quinta-feira, 30 de outubro de 2014

‘Há muito pouco que se esperar do próximo governo’

Enquanto o país vai se recompondo da febre eleitoral que transformou a disputa entre Dilma e Aécio numa rinha na qual os grandes e urgentes temas nacionais brilharam pela ausência, começa-se a tecer análises do que vem pela frente. Enquanto os movimentos progressistas alimentam a esperança de um mandato mais à esquerda de Dilma, o mercado e seus porta-vozes também já marcam suas posições e exigências.

“O resultado deste domingo foi muito marcante, a ponto de fazer necessário mobilizar todas as forças de esquerda para impedir a vitória de uma direita que dessa vez se apresentou de maneira muito mais explícita, com uma roupagem conservadora não apenas socialmente, mas também economicamente”, disse a historiadora e professora da Universidade Federal Fluminense Virginia Fontes, em entrevista ao Correio.

Para ela, o clima não ajuda em nada a clarear o que está em jogo e quais as tendências da chamada “realpolitik”. Em sua visão, o fanatismo de ocasião, de lado a lado, “gerou uma mobilização de variadas forças de esquerda, o que obscurece o fato de que o governo anterior da Dilma não realizou políticas de esquerda e a expectativa, agora, é de que tampouco realize, de modo a atribuir maior protagonismo às forças populares”.

Apesar do pessimismo, que também se ancora na configuração de um congresso repleto de ranços conservadores, até extremados, Virginia pensa que o próximo período reserva campo aberto para diversas lutas, independentemente de uma maior unidade das forças e pautas à esquerda do debate público.

“Não vejo ambiente propício para as lutas. Acredito que os movimentos terão de retomar sua agenda de forma muito firme, exatamente por conta desse cenário bastante adverso. Se não o fizerem de maneira firme, correm risco de serem atropelados pelos movimentos de massa, que devem vir, apesar de não ser possível prever precisamente”, analisou.

A entrevista completa com Virginia Fontes pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Primeiramente, como você analisa a vitória de Dilma neste domingo, com a margem de votos mais estreita dos últimos tempos?

Virginia Fontes: O resultado deste domingo foi muito marcante, a ponto de fazer necessário mobilizar todas as forças de esquerda para impedir a vitória de uma direita que dessa vez se apresentou de maneira muito mais explícita, com uma roupagem conservadora não apenas socialmente, mas também economicamente. Tivemos o perfil de uma direita organizada de forma muito dura, homofóbica, com toda a característica de um anticomunismo primário, que grassou no Brasil há muito tempo, de forma peculiar.

Isso gerou uma mobilização de variadas forças de esquerda para barrá-la, o que obscurece o fato de que o governo anterior da Dilma não realizou políticas de esquerda. E a expectativa, agora, é de que tampouco as realize, de modo a atribuir maior protagonismo às forças populares.

Portanto, a conjuntura das eleições é muito incômoda, porque de alguma maneira obscurece para as grandes massas as condições reais nas quais se dão nossas lutas, além de esconder as possibilidades e exigências reais de organização que temos pela frente.

Faço uma constatação muito amarga do processo eleitoral, Inclusive, aqui no Rio, fiquei muito impressionada, pois até a última semana era como se nada acontecesse. Já na última semana, alguns bairros tiveram mobilização, mas ainda era como se nada acontecesse, apenas mais um fenômeno burocrático de ir votar.

É um resultado incômodo.

Correio da Cidadania: O que podemos esperar ainda do quarto mandato petista no Planalto, ao olhar para a nova configuração do Congresso e para a atual conjuntura econômica nacional e internacional?

Virginia Fontes: É uma análise para ser feita com calma. Em primeiro lugar, durante a campanha, praticamente todos os candidatos do que considero alas direita e esquerda do capital – uma coisa é ser socialista e se propor transformador, revolucionário, outra é orbitar em torno do capital, como o PT – admitiram que fariam ajustes, mais ou menos rápidos, mais ou menos intensos. Mas todos os candidatos sempre falaram em fazer o ajuste.

Foi uma discussão de cunho técnico e bastante despolitizada, uma vez que não se explicou como se fariam tais ajustes e o que significam. Mas quer dizer que pressões de grandes capitais – de origens diversas – exigem maiores ganhos, o que significa reter ou diminuir conquistas dos setores populares e dos trabalhadores. Esse compromisso estava claro em todos os quadrantes dos partidos que orbitam em torno do capital.

O Congresso ainda mais reacionário significa que a mobilização popular, que num governo supostamente de esquerda deveria ocorrer, não aconteceu. O terreno das eleições proporcionais, importantes por serem mais próximas da vida do eleitor, continua entregue aos grandes grupos controladores de grandes máquinas, aliados de proprietários de sistemas de comunicação de grande escala, e que demarcaram as posições de ingresso no Congresso.

