceder aos apelos deles e dar na mão dos homens o dinheiro do Bolsa. “Este dinheiro é meu, o Lula deu pra mim (sic) cuidar dos meus filhos e netos. Pra que eu vou dar pra marido agora? Dou não!”, disse Maria das Mercês Pinheiro Dias, de 60 anos, mãe de seis filhos, moradora de São Luís, em entrevista em 2009.
Walquiria relata ainda que aumentou o número de mulheres que procuram por métodos anticoncepcionais. Elas passaram a se sentir mais à vontade para tomar decisões sobre o próprio corpo, sobre a sua vida. É claro que as mudanças ainda são tênues. Ninguém que visite essas áreas vai encontrar mulheres queimando sutiãs e citando Betty Friedan. Mas elas estão começando a romper com uma dinâmica perversa, descrita pela primeira vez em 1911, pelo filósofo inglês John Stuart Mill. De acordo com Mill, as mulheres são treinadas desde crianças não apenas para servir aos homens, maridos e pais, mas para desejar servi-los. Aparentemente, as mulheres mais pobres do Brasil estão descobrindo que podem desejar mais do que isso.

Fonte: Marie Claire


Gênero e combate à pobreza: programa bolsa família

RESUMO
A política de assistência social brasileira orienta-se pela perspectiva de ações de combate à pobreza, com prioridade aos programas de transferência condicionada de renda. Esses são programas que priorizam o repasse de renda às mulheres e envolvem-nas em uma rede de obrigações e condicionalidades, a exemplo do Programa Bolsa Família. A prática encerrada no Programa Bolsa Família coloca em evidência algumas contradições entre as ações estatais e as demandas feministas, notadamente no que diz respeito à problematização acerca da maternidade. Esse é, então, um ponto central para o diálogo entre o feminismo e as políticas sociais estatais de combate. 


Introdução
Os programas brasileiros de transferência condicionada de renda veem as mulheres como foco prioritário, e até objeto, de suas intervenções com vistas ao combate à pobreza. A mulher, a partir de seus papéis na esfera doméstica ou de reprodução, tem sido, portanto, a interlocutora principal dessas ações, tanto como titular do benefício quanto no cumprimento das condicionalidades impostas. O Programa Bolsa Família (PBF) é um exemplo paradigmático dessa política. Diante desse contexto, estudiosas feministas têm insistido que a categoria "gênero" não pode ser prescindida das análises sociológicas acerca das ações estatais, que têm por foco a família. Essa categoria de análise contribui para a compreensão da instrumentalização dos papéis femininos nessas políticas.
A implantação do PBF, de acordo com suas regras de seletividade e exigências de condicionalidades, bem como com as dimensões assumidas ao incluir mais de 11 milhões de famílias, expressa, em certa medida, a extensão da pobreza no Brasil. Do mesmo modo, a composição do público beneficiário ilustra o quadro de desigualdades persistente na história da sociedade brasileira. De acordo com dados do Retrato das desigualdades de gênero e raça, podemos, mais uma vez, constatar que a pobreza brasileira tem sexo e cor.1
A presença mais notável de mulheres negras entre as pessoas pobres é reflexo de um processo histórico de (re)produção de desigualdades sociais. Essas desigualdades têm como eixos estruturantes os marcadores sociais como gênero e raça-etnia, os quais orientam a construção da cidadania e a efetivação de direitos no Ocidente. Portanto, sexo e cor são também definidores das desigualdades sociais.
Esse processo interfere diretamente na relação entre as mulheres, brancas e negras, e o Estado. Um ponto de ilustração a esse respeito é o modo como os grupos de mulheres estão sujeitos a obrigações impostas pelo Estado e geram efeitos para o tempo e o trabalho femininos.2 Tais obrigações se expressam no cumprimento de atividades e responsabilidades estipuladas pelas políticas sociais, com destaque para as políticas de desenvolvimento e, mais recentemente, para as de combate à pobreza. O Estado cobra das mulheres pobres a execução de tarefas relacionadas ao cuidado de crianças, adolescentes, idosos, doentes e pessoas com deficiência. Igualmente, convoca as mulheres para a participação em atividades extras, como, por exemplo, grupos de geração de trabalho e renda (com duvidosa potencialidade para a melhoria do bem-estar) e grupos de ações educativas, sendo estas, via de regra, relacionadas às tarefas reprodutivas. Ao fazê-lo, o Estado está gerando, para as mulheres pobres, responsabilidades ou sobrecarga de obrigações relacionadas à reprodução social. Consideramos esse tipo de ocupação do trabalho e do tempo das mulheres um dos fatores vinculados à desigualdade, entre homens e mulheres e entre estratos sociais, pois disponibiliza menos as mulheres para o trabalho remunerado. Esse fator deve ser colocado em evidência quando nos dedicamos a investigar o modo de inclusão das mulheres nas ações estatais, a exemplo do PBF, uma vez que esse programa opera instituindo condicionalidades nas áreas de educação, saúde e atividades complementares, como os grupos socioeducativos.
A principal questão que norteia nossa reflexão neste trabalho, em particular, é compreender o modo como o PBF, em uma estratégia de combate à pobreza, desenvolve mecanismos que reforçam a tradicional associação da mulher com a maternidade e as tarefas pertencentes à clássica esfera reprodutiva.
O PBF, dada sua extensão em número de famílias beneficiárias no país e sua capacidade de exercer influências nas relações entre os indivíduos envolvidos nas ações estatais, torna-se um importante objeto de análise de pesquisas preocupadas em refletir o modo como o Estado incorpora padrões de relações de gênero e concepções de família e de mulher em seus programas que se dirigem ao âmbito das relações de cuidado.
A reflexão aqui desenvolvida se inspira em pesquisa qualitativa realizada em Londrina, PR, a fim de trazer questões sobre as relações entre gênero e políticas de combate à pobreza de forma geral. Londrina é um município com avançado processo de implantação do novo sistema de gestão da Política Nacional de Assistência Social, o que inclui ações de acompanhamento às famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família.

