domingo, 14 de outubro de 2012

China e EUA em meio a um confronto anunciado



Alain Frachon e Daniel Vernet, ex-diretores de redação do “Le Monde” e especialistas em relações internacionais, investigaram as relações caóticas das duas grandes potências ao longo de mais de dois séculos. Uma rivalidade cada vez maior. Uma sobe e a outra se vê em declínio.

David Larousserie

O presidente chinês Hu Jintao, o presidente dos EUA, Barack Obama, e a primeira-dama, Michelle Obama antes de jantar de gala durante visita do presidente chinês ao Estados Unidos, em janeiro de 2011
O presidente chinês Hu Jintao, o presidente dos EUA, Barack Obama, e a primeira-dama, Michelle Obama antes de jantar de gala durante visita do presidente chinês ao Estados Unidos, em janeiro de 2011
A rivalidade entre a China, segunda maior economia do mundo, e os Estados Unidos, que continuam sendo a primeira, é proporcional à interdependência: cada vez maior. Ela é também multiforme: comercial, científica, cultural, enfim, estratégica, com um confronto que poderá acabar mal no Pacífico. Alain Frachon e Daniel Vernet investigaram uma dupla cuja relação moldará o século. Nos dois países há otimistas, que apostam em uma coexistência pacífica, e pessimistas, que anunciam um confronto inevitável. Entre estes últimos está o coronel Liu Mingfu, que os autores encontraram em Pequim. A seguir, um trecho do livro “La Chine contre l’Amérique: le duel do siècle” [“A China contra os EUA: o duelo do século”].
Chineses comemoram o 63º aniversário da República Popular da China

Fogos de artifício celebram o 63º aniversário da fundação da República Popular da China, nesta sexta-feira (1º) no porto de Victoria, em Hong Kong
A fábula do tigre, do carneiro e do elefante 
No começo da entrevista, o coronel está calmo, contido, professoral. Cai bem ao personagem. Afinal, ele leciona em escolas militares. Ele tem um motorista e um ajudante-de-campo. É uma personalidade no meio dos estrategistas chineses. Ele tem uma certa ideia de sua importância. Não carrega arma na cintura, mas sim uma Instamatic: a sessão de fotos é obrigatória na chegada, no começo da conversa, e depois no momento da despedida – com o coronel no centro, bem mais alto que os dois jornalistas franceses que foram visitá-lo.

Ele usa um tom erudito para explicar a seus interlocutores: “Nós, a China, e os Estados Unidos, teremos pela frente um século de relações extremamente complicadas. E essa relação determinará o perfil do período”.

O coronel Liu Mingfu, de jaqueta preta, gravata preta e camisa e calça verde cáqui, publicou no início de 2010 um livro que o tornou famoso. A obra intitulada “O Sonho Chinês” já foi reeditada quatro vezes. As grandes empresas o dão a seus funcionários “para estimular sua competitividade”, ele diz. O livro será traduzido para o inglês. Ele serve de base para seu curso na Academia de Defesa de Pequim e figura no programa de outras academias militares do país.

Liu Mingfu nos recebe em uma grande caserna do centro da capital. As portas ficam abertas, o jardim de entrada é aconchegante. Bem no meio do gramado central, destaca-se uma estátua de Mao com cerca de 4 metros de altura, como guardiã do recinto. Alinhados como em uma parada militar, pequenos prédios abrigam os apartamentos dos oficiais. Embaixo, ficam estacionadas bicicletas e Audis pretos fabricados na China.

O coronel Liu resume seu livro. “O povo chinês precisa entender que entre nós e os Estados Unidos há uma única coisa em jogo: quem será o número um? Nosso sonho é sermos o número um, nos tornar a maior potência do mundo. Será nossa forma de participar de um mundo sem potência hegemônica, pois, você vê, a China não conseguiria exercer seu poder de maneira dominante como os Estados Unidos fazem”.

