quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A imprensa que ajuda a matar

Tudo indica que estamos diante de um segundo caso Amarildo. Na madrugada do dia 17 de outubro, um jovem de 18 anos chamado Paulo Roberto morreu na favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro. A mãe e outros jovens que testemunharam o ocorrido acusam os policiais da UPP de tê-lo espancado até a morte. Avisada, a mãe correu para o local e conseguiu ver os dois últimos suspiros do filho, que já chegou morto à Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Exatamente como no caso Amarildo, não só os policiais acusados, mas o comando da UPP e a Polícia Militar, institucionalmente, negam.
Amparada no laudo inicial do Instituto Médico Legal (IML), que diz que as lesões encontradas no corpo de Paulo Roberto não foram a causa da morte do jovem, a corporação soltou imediatamente os PMs que haviam sido postos em prisão administrativa. Também exatamente igual ao caso Amarildo, a grande imprensa já se esforça para deslegitimar a denúncia da família e a revolta da comunidade. Só que desta vez, com um grande trunfo a seu favor: diferente de Amarildo, Paulo Roberto tinha várias passagens pela polícia, estava solto pela justiça, mas, como se sabe, embora não exista pena de morte neste país, faz parte do senso comum confirmado pela grande mídia todos os dias que “bandido bom” é “bandido morto”. Quando digo que “tudo indica”, me referindo à situação de Manguinhos, quero dizer que, para a imprensa, essa é a condição suficiente para se dar início a uma pauta jornalística.
Com exceção honrosa do jornal O Dia – que, aliás, tem se destacado por um sério jornalismo também na cobertura das manifestações – e do programa de Ricardo Boechat na Band News, tudo que vi na grande imprensa sobre o caso do jovem de Manguinhos foram montagens editoriais – inclusive com as técnicas mais simplistas – para enfraquecer a denúncia. No telejornal da Globo, por exemplo, primeiro foi apresentada a fala da mãe, denunciando, depois a da polícia, respondendo. Nesse formato clássico de edição de matéria, que todo jornalista conhece, não há tréplica e a história se conclui na defesa. Mas, para encerrar com chave de ouro, na volta das imagens o âncora termina de fato a matéria informando que o jovem tinha várias passagens pela polícia. Você que não conhece Paulo Roberto nem sua família, que só conhece favela pelas imagens de televisão e aprendeu a respirar mais aliviado em saber que “aquela gente” está “pacificada”, não terá dúvidas sobre o que pensar.
Maquiagem sensacionalista
Os dias seguintes, na cobertura em geral, foram ainda piores. Imagens da revolta da comunidade contra os policiais, apedrejando a sede da UPP e carros de polícia, tomaram conta dos jornais e telejornais, destacando um “vandalismo” preto e pobre que aterroriza o senso comum, nubla o fato (a notícia) original e naturaliza a repressão violenta.
Destaco também a chamada do G1, portal da Rede Globo, no dia 17 de outubro: “Exame diz que agressão não causou morte de jovem em Manguinhos, Rio”. O subtítulo é ainda mais preciso: “Laudo do IML indica que socos não motivaram morte de Paulo Roberto. Família acusa PMs da UPP de Manguinhos de espancar e matar jovem”. A notícia é a (não) causa da morte; as lesões (agressão, socos) não viram pauta. Parece uma anedota conhecida nos cursos de jornalismo, sobre um repórter que foi cobrir a estreia de um espetáculo de circo e voltou de mãos vazias dizendo que não teve matéria porque o circo pegou fogo. É uma pena que agora não tenha graça nenhuma.
Prevenidos da experiência recente, identifica-se, aqui e ali, um esforço de maquiar esse discurso pronto de naturalização. Um exemplo é a matéria, do mesmo G1, que traz, no título, uma frase da mãe do jovem morto: “Não é o primeiro filho que se enterra em Manguinhos”. A concessão, no entanto, limita-se ao título, já que a matéria não traz nenhuma apuração, nenhum dado, nenhum questionamento da polícia sobre a grave denúncia que o título apresenta. Maquiagem sensacionalista, mais uma vez.
“Sai da frente”
É a história que se repete. Aliás, é bom que não se esqueça que o início da cobertura midiática sobre o caso Amarildo não tinha nada das denúncias que hoje ajudam a vender jornais. Em texto publicado nesteObservatório, comento matéria do Globo em que o desaparecimento de Amarildo aparece como uma questão lateral, como o motivo alegado pelos moradores da Rocinha para fazerem uma passeata que causava transtornos no trânsito, esta, sim, a pauta do jornal. Muito diferente do apelo sensacionalista (e falsamente investigativo) das manchetes de hoje, a primeira frase da matéria daquela época, antes de o assassinato se tornar inegável pelos fatos, resumia a notícia que tinha importância: “Uma manifestação realizada ontem na autoestrada Lagoa-Barra por moradores da Rocinha parou o trânsito de bairros como Lagoa, Gávea e São Conrado, dificultando a volta para casa de quem mora na Barra da Tijuca e arredores”. Agora, com Paulo Roberto e Manguinhos, não é diferente.