Mulher e papéis de gênero no Programa Bolsa Família
A política de assistência social brasileira orienta-se pela perspectiva das políticas de combate à pobreza. Desde a década de 1990 têm recebido destaque os programas focalizados de transferência de renda. Os principais deles são o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o PBF, sendo o primeiro sem e o segundo com condicionalidades. As transferências condicionadas de renda priorizam o repasse de renda às mulheres e envolvem-nas em uma rede de obrigações com as ações estatais. Desse modo, referimonos a políticas e programas com claro marcador de gênero e, a partir de perspectivas feministas, os interpelamos acerca da condição de cidadania das mulheres usuárias.
Ao cruzarmos as demandas por cidadania com a problemática da pobreza e, de modo mais amplo, com a persistente situação de desigualdade brasileira, devemos tomar sexo e gênero, assim como cor e raça, como dimensões indispensáveis de análise acerca das políticas sociais. Gênero e raça devem, portanto, ser mobilizados como categorias de análise. Nesse sentido, o Retrato das desigualdades de gênero e raça traz relevante contribuição ao apresentar dados macrossociais desagregados por sexo e cor e raça que nos permitem captar as interconexões desses dois marcadores sociais na (re)produção das desigualdades. Os dados sobre renda explicitam, de modo mais cabal, o quadro de discriminação contra mulheres e negros e, ainda, a "dupla discriminação sofrida pelas mulheres negras".3
Esses dados são exemplos que demonstram parte da problemática relacionada à cidadania das mulheres, em especial das mulheres negras. Devemos, ainda, tomar em consideração que a divisão sexual do trabalho, as responsabilidades com as tarefas de reprodução, sobretudo quanto às atribuições domésticas, e a quase interdição dos espaços de poder às mulheres, notadamente as negras, são fatores que contribuem para obstar a conquista das mulheres no campo da cidadania.4
Conforme observação de Lena Lavinas e Marcelo Nicoll,5ainda que as condições de pobreza não sejam determinadas pela questão de gênero, os dados nos revelam que esse é um marcador que influencia as situações das famílias pobres quando analisamos, por exemplo, o fenômeno da chefia familiar feminina entre famílias pobres, grupo no qual esse fenômeno é mais expressivo se comparado às famílias com maior renda. Nesse caso, articula-se uma vulnerabilidade adicional.6
No Brasil, 22,3% das famílias eram chefiadas por mulheres em 1993. No ano de 2007 essa proporção aumentou para 33%.7 Tratando-se de Londrina e comparando-se as famílias chefiadas por mulheres, sem o critério de renda, observa-se que, em 1991, as mulheres respondiam por 20,42% das famílias e, em 2000, esse número saltou para 27,53%, o que representa um crescimento de 34,81%.8
Se nos perguntarmos em qual estrato de renda a chefia familiar feminina está mais presente, perceberemos diferenciais significativos entre as famílias com rendimento familiar por pessoa de até ½ salário mínimo e as famílias com renda superior a 2 salários mínimos. No primeiro estrato social, as famílias chefiadas por mulheres cresceram de 25,57% para 37,7%, o que representa um aumento de 47,43%. No segundo estrato social, as famílias chefiadas por mulheres cresceram de 17,54% para 25,54%, o que representa um aumento de 45,61%. O crescimento entre os dois estratos de renda é quase equivalente, com os números um pouco mais elevados entre as famílias pobres.
Comparando-se as famílias desses dois estratos de renda, percebe-se que a chefia familiar feminina concentra-se justamente entre os grupos sociais mais vulneráveis e ainda lhes acrescenta um grau a mais de vulnerabilidade por serem, muitas vezes, famílias monoparentais. é coerente com esses dados a suposição de que no universo de famílias pobres chefiadas por mulheres exista uma ocorrência maior entre aquelas chefiadas por mulheres negras, pois existem mais famílias negras em situação de pobreza e miséria. A esse respeito serve de comparativo o dado segundo o qual 11,7% dos domicílios urbanos em favelas são chefiados por mulheres brancas, enquanto 26% deles são chefiados por mulheres negras.9 Esse fenômeno revela a importância da incorporação da perspectiva de gênero, bem como do quesito cor e raça, nos programas de enfrentamento à pobreza e de desenvolvimento social.
Ao ser incluída no PBF, a mulher é tomada como representante do grupo familiar, vale dizer, o grupo familiar é materializado simbolicamente pela presença da mulher. Esta, por sua vez, é percebida tão somente por meio de seus 'papéis femininos', que vinculam, sobretudo, o ser mulher ao ser mãe, com uma identidade centrada na figura de cuidadora, especialmente das crianças e dos adolescentes, dadas as preocupações do PBF com esses grupos de idade. O papel social de cuidadora pode até, em algumas situações, ser desempenhado por outra mulher, como, por exemplo, a avó ou tia da criança ou do adolescente. Contudo, seguirá sendo um 'papel feminino'. Logo, o cuidado preserva, no âmbito do PBF, seu caráter vinculado aos papéis de gênero. Assim, tanto a maternidade (relacionada à procriação e/ou ao papel social de mãe) quanto a maternagem (o cuidado da criança e do adolescente desempenhado por outra mulher, geralmente com vínculo de parentesco, porém sem se designar como sua mãe) são funções focalizadas pelo PBF.
De acordo com observações e entrevistas realizadas no estudo de caso, em uma família beneficiária do PBF a mulher-mãe ou aquela que eventualmente a substitui na função de maternagem tem como responsabilidade, entre outras: a) a realização do Cadastro Único para inclusão da família no programa; b) a atualização do referido cadastro sempre que ocorre alguma modificação na situação familiar (por exemplo, mudança de endereço, alteração no número de pessoas no domicílio, oscilação nos rendimentos); c) o recebimento do recurso repassado pelo programa; d) a aplicação do recurso de modo a beneficiar coletivamente o arranjo familiar; e) o controle sobre crianças e adolescentes, tendo em vista o cumprimento das condicionalidades do programa; e f) a participação em reuniões e demais atividades programadas pela equipe de profissionais responsáveis pela execução e pelo acompanhamento do programa.
Ao analisar o Programa Bolsa Escola, antecessor do PBF, Carin Klein10 observou que

