
"O marxismo está muito vivo e continua sendo o interlocutor intelectual mais importante", afirma o sociólogo e economista,
Francisco de Oliveira, 54. A declaração é uma resposta ao ensaísta e
embaixador brasileiro no México, José Guilherme Merquior, que havia
declarado a morte do pensamento marxista em entrevista publicada pela
Folha, no dia 30 de agosto. Respondendo ponto por ponto às considerações
de Merquior sobre a falência e a decreptude do marxismo, Oliveira diz
que é "rigorosamente mentira" que não existam economistas de relevo que
trabalhem com o conceito de mais-valia (um sobre-valor que o trabalho
produziria além de pagar o seu custo como mercadoria). Afirma também que
"o autor de 'O marxismo Ocidental' não entendeu direito o que quer
dizer alienação" na teoria marxista, conceito que, a seu ver, descreve o
mecanismo de movimento entre "forma aparente e forma essencial" da
realidade.
Na entrevista, realizada em sua sala no 2o andar do casarão que sedia
o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), na Vila
Mariana, o marxista Francisco de Oliveira, classificou o pensamento de
Merquior como o de um diletante, que "escolhe os temas da moda para
ganhar publicidade". "Isto é muito confortante", mas é também "sinal de
impotência", acrescentou.
Folha - O ensaísta José Guilherme Merquior disse, em entrevista à
Folha, que o marxismo morreu. Gostaria de saber qual é a sua opinião
sobre esta análise.
Francisco de Oliveira - José Guilherme Merquior se inscreve numa
longa lista de anunciantes da morte do marxismo. Não é o primeiro a
falhar nem será o último, porque, a meu modo de ver, o marxismo está
muito vivo e continua sendo o interlocutor intelectual mais importante. É
engraçado ver que o marxismo imanta contra si todos os outros campos
teóricos. É um combate que se dá no terreno das idéias, numa espécie de
combate desigual: todos estão contra o marxismo tentando provar que ele
não dá conta mais do mundo contemporâneo, anunciando a sua morte e as
falhas de suas previsões. Mas, de alguma maneira, todas as grandes
correntes do pensamento contemporâneo têm o marxismo como uma referência
fundamental, para negá-lo na maioria dos casos. Ora, uma corrente de
pensamento que tem esse estranho privilégio de imantar todos os outros
campos teóricos contra si não pode ser considerada morta.
Folha - Merquior nessa mesma entrevista ataca os conceitos de
alienação e mais-valia. Com relação a mais-valia ele diz que não há um
único economista respeitável que hoje trabalhe com esta idéia. Como o
sr. que é economista, se posiciona sobre isso?
Oliveira - Em primeiro lugar eu não sou um economista
respeitável, não faço parte do rol daqueles que o Merquior considera
respeitáveis. Em segundo lugar, ele não nomeia quais são os economistas
respeitáveis que não trabalham com a teoria da mais-valia. É evidente
que fora do campo dos economistas marxistas ninguém trabalha com a
teoria da mais-valia. E não há na mídia internacional acadêmica, que é
uma mídia muito especial, nenhum relevo para economistas marxistas. Em
terceiro lugar é rigorosamente mentira, posto que há econommistas
respeitáveis que trabalham com a teoria da mais-valia. Todos economistas
da escola francesa regulacionista, como Michel Aglitta, declaram
abertamente sua forte inspiração na teoria marxista. De modo que não é
verdade. Há aí um problema de mídia, a mídia acadêmica é muito mais
hermética do que qualquer outra e há, de outro lado, no mínimo,
ignorância do Merquior quanto à teoria econômica.
Folha - Há autores de esquerda que põem em cheque a idéia de
mais-valia. Alguns de origem marxista, como Cornelius Castoriadis, por
exemplo. Para esses críticos, a mais-valia é algo completamente
imensurável e, portanto, metafísico. Como é que o sr. vê a questão da
medida da mais-valia?
Oliveira - Essa exatamente é a questão mais crucial. E
colocar esta questão consiste a modernidade do marxismo, ao invés da sua
velhice ou sua decreptude. Esta noção é uma noção extremamente moderna.