No dia 19 de outubro, junto com cerca de 70 trabalhadores e estudantes da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição de ensino e pesquisa localizada em Manguinhos, fomos em passeata até a favela no momento em que ocorria o velório do jovem morto. Mas você não viu isso no noticiário. Na véspera, o presidente da Fiocruz, numa comitiva com integrantes ainda do sindicato da instituição e outros pesquisadores e diretores, foi à favela conversar com o comandante da UPP sobre o clima de terror que se instalou na região após uma manifestação organizada pelos moradores em protesto pela morte do rapaz e na qual uma jovem foi ferida na perna – com bala de verdade. Mas você também não viu isso no noticiário.
Uma equipe de reportagem do SBT já estava em Manguinhos quando chegamos. Mas eles não se interessaram muito pelas denúncias que diversas pessoas da comunidade faziam não só sobre a morte do jovem como sobre a prática de violência que, segundo eles, caracterizaria a política da UPP. Localizado em frente à sede da UPP, o repórter, eufórico, orientou o cinegrafista a registrar o momento – que não durou mais de cinco minutos – em que alguns poucos moradores, revoltados, chutaram e jogaram pedras no container da UPP. Um manifestante – que ele talvez não soubesse que era pesquisador da Fiocruz – se postou em frente à câmera com o cartaz que segurava e perguntou por que ele não mostrava aquilo, por que não se interessava pela reivindicação, por que só queria filmar o breve momento em que a população reagiu. A resposta? “Sai da frente, filho da puta”, seguida da afirmação de que ele não precisava que ninguém lhe ensinasse o seu trabalho. Não precisava mesmo: seu trabalho é mostrar imagens chocantes, sensacionalistas, descontextualizadas, que sirvam a uma narrativa irreal, mas reafirmadora do senso comum conservador e violento que legitima a matança de pobre nesta cidade todos os dias (e neste estado, e neste país). Claro que ele tinha que filmar também a reação, que era parte da notícia, mas, na forma e na narrativa, essa parte tem virado o todo.
Modelo de jornalismo e concepção de notícia
Mas é preciso entender que esse não é um fato isolado. Tal como a morte de Amarildo – e, se se confirmar a versão da família e da comunidade, também a de Paulo Roberto –, não pode ser atribuída apenas a policiais isolados, agentes do mal em meio a uma bela política do bem, esse comportamento jornalístico não é específico de um repórter sem ética ou incompetente. Visto no que traz de generalidade, esse episódio tem muita semelhança, por exemplo, com as discussões sobre a cobertura das manifestações que têm tomado as ruas do país.
Quando os defensores de plantão da grande imprensa justificam que as manchetes dos jornais sempre destaquem o quebra-quebra e não o envolvimento da população com o protesto; quando colocam a culpa do noticiário nos “vândalos” que, ao produzirem uma manifestação não-pacífica, forçam uma abordagem negativa da mídia, estão naturalizando uma concepção de notícia que, no limite, legitima comportamentos desonestos como o desse repórter do SBT. Por esse argumento, a revolta da população de Manguinhos, que se traduziu na agressão física a coisas – um contêiner e um carro – por parte de meia dúzia de moradores, equivale, como notícia, à morte e ao espancamento de um menino.
Como já assinalado, merece destaque a séria postura do jornal O Dia que, no dia 19 de outubro, por exemplo, deu uma página sobre o tema, com o título “PMs soltos, jovem enterrado”. Destaca-se a foto de um menino apedrejando o carro da polícia, porque é claro que isso também é notícia e não tem que ser escondido, mas a legenda vincula os fatos: “Viatura tem vidros quebrados por pedras num acesso ao Complexo de Manguinhos, ontem de tarde: moradores revelaram detalhes da morte”. E o texto sobre aquilo que os outros jornais trataram como vandalismo aparece num box, reduzido ao espaço e lugar que esse fato merece no contexto mais geral da notícia. O título do box: “Revolta antes e depois do sepultamento”.
Para que não fiquemos apenas na superfície de um denuncismo que individualiza os atos, é preciso discutir o que de palpável existe nesse processo, além do cinismo que alguns jornalistas da grande imprensa desenvolveram e os óbvios interesses empresariais das corporações de mídia. Para isso, é urgente que todos os movimentos sociais que hoje se mobilizam nas ruas – e não apenas aqueles diretamente ligados à democratização da comunicação – discutam o modelo de jornalismo e a concepção de notícia que, de tão naturalizada, nos faz não estranhar que cada fato noticiado na mídia se esgote nele mesmo. Isolando o fato – objetivo, neutro, aquele que deve falar por si -, a compreensão profissional de notícia cria obstáculos para associações e contextualizações que remetam a um mínimo de totalidade.
Acomodados nesse modelo, muitos jornalistas da grande imprensa aceitam o jogo da fragmentação sensacionalista – que, literalmente, se limita a causar sensação. As grandes empresas jornalísticas, confortavelmente acomodadas no lugar privilegiado de quem controla os principais canais de informação da população brasileira, mantêm seus interesses particulares promovendo essa concepção de notícia e de jornalismo como se se tratasse de uma definição técnica e profissional. E nós, jornalistas e leitores, aceitamos isso.