Ao pagar um valor determinado, definido como salário, pretende-se que a mãe sinta "[...] a dignidade de seu trabalho e a importância de investir na construção de um futuro melhor para os seus filhos". Como importantes argumentos apresentados na cartilha 100 perguntas e respostas que você precisa saber sobre o Bolsa-Escola, encontramos que é através do Programa que se investe também na "valorização da mulher" ao torná-la a "provedora do núcleo familiar", contribuindo, assim, para que ela assuma um papel ativo na vida da família e no "controle da educação" de seus/suas filhos/as. Buarque considera que o benefício da Bolsa-Escola, pago à mãe para que ela cuide da educação de seu/sua filho/a, representa um "Emprego Social", pois garante estabilidade econômica e social para toda a família.
Carin Klein11 chama atenção na atuação desses programas que atuam para converter em termos equivalentes categorias como "mulher" e "mãe". A estratégia de inclusão e de interpelação das mulheres supõe a seguinte operação ideológica: mulher = mãe ou família = mãe. Essa estratégia relaciona-se ao processo de revalorização da família. Diante dos novos desenhos das políticas sociais voltadas para o combate à pobreza e dirigidas às famílias, uma antiga questão feminista deve ser retomada: qual é o lugar das mulheres na família e na relação com o Estado? Nesse aspecto, as contribuições feministas atualizam o debate sobre os riscos da cristalização dos papéis sociais de gênero que aprisionam as mulheres nas tarefas relacionadas ao cuidado, à maternagem e, de modo mais geral, à reprodução social.
As atividades reprodutivas das mulheres pobres aparecem como recurso aditivo dos programas de combate à pobreza, de modo a tornar mais eficientes os impactos produzidos pela transferência condicionada de renda. As contrapartidas do PBF, relacionadas à saúde e à educação,12 exigidas notadamente das mulheres, facilitam a ação da política na tarefa de mobilizar as mulheres para o cumprimento das obrigações, as quais são primordialmente consideradas 'femininas'.
Ocorre no PBF uma estratégia semelhante à encontrada em ações estatais junto às organizações populares de mulheres, pelo menos desde a década de 1980. Nessas ações são fomentadas as demandas que focalizam as necessidades das mulheres, como é o caso dos tradicionais projetos de geração de renda com trabalhos manuais.13 Essas demandas correspondem às necessidades práticas, visando minimizar as dificuldades das mulheres dentro do padrão das relações de gênero, sem atacar diretamente a questão da subordinação feminina e sem alterar, portanto, o padrão das relações sociais de gênero.14 As necessidades das mulheres, nesses casos, são interpretadas em relação à situação de pobreza, sem levar em consideração a situação de subordinação feminina.
No caso de ações como o PBF, as preocupações quanto à pobreza são dirigidas à família. O próprio direito ao recurso transferido é tipificado em termos de benefício à família, e não a indivíduos. Como consequência, as demandas feministas por atenção prioritária à situação das mulheres vão se transformando em familismos, que, no processo de tradução político-cultural, substituíram a demanda por empoderamento das mulheres por demandas que visam ao fortalecimento das famílias.15 A defesa da família como foco de preocupação é uma característica constitutiva de políticas de combate à pobreza como o PBF. Na medida em que a defesa da família é operacionalizada com foco nas funções femininas, logo essas políticas familistas reforçam a associação da mulher à maternidade.
O que nos interessa destacar para os objetivos da análise aqui proposta é que, mesmo com revisões teóricas a respeito da subordinação feminina, a maternidade segue sendo um ponto de debate e de preocupação entre as feministas, especialmente nas circunstâncias atuais de políticas familistas.
A família é, entre outros aspectos, o lugar social e simbólico16 em que a diferença, especialmente a diferença sexual, é assumida como base e, ao mesmo tempo, construída como tal. Chiara Saraceno comenta que não se trata apenas da necessidade fisiológica da reprodução e muito menos de legitimar a sexualidade, na família o reconhecimento de que a humanidade tem dois sexos torna-se princípio organizativo social global e a estrutura que organiza as relações sociais e os destinos individuais. A autora comenta que

