É preciso um trabalho cotidiano que torne agudo justamente o que o sistema vê como inaceitável: a ação coletiva e de classe.
“Lembrai, lembrai, o cinco de novembro
A pólvora, a traição e o ardil,
por isso não vejo porque esquecer;
uma traição de pólvora tão vil”
A pólvora, a traição e o ardil,
por isso não vejo porque esquecer;
uma traição de pólvora tão vil”
Há uma frase muito conhecida dentro da
esquerda, que diz que a “esquerda” só se une na cadeia. Esse ditado
irônico tem seu fundo de verdade. Há realmente uma dificuldade em
aglutinar os setores políticos anticapitalistas em bandeiras comuns de
luta. Poucos grupos ou movimentos conseguiram essa proeza. Em momentos e
contextos históricos específicos, o que unia a esquerda era o
anti-imperialismo, a luta pela libertação nacional, a conquista de
direitos sociais ou a derrubada de determinada ditadura militar. Longe
de ficar admirando o passado com mera nostalgia, vale mencionar que a
unidade nas lutas parece não ser apenas preferível, mas realmente
efetiva do ponto de vista revolucionário, do que uma unidade construída
nas urnas. “Ponto de vista revolucionário” é atualmente uma palavra fora de moda, em tempos neoliberais.
Num
texto da Federação Anarquista Uruguaia (FAU) dos anos 90, este
movimento neoliberal era denunciado como uma “guerra aberta à
solidariedade e a tudo o que possa gerar culturas de cooperação” (FAU, Tempos de Eleições) e que “acabam alimentando a fragmentação e a atomização, em que cada um pensa somente em si” (FAU, Ibid).
Hoje, principalmente nas eleições municipais do Rio de Janeiro, somos
pressionados a nos unir numa mesma bandeira, sob uma suposta “primavera”
amarela, que reafirma a opção das urnas como o caminho da mudança e
transformação social, em torno de determinadas candidaturas políticas. A
pressão chega a ares de denúncia, quando alguns afirmam que “votar nulo
ou não votar” é fortalecer a direita. Não entrarei nas armadilhas da
oposição simplista entre “votar ou não votar”. Primeiro, porque esta
questão já vem carregada de noções políticas totalmente pré-construídas
e, portanto, que se autorrespondem. Toda questão que pré-determina, de
forma maniqueísta, suas próprias respostas deve ser questionada, pois
não há como falar de política se nós não nos perguntamos de que política
estamos falando e, em último caso, o que é e
significa hoje realizar uma ação política. Deste modo, a desmobilização
permanente, a substituição da ação coletiva pela privatização da vida, a
redução da ação política de massas ao simples comportamento per si é a política
por excelência dos que hoje se sentam confortavelmente nas tramas do
poder. Olhando dessa maneira, não se pode sobrevalorizar a ação do voto
“consciente”, voto nulo ou do não-votar, pois o sistema não se
desestruturará a partir de suas próprias regras. É preciso algo mais. É
preciso um trabalho cotidiano que torne agudo justamente o que o sistema
vê como inaceitável: a ação coletiva e de classe.
Nesse cenário de ofensiva dura do
sistema e de seus promotores, mas também de iniciativas de resistência
que aqui e acolá surgem, ressurgem e se fortalecem, a história prova que
as mobilizações populares, a ação direta e a luta permanente não
sumiram da história. Nesse sentido, a primavera não se anuncia ao sabor das urnas
ou de um candidato-mártir, mas sempre esteve presente nas iniciativas
populares de autodeterminação. Iniciativas que enfraquecem a direita não
dentro dos seus próprios instrumentos (doce ilusão…), mas a
enfraquecem, pois dão protagonismo coletivo e criam um povo forte. Para
não desesperar os imediatistas, que acham que as revoluções ou as
mobilizações de massa estão “fora de moda”, não vamos cansar seus olhos
com uma lista dos processo revolucionários dos últimos 100 anos. Basta
citar algumas das lutas dos últimos vinte anos e veremos seus frutos,
diante a passagem das estações.