Em outras palavras, a China precisa se tornar uma gigante para dar um fim à preponderância americana. Só então é que o mundo se tornará verdadeiramente multipolar, pois a China não abusará de sua posição. Isso é dito com convicção e um grande cuidado didático, caso os convidados manifestem qualquer ceticismo. “No mundo sempre é preciso haver um campeão, uma potência superior às outras”, observa o coronel, “mas nós encarnaremos um novo estilo de campeão, um campeão não hegemônico. Eis porque o mundo será melhor quando a China for a nação número um”.

Na sala do apartamento, de uma elegante sobriedade, o motorista serve o chá. O ajudante-de-campo se instalou à direita do coronel, e os visitantes em frente, ao redor de uma grande mesa alta em madeira laqueada. O coronel se empolga: “Entre os Estados Unidos e a China a corrida pela hegemonia pode durar um século, é uma questão que fará tantos vencedores quanto perdedores”. “Nós podemos ser parceiros econômicos e financeiros, mas, mesmo nesse domínio, hoje, a guerra começou. Os Estados Unidos têm o poder de seduzir, eles têm seu ‘soft power’, mas os chineses não têm somente fascinação pelos Estados Unidos, eles também têm a sensação de que estes estão tentando sufocá-los, sufocar a cultura chinesa”. “Por fim, há o nível estratégico em nossas relações, onde somos concorrentes”, e é por isso que o coronel defende “um esforço contínuo de ajuste militar chinês”.

Liu Mingfu é um dos porta-bandeiras mais pitorescos de uma corrente que às vezes vai muito bem em Pequim: o ultranacionalismo. Com a morte de Mao, os dirigentes do Partido buscaram uma ideologia para substituir o comunismo tal como queria encarnar o Grande Timoneiro. Este deixou um país exaurido. A China foi sangrada pelos caprichos criminosos do maoísmo. Foi esgotada por massacres coletivos, traumatizada pelas fantasias assassinas e monstruosas de um Nero asiático que continua sendo um dos piores ditadores do século 20.

A partir do início dos anos 1980, o Partido Comunista Chinês se voltou para o nacionalismo. Ele exaltava o patriotismo resgatado de uma nação prestes a reconquistar sua posição de grande potência. Ele explorou seus sucessos econômicos com fins políticos. Temas recorrentes: a China está se vingando por anos de humilhação nas mãos de estrangeiros, está reconquistando um lugar que nunca deveria ter perdido. Por mais conectados que estejam ao resto do  mundo, os jovens chineses foram alimentados com uma mistura de patriotismo revanchista e orgulho nacional exacerbado. Esse nacionalismo se exprime no sentimento de uma rivalidade sem dó para com a outra “grande nação”, os Estados Unidos.

“Os Estados Unidos têm um sonho, liderar o mundo”, retoma Liu Mingfu, “e nós temos o nosso, sermos o número um”. “O século 21 será a história da corrida entre esses dois sonhos, da concorrência entre eles. Hoje, os Estados Unidos, para viverem seu sonho, querem sufocar o nosso.” O coronel Liu se justifica: “Nosso sonho é ainda mais legítimo pelo fato de nunca termos sido um país expansionista em toda nossa história. Mais recentemente, aprendemos com a história do Reino Unido e dos Estados Unidos, esses dois impérios. A rota que eles seguiram, a do imperialismo, esse caminho levou Londres à derrota e também levará os Estados Unidos”.

O ajudante-de-campo adormeceu. O motorista serve mais chá. Liu Mingfu se empolga. “Querem conhecer a visão de um militar chinês sobre os Estados Unidos?” A entonação não é tanto de pergunta, e sim de uma ordem a escutar mais atentamente. “Eles não estão mais aptos a exercer sua liderança sobre o mundo. Eles fizeram dos dez primeiros anos do século 21 um inferno para seu povo e para o resto do mundo. Qual foi a contribuição deles para esse início de século? Duas guerras [no Afeganistão e no Iraque] e uma crise financeira e econômica. Saldo: muitos mortos, sendo pouquíssimos deles verdadeiros terroristas. Isso prova que eles não podem mais ser a potência preponderante que pretendem ser. Eles precisam ceder o lugar.”