Lugar em que os dois sexos se encontram e convivem, a família é também o espaço histórico e simbólico no qual e a partir do qual se desenvolve a divisão do trabalho, dos espaços, das competências, dos valores, dos destinos pessoais de homens e mulheres, ainda que isso assuma formas diversas nas várias sociedades. é, antes de mais nada, em nível da família que o fato de se pertencer a um determinado sexo se transforma em destino pessoal, implícita ou explicitamente regulamentado e que se situa numa hierarquia de valores, poder, responsabilidade.17
A gerência do recurso para beneficiar a família, principalmente as crianças, tem sido citada por diferentes autores e gestores dos programas de combate à pobreza, nos diferentes escalões, desde o âmbito federal até o municipal, e é nesse sentido que tem recaído sobre a mulher a preferência pela titularidade do benefício. As mulheres, na sua grande maioria, realmente utilizam o benefício para melhoria das condições de vida da família, em particular das crianças, nos quesitos alimentação, vestuário, compra de material escolar, mobiliário para a casa e material de construção para melhoria das condições físicas da casa.
A família moderna, como família dos sentimentos e da educação,18 nasce em torno das figuras da mãe e da criança, não só porque o espaço que as circunscreve é, cada vez mais, exclusivamente o doméstico-familiar, mas "porque se trata exatamente de duas figuras interdependentes. é a mulher identificada como mãe, não só no sentido biológico, mas também em termos afetivos e educativos, que exprime antes de tudo esta nova atenção e responsabilidade familiar para com as crianças".
Chiara Saraceno19 observa que o programa educativo e moral que está no centro da família moderna diz respeito à mãe como educadora e como sujeito a educar na própria "autêntica e natural vocação".
Quanto à utilização dos recursos para uso em benefício exclusivo dos filhos, a autora afirma, tendo por base a realidade europeia, que neste caso não difere da brasileira, que mais frequentemente a mulher-mãe renuncia "naturalmente a consumos individuais a favor dos consumos dos outros membros da família, o marido ou os filhos". E é sempre ela que põe todo o dinheiro no caixa comum, no caso de trabalhar, enquanto o marido e, eventualmente, os filhos descontam uma parte para si.20 A autora afirma, com base em uma pesquisa inglesa feita por Pahl, o quanto pode ser difícil, para uma mulher, distinguir entre despesas familiares e despesas para si, mesmo quando o dinheiro gasto é ganho por ela. O uso de recursos por parte da mulher constitui-se em um bom indicador, embora não único, das dinâmicas de poder e controle dentro da família.
Os discursos sobre feminilidade e maternidade apropriados pelo PBF com o intuito de potencializar o desempenho de suas ações no combate à pobreza reforçam o lugar social tradicionalmente destinado às mulheres: a casa, a família, o cuidado, o privado, a reprodução. é preciso que o programa se questione sobre o peso de cada uma dessas categorias para a subordinação e a autonomia das mulheres.