Em
2006, Oaxaca. A partir de uma greve de professores, trabalhadores,
donas de casa e estudantes unem-se aos grevistas. A greve vira
insurreição popular. A insurreição torna-se poder popular. Este tem um
nome: se chama Assemblea Popular de los Pueblos de Oaxaca, o
organismo de autogoverno dos insurgentes. Outra iniciativa, ainda que
com singularidades, foi a chamada “Primavera Árabe”. Mesmo com limites, a
ação popular de massa e nas ruas derrubou regimes políticos
encastelados há anos no poder. A “transição” democrática e
burguesa operada pelas elites não tira o brilho das ruas, que, se não
avançaram para uma revolução social, colocaram em evidência que os
governos podem, sim, ser depostos e derrotados pelo povo.
Outro movimento inspirado pelo anterior, o occupy wall-street,
formado basicamente pela juventude. Mas contando também com
desempregados, velhos e novos ativistas, este se espalhou rapidamente
pelo mundo. Com todos os seus limites, o vento anticapitalista soprou
mais uma geração de ativistas. As máscaras do “V de Vingança”,
utilizadas pelo grupo anonymous, inspirada claramente na
revista de Alan Moore, de fato eram simbólicas de um movimento que tinha
na ação direta e no protagonismo coletivo seu principal eixo. Mas havia
outro elemento que as máscaras de Guy Fawkes e sua “Conspiração da
Pólvora” sublinhavam. Essa conspiração aconteceu durante a Revolução
Inglesa, uma revolução burguesa, onde católicos radicais planejavam
explodir o prédio do parlamento. O personagem de “V de Vingança” retoma a
face de Guy Fawkes não por acaso. O recado era claro, as mudanças não são feitas com os instrumentos dos dominadores.
Retomar o rosto daquele que desejou explodir o principal símbolo
(parlamento) dos exploradores tinha um significado preciso e bem
definido: “não é possível vencer o amo com suas próprias ferramentas…”.
Num futuro não tão fictício do quadrinho
de V de Vingança, onde um estado totalitário oprime o povo, Guy Fawkes
realiza atentados a símbolos e agentes do governo. As últimas páginas da
revista (também imortalizada nas cenas do filme) enfatizam a força
coletiva dos agentes revolucionários. Milhares de pessoas saem às ruas,
desafiando a ordem vigente e vestindo a máscara de Guy Fawkes. Nesses
agentes reside a esperança de transformação. Não há esperança num
salvador, num mártir, pois todos são ou podem ser Guy Fawkes. A
transformação radical está baseada na força social de centenas de
atores, que, antes pulverizados, enfrentam um governo opressivo; e nas
ruas, e vencem… Essa é a imagem deixada pela máscara de Fawkes. A superação
da política “privatizada” (cujo auge é o ritual cíclico e individual
das eleições). Essa é a imagem do personagem principal de V de Vingança.
Esse é o grito que diz para a juventude romper com o último grilhão
político que a acorrenta às ilusões burguesas… rompam com as eleições,
vão ajudar a organizar nosso povo!
Para
sairmos do campo da ficção, antes que me acusem de querer transpor uma
obra fictícia ao campo da história, nós, pobres socialistas utópicos,
lembramo-nos de outras máscaras, as máscaras zapatistas. O grito do “Ya
Basta” de um movimento social que sacudiu o México em 1994 − e, por que
não dizer, revigorou com novos símbolos e esperança o movimento
antiglobalização da mesma década – trazia marcadamente a figura
encapuzada do subcomandante Marcos. Era um novo Fawkes, mas feito de
carne e osso, saído não da obra de Alan Moore, mas da experiência
ancestral de resistência dos pueblos que habitam o território
que os colonizadores/dominadores chamaram de México. Era o autogoverno
em curso. Os zapatistas saíram mascarados rumo à cidade do México,
desafiando o poder vigente, numa longa marcha. “Subcomandante” Marcos, e
não comandante, pois o poder não residia (e não reside) em Marcos, mas
nas centenas de comunidades zapatistas, nas suas máscaras e suas
assembleias, que decidem completamente os rumos do movimento. Em
oposição a uma “ditadura” democrática de 70 anos do principal partido
conservador do México, o PRI (Partido Revolucionário Institucional). A Outra Campanha
tocada pelos Zapatistas também enfatizava uma estratégia consagrada
pela frase de Emiliano Zapata, que dizia: “um povo forte não precisa de
líderes”. Ao invés de apoiar um candidato, os zapatistas utilizaram o
período eleitoral para ouvir as comunidades e formular um programa sob
uma democracia direta enraizada na experiência comunitária. Na primavera
“amarela”, ao contrário, são as comunidades que são chamadas a ouvir e
votar em seu candidato.