A mais-valia em Marx e em marxistas sérios é um processo em que nunca
está definido a priori. Você não pode nunca partir - mesmo tendo todos
os dados à sua disposição - de uma produção "X", baseada em
investimentos "Y", em consumo de força de trabalho "Z" e calcular uma
quantidade mensurável de mais-valia. Isto porque a mais-valia se dá no
processo. Pode o industrial ou empresário não vender sua produção. Pode
haver uma greve pelo meio. Portanto, o processo da mais-valia é sujeito a
perturbações que advém da própria relação do trabalho, da própria
competição capitalista. O conceito de mais valia coloca, do
ponto-de-vista da pesquisa concreta, realmente, uma imensa dificuldade
de mensuração. Agora, essa questão da medida tende muito a ser vista
duma forma positivista. Eu queria que o Merquior ou qualquer outro
economista - ele certamente não é economista - dissesse como é que ele
mede o lucro, que é um conceito abundantemente utilizado na teoria
econômica, por todas as escolas do pensamento, desde as marxistas até as
não marxistas? Como é que eles medem o lucro, como é que eles medem o
valor-utilidade, como é que eles medem o valor-marginal, que são
teoremas clássicos da escola neo-clássica, da escola marginalista. Como é
que eles medem? Eles só medem isso pelo resultado. Só podem medir pelos
resultados. E só podem medir por resultados que estão predetermindos
pela forma em que as atividades econômicas se institucionalizam. A
Fundação Getúlio Vargas faz a conta dos lucros das empresas na
economia
brasileira. Como é que ela faz? Ela faz consultando o balanço das
empresas. Quer dizer, o lucro - a categoria central do capitalismo - é
tão difícil de se mensurar quanto a mais-valia. Como não há nenhum
sistema institucionalizado para medir a mais-valia, à dificuldade
teórica de medir a mais-valia soma-se a sua dificuldade institucional. A
Fundação Getúlio Vargas ou quem quer que apure as contas nacionais,
chega ao lucro através de deduções institucionalizadas, deduções de
conceitos que são institucionalizados. Ninguém pode saber teoricamente
qual é o núcleo real de qualquer atividade capitalista.
Folha - Outro conceito que Merquior diz pertencer à pré-história da
modernidade é a idéia da alienação. Ele diz que o conceito é fortemente
inspirado pelo modelo teológico. E, de fato, é um conceito muito
controverso, mesmo dentro do marxismo. Como o sr. pensa esse problema?
Oliveira - Eu não sou competente para discutir isso. A
questão da alienação requer uma competência filosófica que eu não tenho.
Acho que é bom o Merquior prestar atenção a um artigo que o José Arthur
Giannotti está fazendo sobre o último livro dele, que deve sair na
Revista Novos Estudos, onde as questões propriamente filosóficas do
Merquior são enfrentadas, a meu ver, de forma irrespondível. Mas é
possível que o conceito de alienação tenha contaminações teológicas. É
extremamente difícil não ter havido nenhuma influência. Pedir isto seria
esperar que as ciências nascessem em proveta. Na realidade, provêm de
algum terreno social, sofrem contaminações, fecundações, influências
muito amplas. Isso não invalida o que esses campos teóricos produziram.
Na verdade, o que Merquior pede? Ele pede uma espécie de ciência pura,
não contaminada pelas influências culturais presentes na época em que
esses paradigmas científicos foram criados. Isso é um pedido
completamente banal, um pedido quase inquisitorial. Merquior não tenta
ver se o conceito de alienação, tanto no marxismo como em outros campos
científicos, serve para descobrir novas pistas e enriquecer, portanto, a
problemática posta em questão. Além disso, acho que o Merquior não
entendeu direito o que quer dizer alienação no marxismo. Alienação no
marxismo não quer dizer nunca máscara nem loucura. Alienação no marxismo
quer dizer a forma aparente. E há uma profunda imbricação entre forma
aparente e forma essencial. Alienação é um mecanismo de movimento dessas
duas formas. Isto toma no marxismo um caráter muito especial. Por quê?
Porque o marxismo é teleológico, o que, a meu ver, não o joga fora o
campo científico. Há vários outros campos científicos que também o são.
