quarta-feira, 9 de março de 2016

Voz das Marchas




Século XIX, Nora, personagem de Casa de Bonecas (1879) de Henrik Ibsen (1828-1906), uma esposa da classe média alta norueguesa decide sair do lugar de boneca-mulher para se tornar mulher. Nora, casada com Helmer, não se identifica mais com o lugar de esposa e, no último ato, diz ao marido que antes de ser esposa e mãe, antes desse tudo que lhe era permitido ser, acreditava que era um ser humano e não estava convencida de que as leis eram justas. Ainda que não fosse um ser humano como o marido, ela, pelo menos, tentaria se transformar em um. Nora abandona a casa de bonecas – escuta-se o som de uma porta que bate.
Nora tenta compreender sem livros, sem guias, sem manuais, sem o marido, sua situação que era a mesma de todas as esposas da sua época. Ao bater a porta da casa, Nora deixa para trás o lugar de um indivíduo sem direitos. Quando sai de casa, ela age como sujeito que deseja ter direitos. Como esposa, não poderia realizar seu desejo.
Uma outra mulher, operária e esposa, foi rejeitada pelo marido porque se tornara sufragista: Maud Watts (Carey Mulligan), personagem de As sufragistas, filme de Sarah Gavron.
As Sufragistas
Maud perdeu o teto do marido porque decidiu agir. O homem com quem se casou não poderia reconhecer na esposa essa outra mulher que pela ação reivindicava direitos. Assim como Helmer, o marido de Maud não poderia lhe dar outro lugar além daquele de esposa. Maud era uma esposa da classe trabalhadora inglesa que participava do sustento da família com seu salário. Como Nora, ela se casou por amor.
O casamento por amor foi consolidado no séc. XIX, como apontam historiadores (Marilyn Yalom em A história da esposa – da Virgem Maria a Madonna). Assim como hoje, na sociedade vitoriana, os casamentos eram realizados por amor. Os homens passaram a escolher as esposas seguindo o próprio coração, mas as eleitas, depois do casamento, ficavam sob a proteção legal dos maridos. A esposa e o marido eram uma única pessoa perante a lei. Entretanto, o marido era legalmente seu protetor.
Os bens que as mulheres levavam para o casamento passavam a pertencer ao marido. A renda delas, depois de casadas, também. A apropriação dos bens da esposa pelo marido era um princípio comum da lei inglesa, segundo Yalom. A guarda dos filhos pertencia ao pai que podia proibir a ex-esposa de vê-los.
Todavia, a partir da revolução industrial, as mulheres foram trabalhar nas fábricas, e ainda que recebessem menos do que os homens, e ainda que trabalhassem mais horas do que eles, isso contribuiu para o processo de sua emancipação. Dentro de casa já não havia somente o salário do marido, porém, entre esposa e marido, juridicamente, existia uma desigualdade abissal engendrada pela lei. Pela palavra de uma ordem preestabelecida que não representava mais a realidade dentro de casa. Pela palavra da lei apartada da nova situação das mulheres. A partir da metade do século XIX, esse casamento passou a ser equiparado à escravidão pelas mulheres. Um olhar reformista foi lançado para sua situação.
Em 1870, foi aprovado pelo Parlamento o “Ato de Propriedade das Mulheres Casadas” (Married Women’s Property Act) que reconheceu os direitos da esposa sobre sua própria renda e sobre a propriedade e, em 1882, os direitos foram ampliados: “uma mulher inglesa poderia não só obter tudo o que ela tinha antes de se casar, ou o que adquiriu depois do casamento, como também fazer contratos, processar e ser processada e dispor da sua propriedade para venda, doação ou testamento”. (Yalom, 2002)
No final do século XIX, Mrs. Fawcett deu início ao movimento sufragista na Inglaterra, mas de acordo com Simone de Beauvoir em O segundo sexo, foi um tímido movimento. E no início do séc. XX, a família Pankhurst fundou, em Londres, a Woman’s Social and Political Union (WSPU), aliada ao Partido Trabalhista Independente, e organizou as ações dos seus membros: mulheres de classes sociais distintas que se tornaram as “suffragettes”. O movimento ganhou cores, tons e ritmo de militância.
Emmeline Pankhurst (Meryl Streep), esposa do advogado Richard Marsden Pankhurst que apoiava a luta das mulheres por direitos e autor do projeto de lei denominado “Ato de Propriedade das Mulheres Casadas”, foi a líder das sufragistas. Entre a palavra e a ação, as “suffragettes” escolheram agir. Assim, as mulheres organizaram-se politicamente na Inglaterra. Peticionaram ao Parlamento, enviaram delegações ao Primeiro-ministro Lloyd George, fizeram comícios no Hyde Park e na Trafalgar Square, foram para as ruas com cartazes, participaram de conferências, manifestações e também praticaram atos de desobediência civil.
As sufragistas preferiram ser rebeldes a escravas. Agiram com os próprios pés contra o símbolo que fixavam as mulheres no lugar da servidão: a propriedade. Agiram contra a palavra de ordem que as fixavam no lugar da obediência. Foram anos de luta até obterem o direito ao voto sem restrições em 1928. Elas preferiram o som dos próprios pés ao sono das palavras vazias. Unidas pela ação, conquistaram mudanças na palavra da lei. Elas entraram na história como mulheres que se organizaram politicamente para conquistar direitos. Um capítulo novo foi aberto para todas as mulheres.
E se trouxéssemos as personagens Maud, Violet, Edith, Alice, Emily e Emmeline para a plateia, como no filme do Woody Allen, A rosa púrpura do Cairo? Se as convidássemos para um debate – como as rebeldes de ontem veriam as rebeldes de hoje?
As rebeldes de ontem talvez nos indagassem sobre a presença da voz das mulheres em debates sobre seus direitos: “- A voz de vocês está presente, sobretudo nos debates mais polêmicos?” As rebeldes inglesas talvez nos perguntassem: “- Vocês propõem ou exigem projetos de lei que tratem de temas relacionados com direitos que dizem respeito às mulheres de todas as classes sociais?” E as rebeldes mais rebeldes da Inglaterra talvez provocassem: “E vocês, brasileiras, com relação ao próprio corpo, ainda vivem uma liberdade para inglês ver? Supomos que não.” As rebeldes que se sentariam do nosso lado, claro, não perderiam o adorável humor inglês.
Na peça de Ibsen, os livros não ajudam Nora a compreender sua situação. Livros escritos por homens que falavam de um ideal de mulher, de acordo com Beauvoir. A palavra deles não servia para Nora porque nela não havia a voz das mulheres. Nora preferiu seu próprio pensamento à opinião dos livros. Alguns escritores apoiaram as mudanças a favor das mulheres. Ibsen foi um deles. Um homem que criou uma heroína que ainda fala para todas as mulheres.

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