Sobrou, apenas, algum espaço de manifestação nas eleições majoritárias, com alguma dose de inquietação social. Isso é muito grave. É sintoma do que houve nos últimos anos, isto é, um desengajamento das causas populares e da militância efetivamente socialista, comprometida com processos de transformação substantiva, resultando em um parlamento muito marcado pela direita. Ficou um espaço socialmente mais conservador, para além de economicamente – pois neste caso os dois grupos são conservadores. Porém, a diferença de agora é uma base mais homofóbica, visceralmente anticomunista, sem nenhuma tolerância e grosseiramente reacionária.

Desse ponto de vista, o que esperar do próximo governo, sendo que o anterior já se viu completamente aprisionado pelo jogo politiqueiro? Muito pouco. Para uma esquerda revolucionária, socialmente comprometida com transformações (em suma, anticapitalista), cada dia mais terão de se reorganizar forças populares e fechar uma pauta clara em comum, capaz de enfrentar o legislativo e o executivo.

Correio da Cidadania: Faz algum sentido os setores e partidos que se colocam à esquerda do PT, muitos dos quais apoiaram o voto crítico em Dilma no segundo turno, esperarem uma guinada à esquerda do partido e alguma possibilidade de parcerias políticas?

Virginia Fontes: Pessoalmente, não vejo muita possibilidade. É difícil explicar, mas o que acontece? Os processos eleitorais supõem o PT de esquerda, os outros de direita, e falsificam o jogo anterior, porque na verdade são esquerda e direita em torno do capital. Essa discussão não é explicitada. É como se apagassem o nervo pra discutir o epidérmico. Nesse processo, é como se reafirmássemos que a característica atual do PT é a sua característica ideal. Praticamente se reafirma que ser a esquerda do capital é o melhor papel do PT.

Dentro de tal ponto de vista, tenho muito pouca expectativa de que uma guinada ocorra. Seria muito bom, mas a expectativa, para mim, não existe. Os partidos que se mantêm na linha anticapitalista precisam definir um programa em comum. A ideia não é se unificarem, mas precisam de uma pauta de luta comum e clara. É o trabalho a ser feito e não é instantâneo.

Correio da Cidadania: Diante disso, como ficarão as pautas associadas aos movimentos populares e progressistas nesse próximo período?

Virginia Fontes: Tenho bastante expectativa nesse terreno, porque tais pautas não foram cumpridas pelos governos precedentes: reforma agrária; reforma educacional de fato, de base popular, com educação pública, gratuita, laica e socialmente referenciada; reforma universitária ampla, capaz de desprivatizar e desmercantilizar a vida; reforma e mobilidade urbanas...

Essas ideias estão muito vivas na população e nos movimentos sociais. Acredito que as lutas em torno de tais pautas serão retomadas, até porque são pautas absolutamente irrealizáveis no âmbito do capitalismo no mundo contemporâneo.

Eventualmente, essas lutas já foram superadas em alguns países, anos atrás, mas na atualidade vêm sendo crescentemente impossíveis de serem satisfeitas pela ordem dominante. Portanto, o que imagino, e espero, é que os movimentos retomem suas pautas de luta, contra a homofobia, o racismo, pelo transporte, educação, saúde, mobilidade, mesmo que enfrentem limitações provavelmente ainda maiores.

Já vínhamos assistindo o processo de privatização da saúde, da educação, uma sequência de processos de gestão privada de recursos públicos, que precisam dar lucro e, assim, prejudicam diretamente os setores populares. Suponho que os movimentos retomem suas pautas de luta e, de alguma maneira, como já faziam antes, atravessem o ritmo de setores da esquerda do capital que acham que tudo vai bem.

Correio da Cidadania: Acredita que se desenha um tempo propício para novas rebeliões populares, a exemplo das que vimos mais recentemente? Como isso se daria num ambiente institucional mais conservador?

Virginia Fontes: Não acho que está aberto um tempo mais propício para as lutas populares. Acho que serão tempos mais duros. Virão ajustes em favor do capital, que significam mais contrarreformas, redução de direitos sociais e públicos. O segundo ponto é que uma direita conservadora, econômica e socialmente, se reconstituiu nessas eleições, ao menos aparentemente, o que é um problema sério a ser enfrentado. É uma direita socialmente agressiva e com perfil de não dar nenhum espaço para nenhuma conquista sociopolítica.

Não vejo ambiente propício para as lutas. Acredito que os movimentos terão de retomar sua agenda de forma muito firme, exatamente por conta desse cenário bastante adverso. Se não o fizerem de maneira firme, correm risco de serem atropelados pelos movimentos de massa, que devem vir, apesar de não ser possível prever precisamente.

No entanto, como sabemos que as manifestações de 2013 se deram a partir de exigências mais evidentes e concretas da vida dos trabalhadores – transporte, habitação, saúde, educação, que são os temas mais candentes, incluindo a reação à violência estatal –, podemos imaginar que tais pautas estarão recolocadas de forma muito aguda. Mas não porque o ambiente esteja favorável.


Por: Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista. 


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