Eu diria até que, no fundo, todos os campos científicos são
teleológicos. A psicanálise também é teleológica. Por quê? Porque no
fundo busca fazer o indivíduo reencontrar-se. No marxismo, a alienação
comparece com o seu peso devido porque ele trabalha no sentido da
transformação. Agora, se você tomar um campo científico aparentemente
não minado de preconceitos, aparentemente limpo de qualquer atitude
preconcebida, aparentemente limpo de qualquer teologismo, você encontra a
mesma questão. Você toma a teoria econômica
convencional, que hoje é uma mistura de neoclássico, marginalista,
keynesianismo, pós-keynesianos. Por que eles procuram saber qual é o
preço real das coisas? Por que os economistas usam indicadores de preços
para distinguir entre preços normais e preços reais, entre preços
constantes e preços correntes. Por quê? Porque acreditam que o fenômeno
monetário encobre e ao mesmo tempo expressa certos fenômenos reais. A
coisa mais inocente que você tome em qualquer revista de conjuntura
contém em si essa tensão. Por que não tomamos que os preços nominais e
os assumimos como reais? Por que toda discussão sobre a inflação? Porque
há a convicção de que a inflação recobre o fenômeno real, impede o
reconhecimento de fenômenos reais e é preciso, portanto, conhecer os
fenômenos reais para não só fazer política econômica como para debelar a
própria inflação. Há uma alienação dos preços reais em favor dos preços
correntes, dos preços inflacionados. O que o marxismo faz é explicitar
essas questões, que os outros campos não explicitam.
Folha - Duas coisas a respeito desse assunto: me parece que a
diferença entre o marxismo e a psicanálise é que esta não pressupõe um
estágio de resolução da alienação. O inconsciente nunca se torna
completamente consciente. É uma pergunta perpétua. No marxismo, há a
idéia de que se chega a um momento na história em que a alienação é
rompida.
Oliveira - Essa é uma diferença importante.
Folha - Para os críticos do marxismo, isso faz com que o caráter
teleológico e metafísico do marxismo apareça com relevo, porque
pressupõe a idéia de um fim da história. Como o sr. pensa esse problema?
O sr. acha que idéia de que haverá um reencontro completo em um ponto
na história permanece válida?
Oliveira - Eu não me inclino a considerar que a história tem um fio
nem que haja nenhum reencontro em algum ponto da história. Desse ponto
de vista, portanto, se essa for a interpretação do teleologismo no
marxismo, eu me afasto dela. Mas é possível ver nos clássicos do
marxismo outra questão também que não é a do fim da história, mas é do
começo da história. Isso também está muito presente. Nos textos
políticos de Marx, por exemplo, o regime político que aparece depois do
socialismo chama-se democracia. Não é o fim, é um novo começo. O que o
marxismo tem, aparentemente desse teleologismo fatal, desse teleologismo
vulgar que põe o fim da história, é que ele é o único sistema que
declarou de forma explícita que o capitalismo é um modo finito de
produção. É essa coisa que coloca em xeque e causa desconforto. Isto é
tudo que tem de teleologismo fatal no marxismo. Dizer que este é um modo
de produção finito e que ele vai acabar.
Folha - Merquior, ainda na entrevista à Folha, diz que a única saída
teórica do marxismo é o que ele chama de marxismo analítico. Cita dois
autores John Elster e Jerry Cohen como típicos do que seria uma saída
para a sobrevida do marxismo, embora diga também que eles acabam levando
para fora do marxismo. Como o sr. encara esse problema?
Oliveira - Eu acho que aí há um problema. Merquior, no fundo, pede ao
marxismo que se mantenha sectário, fatalista e, por um truque que não
está explicitado na entrevista, tornar-se assim mais vulnerável aos
ataques de gente do tipo Merquior. O que acontece com o marxismo é o que
aconteceu com todas as grandes correntes de pensamento. Ele tornou-se
universal. Dizer, como o Merquior diz, que não há um marxismo mas
marxismos não é sinal de decadência, é sinal de riqueza. Como nós não
podemos dizer hoje que há um liberalismo. Há vários. Nós não podemos
dizer que há uma psicanalise, há várias. Isso é um enriquecimento da
psicanálise e não uma degenerescência. No marxismo se operou a mesma
coisa. O marxismo tornou-se uma referência universal, incorpou-se ao
modo de conceber o mundo e, portanto, ele dá lugar hoje a
desdobramentos, a explorações de variado teor, que tomam da matriz
principal do marxismo e levam a conclusões que podem perfeitamente ser
pós-marxistas. Pedir rigor e pedir fidelidade a si mesmo é um truque
para tornar o atacado mais vulnerável. O que Merquior percebe, na
verdade, é que o objeto de ataque não é tão vulnerável - na entrevista
ele faz o reconhecimento explícito do marxismo analítico, dos
gramscianos e dos neogramscianos (adeptos de Antonio Gramsci, teórico
marxista italiano). E isto dificulta a tarefa dos merquiores da vida.