Considerações finais
A pesquisa qualitativa do estudo de caso em Londrina e as reflexões suscitadas nos possibilitaram apreender como uma política de combate à pobreza pode atuar para reforçar lugares sociais marcados pelos papéis tradicionais de gênero e, ao fazê-lo, encontra sérias dificuldades para se viabilizar como um programa de redução das desigualdades. A experiência coloca em evidência obstáculos que são gerados pelo uso acrítico de tradições sociais e culturais, que, na realidade, atuam de modo a favorecer a (re)produção das desigualdades. Os papéis de gênero, ao mesmo tempo binários e complementares, simbolizam essas tradições incorporadas pelo PBF. Consideramos que o PBF teria mais contribuições a oferecer na luta pela redução das desigualdades se viesse a incorporar concepções mais críticas acerca dos papéis de gênero.
Perante a política de assistência social, a família é identificada pela figura da mulher, e não pela do homem. E a mulher, por sua vez, é considerada com base nas funções maternas, o que fixa e essencializa o sujeito mulher, vinculando-o à maternidade. Consideramos, à luz de influências feministas a partir de autoras como, por exemplo, Joan Scott,21 Judith Butler,22 Chantal Mouffe23 e Nancy Fraser,24 que os processos de fixação e 'essencialização' de identidades, de homens e mulheres, constituem-se em sérios obstáculos para uma sociedade democrática, a qual exige a construção de sujeitos plurais e identidades contingentes. Consideramos, ainda, que a fixação de papéis sexuais, a exemplo do aprisionamento das mulheres às tarefas reprodutivas, contribui para o reforço da lógica binária de classificação e para a (re)produção da subordinação feminina.25
O modo como o Programa Bolsa Família atua em Londrina cria mecanismos que minimizam a responsabilidade dos homens e produzem a responsabilização das mulheres com o cuidado de crianças e adolescentes. Ao fazê-lo, contribui para a cristalização dos papéis de gênero. 