A pretensão de unidade agora se anuncia
com ares de novidade. As velhas e insossas ferramentas dos dominadores
são nos apresentadas com ares de inovação. Não está em jogo a decisão
pelas bases, a luta popular auto-organizada, tampouco o protagonismo das
ruas. A mobilização é em torno da eleição de
um candidato. Para isso, todo um mecanismo de maquiagem do velho entra
em operação. Algumas máscaras do V de Vingança podem ser vistas nas
ruas, sobre a febre da “primavera” amarela, não para ocupá-las e
pressionar os dominadores, mas para fazer um perigoso e subversivo…
comício eleitoral! Feliz da classe dominante que tem como oponente um
comício eleitoral como o auge de uma primavera de “esquerda”… A classe
dominante não teme os instrumentos que ela mesma criou.
Não
há novidade no fato de que parte da esquerda opte pela estratégia
eleitoral. Temos o PT como um bom exemplo do “sucesso” dessa tática:
desmobilização dos movimentos sociais e sindicatos, controle das lutas
pelas burocracias atreladas ao governo, reformismo e pacto de classes.
O elemento novo são os símbolos
mobilizados para reforçar essa estratégia fracassada, principalmente
entre a juventude. Não é de se espantar que Guy Fawkes, nosso anarquista
insurrecionalista sob a curta estação da esquerda eleitoral,
tenha-se tornado um social-democrata bem comportado, que se mobiliza não
para pressionar os exploradores… mas para eleger…. um candidato! Não
espanta também que as primaveras populares, em que o povo saiu às ruas
para enfrentar os ditadores, sejam “filtradas” numa espécie de
primavera-light, onde saímos todos para eleger um salvador, pelas urnas.
Há militantes sinceros, com cujas
táticas eu discordo, que se devotam a construir um projeto que tem como
horizonte conciliar a atuação de massas (nos movimentos sociais), com o
que chamam de ação parlamentar-eleitoral (historicamente, o antídoto
perfeito da primeira). Não é bem a esses que me dirijo. Esse debate
estratégico-político pode ser feito num outro campo e merece alguma
profundidade, o que não é o objetivo deste texto (mas quem sabe de
outros). O fato é que há uma parcela expressiva da juventude seduzida
por essa proposta. É uma juventude que quer ação, vida, movimento… Ela
procura e anseia uma mudança. O manejo de determinados símbolos radicais
aparentemente oferece o que ela quer, mas junto com os símbolos – pois
não há forma separada do conteúdo – lhes são oferecidas as ferramentas
mais conservadoras da ação política: justamente as que anulam as
transformações sociais.
No entorno de um dos comícios, esbarrei
por acidente num participante e “mascarado”, aproveitei então para
reproduzir amistosamente a célebre frase do V de Vingança que diz que “o
povo não deve temer um governo, mas é o governo que deve temer seu
povo”. “Ninguém deve temer ninguém” disse-me o mascarado, antes de sair.
A primeira imagem que me veio a cabeça foi a conciliação: “ninguém deve
temer ninguém”, paz entre classes? Exatamente o contrário de todos os
símbolos convenientemente acionados pela “primavera” amarela em sua
defesa. Posição equivocada ou não do nosso jovem mascarado, era essa a
impressão passada àquela juventude por esses setores de esquerda. Que
uma mudança radical e substantiva da realidade pode ser feita com os
instrumentos do velho mundo. Que o problema é ocupar postos-chaves, dos
exploradores, para poder “inverter” os mecanismos que os gestaram… pobre
ilusão!
Os
opressores podem dormir tranquilos, porque enquanto a juventude e os
trabalhadores saírem de casa para votar ou reforçar a campanha eleitoral
de um salvador, isso significa que já perderam a fé em si próprios e
são incapazes de vestir a máscara que os torna coletivamente os
protagonistas da própria história. Talvez seja por isso que,
laconicamente, o fim da “primavera” amarela seja anunciado com um
“abraço coletivo” no estádio do Maracanã (!). Nada mais sintomático de
uma esquerda que não sabe mais o que fazer com os símbolos
revolucionários de que anteriormente se apropriou. Não a julguemos.
Lembremos da traição da pólvora, lembremos do cinco de novembro,
lembremos que um parlamento como horizonte político é o fim, e não o
início das primaveras revolucionárias.
Por: Rafael V. da Silva
Fonte: Passa Palavra
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