Seria a mesma coisa que algum cretino quisesse agora tomar os clássicos
do liberalismo inglês e procurasse ver nos liberais contemprâneos a
repercussão dos clássicos do liberalismo neles. Seria um procedimento
tão cretino, que revela aquela manobra que os intelectuais estão muito
acostumados a fazer que é construir o fantasma para poder atacá-lo. O
que ele percebe, e diz na entrevista, é que o marxismo tornou-se tão
rico, tão diverso, fecundou tantas correntes de pensamento, que não é
mais uno. Nunca foi, na verdade. Ora, ele percebe exatamente que essa
variedade, essa diversidade, essa riqueza, tornam o marxismo mais
invulnerável aos ataques do tipo Merquior. E isso certamente angustia o
intelectual do tipo Merquior que vive de construir fantasmas para
combatê-los sob as luzes dos holofotes da mídia. Qualquer pessoa séria
olharia isso com outros olhos. Só um cego diria que o marxismo foi
derrotado ao longo da sua existência enquanto campo de idéias. Poucas
teorias sociais se converteram em ideologia. É muito frequente dizer que
toda vez que um campo teórico se converte em ideologia se empobrece. Eu
acho que é o contrário. Toda vez que um campo teórico se converte em
ideologia significa que passou a prova da história. Quer dizer, se
converteu, realmente, num forte instrumento de construção do mundo
cotidiano. São poucas as construções teóricas que resistiram a essa
prova. O marxismo é uma delas. Transformou-se num instrumento de luta,
de compreensão do mundo e de ideologia de classes e isso é parte da
construção do mundo contemporâneo.
Folha - José Arthur Giannotti define o trabalho do Merquior como o
trabalho de um polemista. O sr. nessa crítica que fez agora, disse que o
procedimento utilizado por ele é um procedimento cretino. Como o sr.
define Merquior?
Oliveira - Eu confesso que nunca li muita coisa do Merquior. E,
certamente, na réplica ele dirá que nunca leu nada meu, o que é
perfeitamente natural. Não tenho nenhuma grande tiragem de livro, embora
de um lado grandes tiragens de livros pudessem me conduzir a uma
situação financeira diferente. Mas só quem vive de direitos autorais no
Brasil é Jorge Amado. Portanto, o sr. Merquior pode dizer solenemente,
como ele dirá, que me desconhece, que eu sou um joão ninguém. Eu eu
aceito. As únicas coisas que eu li dele foram "O Marxismo Ocidental",
recentemente, e essa entrevista à Folha e a conhecida polêmica com a
Marilena Chauí (Merquior acusou Marilena Chauí de plagiar o filósofo
francês Claude Lefort), que foi muito badalada na época. O que me parece
é que ele é um tipo que faz um trabalho intelectual diletante -
diletante não tem o sendido de opor-se ao do intelectual engajado, velha
imagem que se tem, sobretudo, daqueles que se reconhecem dentro do
campo do marxismo. E eu o acho diletante porque escolhe os temas da moda
para ganhar publicidade. Quer dizer, não há na produção do sr.
Merquior, até onde eu conheça, nenhuma contribuição, nenhum avanço. Ele
não propôs nada, já que é tão competente no terreno filosófico, não
propôs nenhuma contribuição a qualquer sistema filosófico. E é muito
confortante para tipos como ele ficarem atirando com metralhadora
giratória e confrontarem-se na posição de que a pós-modernidade recusa
qualquer teoria totalizadora ou qualquer teoria globalizadora. Isso é
muito confortante. Mas isso é também, dizendo da forma mais direta,
sinal de impotência.
Folha - Merquior critica o que ela chama de marxismo ocidental
dizendo que é dominado pelo irracionalismo. Como o sr. enxerga essa
questão?
Oliveira - Eu não vou responder essa questão, porque acho que o
artigo do Giannotti dá conta disso. Há autores muito bem sucedidos na
mídia, que estão aí liderando vendas de livros, há semanas, como
Marshall Berman, que busca a inspiração do seu modernismo precisamente
no marxismo. Talvez se pudesse dizer como paródia que, se "tudo o que é
sólido desmancha no ar" (título do livro de Berman), a obra do Merquior é
o seu oposto: tudo que é leve se espatifa como tijolo.