Opolicial gente boa
Vivemos de tal modo presos num modelo fragmentado de notícia que não é nenhum constrangimento para esses veículos de comunicação ficarem no meio do caminho da informação. Eles podem, exemplo, informar que durante a tortura do pedreiro da Rocinha os policiais perguntavam sobre as armas do tráfico sem concluir – informativamente – que isso obviamente configura uma prática de “interrogatório” a serviço dos objetivos anunciados da UPP e da política que eles representam – e não a manifestação de um ódio pessoal de dez policiais. Como descolar isso da própria política de segurança pública do Rio de Janeiro e dos seus grandes coordenadores, José Mariano Beltrame e Sergio Cabral? Para o jornalismo atual, é fácil, e o pior é que já nos acostumamos com ele.
No caso específico de Amarildo, seria “injusto” dizer que a associação da violência policial com a política mais ampla de segurança não apareceu em momento algum. No dia 5 de outubro, por exemplo, o Globopublicou matéria com o título “Beltrame: caso Amarildo não arranha imagem das UPPs”. A matéria se referia a uma fala do secretário de segurança do Rio de Janeiro durante evento numa escola pública. Conforme registra o texto, entre outras coisas menos comprometedoras, Beltrame defendeu que “o que nós temos hoje lá [na Rocinha] é muito melhor do que havia no passado” e que “a polícia atuou lá como atua em qualquer lugar da cidade. A morte de uma pessoa é muito difícil, mas antes a gente não conseguia entregar uma intimação lá dentro”. Não sei se entendi bem, mas parece que o secretário de segurança acha que ser torturado pela polícia é melhor do que ser torturado pelo traficante. E que as pessoas deveriam ficar felizes porque agora, além de serem torturadas e mortas, elas podem receber nas suas casas intimação da própria polícia. É uma pena que o jornalista do Globo que fez a matéria não fosse dado a ironias.
Como o tema aparece num evento cujo protagonista é o secretário, e não como uma pauta que questione a política de pacificação (mais universal) a partir de um fato particular, o jornal não precisou ouvir o tão famoso “outro lado”. Até, porque, convenhamos, nesse caso, é fácil acreditar que não existe um outro lado. Tendo como pano de fundo a naturalização de que para favelado só existe a escolha entre a arma do traficante e a arma da polícia, a população residente dessas comunidades ‘pacificadas’ – o outro lado esquecido – não é mais ouvida sobre a política que deveria beneficiá-la. Essa mesma população foi destaque nas páginas dos jornais quando se anunciou a instalação das primeiras UPPs, e havia uma forte expectativa em relação aos seus benefícios.
Hoje, um balanço que apurasse as denúncias de morte e violência e ouvisse – de verdade – moradores de diversos segmentos, diferentes faixas etárias, inclusive aqueles ligados a movimentos sociais locais, feito com a autonomia que a apuração jornalística deve ter e não a partir da indicação da própria polícia, talvez apontasse avaliações menos otimistas do que as belas fotos do policial gente boa jogando bola com as crianças da favela. Pelo menos foi isso que eu e todos os outros que estavam comigo ouvimos dos moradores de Manguinhos.
O atributo do embrutecimento
É curioso, por fim, notar que essa fragmentação sensacionalista da notícia tem sempre um lado: o da ordem. Teria causado bastante sensação também a imagem do rosto machucado de Paulo Roberto no velório ou do círculo de crianças, pobres e pretas, que rodeavam o caixão numa tristeza muda, quem sabe vendo o seu próprio destino projetado ali. Não vi essas imagens no noticiário. E, para falar a verdade, também não vi pessoalmente. Não tive coragem de entrar na sala onde o corpo estava sendo velado. E o fato é que, como jornalista, eu deveria me envergonhar disso.
Com esse relato facilito a vida dos defensores de plantão da grande imprensa, que podem apontar a parcialidade da minha crítica, vítima de um envolvimento emocional que não condiz com a objetividade necessária da profissão. Dou-lhes razão e confesso outros crimes: chorei ouvindo o depoimento da mãe do jovem morto; quis fugir correndo deste mundo quando ouvi os gritos de revolta do irmão de Paulo Roberto, que quebrou o pouco protocolo que havia com a sua indignação sentida; quando cheguei em casa, quis que meu filho não dormisse aquela noite. De fato, não estou preparada para o profissionalismo que essa grande imprensa requer. E ainda bem.
Em situações de injustiça e opressão, essa objetividade travestida de uma falsa imparcialidade, esse cinismo justificado pelo profissionalismo, é sinônimo de desonestidade e conivência. Meu consolo, como militante de uma outra comunicação e um outro modo de se produzir notícia, é que esse não é um pré-requisito para ser jornalista; é apenas o atributo necessário do embrutecimento, construído dia-a-dia, por um tipo específico de imprensa: uma imprensa que não pega em armas, mas que, no Brasil, ajuda a matar.
***
Cátia Guimarães é jornalista e doutoranda em Serviço Social
Observatório da imprensa

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