Silvana Aparecida MarianoI; Cássia Maria CarlotoII
IUniversidade Federal de Uberlândia
IIUniversidade Estadual de Londrina


Referências bibliográficas
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1 Luana PINHEIRO et al., 2008.
2 Henrietta MOORE, 1996.
3 PINHEIRO et al., 2008, p. 33.
4 Maria Lygia Quartim de MORAES, 2003.
5 Lena LAVINAS e Marcelo NICOLL, 2006.
6 Adotamos a referência de Mary Garcia CASTRO (2002), que compreende a vulnerabilidade social como o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais que provêm do Estado, do mercado e da sociedade. Esse resultado se traduz em debilidades ou desvantagens para o desempenho e a mobilidade social dos atores. Esse enfoque faz referência a três elementos de conformação de situações de vulnerabilidade de indivíduos, famílias ou comunidades: recursos materiais ou simbólicos, também chamados de ativos (Carlos Henrique FILGUEIRA, 2001); estruturas de oportunidades dadas pelo mercado, pelo Estado e pela sociedade; e estratégias de uso dos ativos.
7 PINHEIRO et al., 2008.
8 IBGE, 2000.
9 PINHEIRO et al., 2008.
10 Carin KLEIN, 2005, p. 37.
11 KLEIN, 2005.
12 De acordo com orientações do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MS), "ao entrar no Programa, a família se compromete a cumprir as condicionalidades do Bolsa Família nas áreas de saúde e educação, que são: manter as crianças e adolescentes em idade escolar freqüentando a escola; e cumprir os cuidados básicos em saúde, que é seguir o calendário de vacinação para as crianças entre 0 e 6 anos, e a agenda pré e pós-natal para as gestantes e mães em amamentação" (2009, grifo nosso).
13 Silvana Aparecida MARIANO, 2001 e 2008.
14 Leda Maria Vieira MACHADO, 1999.
15 Sonia ALVAREZ, 2000.
16 Chiara SARACENO, 1997.
17 SARACENO, 1997, p. 14.
18 SARACENO, 1997, p. 194.
19 SARACENO, 1997.
20 SARACENO, 1997, p. 195.
21 Joan SCOTT, 2002.
22 Judith BUTLER, 1998 e 2003.
23 Chantal MOUFFE, 1999 e 2003.
24 Nancy FRASER, 2002.
25 MARIANO, 2005 e 2008.




 


 

Um comentário:

Anônimo disse...

Considero importante os trabalhos de ambas as autoras expostos neste blog.Cada qual com suas especificidades em relação ao Programa Bolsa Família.
Mas, torna-se preocupante a forma em que a autora Walquiria Rêgo,analisa a inserção desse programa na vida dessas mulheres sertanejas/nordestinas.
Mulheres que estão acostumadas com tão pouco ,que passaram a ter falsas sensações de cidadania e autonomia,através das realizações de consumo.Logo,precisamos nos atentar que o consumo está na contramão do processo de luta pela emancipação e real autonomia da mulher.Visto que,tal fator é liderado por um sistema que tem dificuldades em reconhecer a mulher como sujeito.E agora?Já podemos dizer que este sistema nos reconhece de fato como sujeito,por fazermos parte de um programa de transferência de renda,que nos dá a oportunidade de comprarmos baton e danone,ao mesmo tempo que nos sobrecarregam de todo o cuidado familiar? Ou será mais um afago das mãos capitalista,nos mostrando seu peso?

Mônica Ribeiro
Graduanda Licenciada em Ciências Socias - UEL.

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