A diatribe se eleva, o ajudante-de-campo acorda. Liu Mingfu filosofa sobre a natureza da democracia americana, sobre esse sistema institucional de poderes e contra poderes que deveria impedir um abuso autoritário do Estado central. “No país deles, os americanos aceitam os checks and balances [peso e contrapeso] do lado de dentro, mas recusam os de fora. Só que isso também é necessário.” O coronel se enfurece: “Diga, quem vai pressionar, restringir e segurar os Estados Unidos? Ainda não existe um contra poder para a influência dominante deles. Eles têm toda a liberdade para fazer cada vez mais besteiras. Esses Estados Unidos são um país doente! É preciso contrabalançar seu poder para que ele volte a ser saudável”.

Liu Mingfu gesticula, eleva o tom, chama a intérprete chinesa, seu ajudante-de-campo e seu motorista para testemunharem. Um grande momento de indignação se anuncia, uma onda de fúria, um surto lírico, a salva final. “Nós podemos praticar o socialismo de características chinesas [é a designação oficial em Pequim para a abertura econômica], mas eles desenvolveram o capitalismo de guerra, senhores, o de um país que gosta de fazer guerra pelo mundo”.

O coronel pega no bolso do ajudante-de-campo um maço de cédulas, joga-as para cima. Elas caem como chuva sobre a mesa. “Está aí, é também um capitalismo que fabrica a dívida, que imprime dinheiro. É um capitalismo de jogadores. Se a China é a oficina do mundo, os Estados Unidos são o cassino. É um capitalismo de vigaristas que não reconhece seus erros, pressiona por uma valorização do yuan, para na verdade matar o yuan”.

Em tom trágico, Liu Mingfu conclui seu arroubo clamando por vingança. “É um capitalismo de bandidos, um capitalismo de corrupção, um capitalismo ditatorial. Eles [os EUA] deveriam pedir desculpas pela crise financeira mundial que provocaram e pagar a todos aqueles que eles arruinaram. Eles deveriam ser levados ao Tribunal Penal Internacional.”

O surto passou. Em um tom mais moderado, o professor da Academia de Defesa continua: “Hoje, os Estados Unidos estão tentando formar uma coalizão com a Índia, o Japão e a Austrália para conter a China no Pacífico Ocidental. Eles querem erguer uma muralha marítima ao longo de nossos 2.000 quilômetros de costa”.

Há possibilidade de guerra? “Talvez, provavelmente. Por quê? Porque a China está em plena ascensão enquanto eles estão em declínio. Então estão criando inimigos. Eles desestabilizam a China e a região do Pacífico. Os porta-aviões americanos nos ameaçam a leste, ao sul do mar da China. Estão criando instabilidade estratégica”.

Pequim costuma deixar o caminho livre para a expressão do nacionalismo – na internet, na imprensa ou na boca de um Liu Mingfu exaltado. Pode acontecer de o Partido Comunista encorajá-lo em caso de dificuldades internas. O problema para ele é não se deixar dominar, controlar o fluxo: acusado, suspeito de “fraqueza” diante do estrangeiro, o Partido Comunista poderia se tornar alvo da ira nacionalista.

Ao redor da mesa daquele que sonha com uma hegemonia chinesa absoluta, o humor ficou mais refinado. O coronel mostra o livro de Henry Kissinger sobre a China na página onde ele é citado pelo ex-secretário do Estado. Liu Mingfu não quer que seus convidados vão embora com uma má impressão, a de uma China que seria quase tão belicosa quanto os Estados Unidos da forma que pintam. De jeito nenhum. “Existem três papéis possíveis para a China”, ele conclui. “O do tigre, que, assim como os Estados Unidos, quer comer todo mundo. O do carneiro, que, como engorda, acaba sendo comido pelos outros. E por fim, o do elefante, animal herbívoro que não come os outros, mas que tampouco se deixa devorar”.

Entendemos, o elefante é a China de Liu Mingfu.
Tradutor: Lana Lim
Controvérsia

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