domingo, 10 de janeiro de 2016

Entre o neoliberalismo e o neodesenvolvimentismo

A crise estrutural do capitalismo vai inviabilizando a cada rodada, ano a ano, década a década, as experiências periodicamente eleitas como exemplos a serem seguidos na economia mundial. Japão nos anos 80, EUA na década de 1990 e agora China são locomotivas que apenas apitam e soltam fumaça. São “alternativas” cada vez mais apertadas num horizonte estreito, fazendo com que as projeções intelectuais tenham que se “ajustar” por algo viável.
Mas isso é constatação estrutural... por todos os lados se reivindica uma sugestão para o momento, precisamos de soluções, caminhos etc... afinal, nós vivemos mesmo na conjuntura.
Nesse caso, a única coisa que sobra é administração da crise. Nada mais resta do que empurrar a desgraça com a barriga, evitar que aconteça hoje o que podemos rolar para a semana seguinte. Mas nesse campo o governo Dilma parece ter esgotado suas possibilidades. Desde 2011 que a economia brasileira desce a ladeira e o baixo crescimento se transformou em estagnação nos últimos trimestres.

Não deixa de ter razão o monetarista que mostra que, apesar de todos os esforços do governo, injetando dinheiro nas empresas (via BNDES e bancos públicos com crédito rural e imobiliário), atuando com a imensidão de investimentos de fundos de pensão e empresas estatais (Petrobrás à frente) e ampliando a dívida de forma progressiva nos últimos anos, os resultados não apenas foram pífios como pioraram. O problema é que não há nada que explique como essa situação vai ser superada com enxugamento do crédito, privatização, contenção de gastos e aumento de juros se todas essas medidas são historicamente recessivas. Enfim, a política neodesenvolvimentista está naufragando e seus métodos não têm diminuído em nada a entrada de água, mas os neoliberais também não têm nada a oferecer para salvar a embarcação e aproveitam a oportunidade para vender os salva-vidas para a primeira classe.
Talvez o erro aqui tenha sido a rapidez em abandonar as esperanças no ativismo estatal. Os mais à esquerda vão dizer isso: o equívoco é muito mais de análise política do que propriamente da alçada econômica. O governo teria interpretado errados os “sinais das urnas” e Dilma teria aderido muito rapidamente ao programa do Aécio, abandonando as esperanças neodesenvolvimentistas. Nesse caso, a razão é apenas um pouco mais paciente, mas não tanto correta: sem dúvida que, comparativamente, o governo teria muito mais a queimar para tentar manter a economia sob efeito de remédios. O monetarismo está preocupado demais com o aumento da relação dívida bruta/PIB de 52 % para 62 % de 2011 para cá, quando países como como Itália possuem uma relação de cerca de 130 %, Estados Unidos de 103 %, Japão chegando aos 250 % e a China já teria superado mesmo esse patamar.

Ou seja, o momento de aperto não precisa ser agora, pois haveria ainda uma margem longa para explorar de endividamento público, o que levaria à manutenção de crédito barato por bancos estatais, ampliação de emprego público, investimentos em infraestrutura e distribuição de renda que manteria a economia sob remédios durante um bom tempo. Aqui o diagnóstico poderia se passar muito bem como o de administração temporária da crise, confiando numa possível melhora da conjuntura mundial para poder reduzir essas medidas de Estado ativo.
Mas o problema que se coloca não é exatamente o do seu conteúdo (desde que ignorando seus efeitos ecológicos), mas o campo de reflexão que o estabelece. Pensar em termos meramente conjunturais, por mais realista, digno e, no fim das contas, por mais “prático” que seja, é exatamente confinar o pensamento no aqui e agora e limitar a capacidade teórica a um instrumento das obrigações imediatas. E nesse caso o erro do governo – mais grave entre os membros do PT -- foi ter exatamente confundido um ciclo curto da economia mundial com uma possibilidade indefinida, foi ter convertido a bonança criada pelo boom das commodities em acertos de sua política, foi ter faturado como qualidade aquilo que era dádiva. O erro aqui, ao não enxergar os movimentos mais profundos da história recente de crise estrutural, foi não saber sequer diferenciar o epifenômeno do seu fundamento. E isso tem claros resultados nas opções políticas.
Por que, a espanto da esquerda, o governo não pode estender ainda mais as políticas anticrise, que inclusive foram enaltecidas durante a campanha eleitoral? Por que abandonar as ferramentas anticíclicas e apelar para o neoliberalismo mais tosco? Por que fazer da vitória eleitoral uma derrota incoporando a política oficial adversária?
O erro do governo, que inviabiliza politicamente a manutenção da política de administração da crise – como simulacro desenvolvimentista --, foi ter confiado arrogantemente em seus próprios atos, confundido as virtudes momentâneas com um pretenso resultado de seu voluntarismo. A confiança de que suas apostas na política econômica poderiam dar certo de qualquer maneira – se não por outros motivos, pelo menos na boa intenção social – impediu o governo de enfrentar o quadro político, fiscal e normativo que lhe envolvia. Pelo contrário, tentando mostrar responsabilidade e maturidade política, não apenas se enquadrou como ainda ampliou o conjunto legal de restrições fiscais e administrativas neoliberais erguidas durante o período tucano. A esquizofrenia não foi poucas vezes apontada: política econômica neodesenvolvimentista num quadro institucional, jurídico e normativo cada vez mais neoliberal. O resultado é que a política anticíclica não poderia perdurar longamente, foi necessário mantê-la pelo menos até a eleição, ainda que fazendo algum tipo de “pedalada fiscal” que não estava nos planos -- afinal, no poder o PT se vangloriava de seguir claramente as regras.
O resultado é o que enxergamos hoje. Mais do que pagando pelas alianças políticas que estabeleceu (o que também é parte dessa contradição), os limites da administração da crise petistas estão colocados pela sua própria incapacidade de confrontar a moldura institucional, normativa e mesmo intelectual que foi criada pelo neoliberalismo nos últimos vinte anos. Fazendo inclusive parte desse quadro, o governo petista comprovou que o “neoliberalismo se tornou um consenso suprapartidário” (Harvey), se não na política econômica oficial (mais próxima ou mais distante, o neoliberalismo sempre fez uso abusivo do Estado em setores variados da economia, como atestam os casos americano e inglês), pelo menos no contexto mais geral da própria estrutura estatal. Em certo sentido, os governos Lula-Dilma foram governos neodesenvolvimentistas num Estado neoliberal. Não é a toa que, a continuar o rolo compressor das desgraças, não vai sobrar muita coisa de seu presumido avanço social. Talvez a lei Maria da Penha, das domésticas e a política de cotas, se não forem ameaçadas pelo avanço conservador, perdurem. Mas a distribuição de renda, o ganho real nos salários etc, podem ser dobrados e mesmo esquecidos em poucos anos de crise. Por outro lado, ficará na memória que esse governo “dos trabalhadores” foi sequer capaz de fazer avançar mudanças na legislação que viabilizassem reforma urbana ou agrária, suas pautas históricas. Os limites curtos impostos à administração da crise ficarão mais visíveis com a explosão da barbárie.
Por:  Maurilio Botelho
Fonte: Diário do Colapso  

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