O marxismo e a natureza humana (parte 1)
Valério Arcary
” Se se entende que toda 
transgressão contra a propriedade, sem entrar em distinções, é um roubo,
 não será um roubo toda a propriedade privada? Acaso minha propriedade 
privada não exclui a todo terceiro desta propriedade? Não lesiono com 
isso, portanto, seu direito de propriedade?” (Karl Marx, Os debates na 
Dieta Renana sobre as leis castigando os roubos de lenha.)
O
 argumento que defende a justiça da propriedade privada foi sempre a 
pedra angular do liberalismo. Se o direito à propriedade privada fosse 
ameaçado, argumentaram os liberais, a liberdade seria destruída. Se a 
possibilidade de acumulação ilimitada de capital fosse reduzida, ou o 
direito de herança condicionado, as restrições à busca do enriquecimento
 teriam conseqüências catastróficas: o crescimento econômico seria 
sacrificado, a inovação tecnológica inibida e o espírito de iniciativa 
amputado. A sociedade estaria condenada ao atraso, à estagnação e até à 
preguiça.
Depois da restauração capitalista na Rússia e no Leste 
Europeu, inventaram-se eufemismos para garantir dignidade a valores 
desmoralizados diante da sociedade na etapa histórica anterior pela 
experiência social. Depois da derrota do nazi-fascismo a idéia da 
solidariedade humana tinha estabelecido raízes sólidas na maioria das 
sociedades urbanizadas. Para desqualificar os princípios mais 
elementares de justiça e solidariedade, a ganância foi validada como 
ambição legítima. A cobiça foi promovida a aspiração de aquisitividade. A
 rivalidade ganhou ares respeitosos como competição pela eficiência. E a
 ostentação foi reconhecida como exibição da prosperidade.
O homem como lobo do homem
Remetendo as formas econômicas da organização social 
contemporânea às características de uma natureza humana invariável – o 
homem como lobo do homem –, o liberalismo fundamentava a justificação do
 capitalismo na desigualdade natural. A rivalidade entre os homens e a 
disputa pela riqueza seriam um destino incontornável. Um impulso egoísta
 ou uma atitude comodista, uma ambição insaciável ou uma avareza 
incorrigível definiriam a nossa condição. Eis o fatalismo: o 
individualismo seria, finalmente, a essência da natureza humana. E a 
organização política e social deveria se adequar à imperfeição humana. E
 resignar-se.
Uma humanidade dominada pela mesquinhez, pela 
ferocidade, ou pelo medo precisaria de uma ordem política disciplinada, 
portanto, repressiva, que organizasse os limites de suas lutas internas 
como uma forma de “redução de danos”.
Resumindo e sendo brutal: o direito ao enriquecimento 
seria a recompensa dos mais empreendedores, ou mais corajosos, ou mais 
capazes e seus herdeiros. A propriedade privada não seria a causa da 
desigualdade, mas uma conseqüência da desigualdade natural. É porque são
 muito variadas as habilidades e disposições que distinguem os homens 
que, segundo os defensores de uma natureza humana rígida e inflexível, 
existe a propriedade privada, e não o inverso. A diversidade entre os 
indivíduos, inata ou adquirida, seria o fundamento da desigualdade 
social. Em consequência, o capitalismo seria o horizonte histórico 
possível e o limite do desejável. Porque com o capitalismo, em 
princípio, qualquer um poderia disputar o direito ao enriquecimento. Os 
liberais sempre se apressaram em admitir que nem todos o conseguirão, 
por certo, para mascarar sua defesa com um tempero de realidade.
Esses argumentos não têm, no entanto, o mais mínimo 
fundamento científico. Em oposição à visão de uma natureza humana 
inflexível, o marxismo nunca defendeu a visão simétrica e ingênua de uma
 humanidade generosa e solidária. Nem fundamentou a necessidade da 
igualdade social em uma suposta igualdade natural. O que o marxismo 
afirmou é que a natureza humana tem dimensão histórica e, portanto, se 
transforma. O que o marxismo preservou foi a idéia de que a diversidade 
de capacidades não permite explicar a desigualdade social que nos 
divide. É a exploração de uns pelos outros a causa da desigualdade, e 
não o contrário.
O capitalismo não é meritocrático
A injustiça do mundo que nos cerca não repousa em 
critérios meritocráticos. A diferença de talentos e a variedade de 
capacidades não têm relação direta com o lugar que cada ser humano ocupa
 nas sociedades estratificadas em classes. Não há nenhum mérito em 
nascer em uma família burguesa, proletária ou de classe média. Não há 
nenhum valor em nascer na Nigéria ou na Noruega, na Grécia ou na 
Alemanha.
Na sociedade contemporânea, a condição de classe é 
determinada pelo direito de herança, na mesma proporção em que em outras
 épocas era garantida pelo berço familiar. Pior, na maior parte do 
mundo, as oportunidades de ascensão social ou permaneceram estagnadas ou
 vieram diminuindo no último quarto de século. A geração mais jovem 
desconfia que não irá melhorar suas condições de vida, comparativamente,
 às de seus pais.
A mobilidade social foi reduzida, tanto no centro como 
na periferia do capitalismo. As possibilidades de melhorar de vida pelo 
talento ou pelo esforço vieram sendo reduzidas. A inteligência ou a 
perseverança, a criatividade ou a audácia são aptidões que podem ser 
encontradas em todas as classes. Porém, a ironia é que será encontrada, 
com maior freqüência, entre os trabalhadores.
Estas qualidades serão descobertas em maior número entre
 os filhos do trabalho manual pela mesma razão que entre eles se 
encontrarão, também, a maioria dos que têm gripe, a maioria dos 
estrábicos ou a maioria dos que têm nariz grande: porque são as 
maiorias. A desigualdade do mundo que nos cerca não é nem justa, nem 
racional. Sua explicação, para os socialistas, é o capitalismo. Ser 
socialista é ser um inimigo irreconciliável do direito ilimitado à 
propriedade privada.
A causa mais elevada do tempo que nos coube viver
O interesse pelo tema da natureza humana ressurgiu nos 
primeiros anos do século XXI provocado por novas linhas investigativas 
da biologia evolucionista e da antropologia cultural. Não foi a primeira
 vez que os caminhos da biologia se cruzaram com os da história. A tese 
de Darwin de que a espécie humana teria sido desenhada pelo seu passado 
revolucionou a biologia a partir de 1859, quando da publicação da Origem
 das espécies, e foi uma das maiores realizações científicas de todos os
 tempos. Mudou profundamente a percepção que a humanidade tinha sobre si
 própria.
A descoberta de que a escala da vida nos remete a um 
processo de muitas centenas de milhões de anos não desvalorizou a 
humanidade; ao contrário, ofereceu-nos um sentido de proporções da 
responsabilidade com a nossa sobrevivência. A maioria das formas de vida
 que existiram na Terra já foi à extinção, e por mais de uma vez. A 
revelação de uma ascendência comum com os símios colocou de pernas para o
 ar a perspectiva de uma humanidade predestinada a ser a coroação da 
vida. A vida é frágil. Não há um destino à nossa espera. O amanhã nos 
reserva muitos perigos. Sabemos que a centelha de consciência que nos 
define foi o produto de uma aventura grandiosa.
As espantosas sugestões da biologia evolucionista não 
diminuíram as perspectivas de futuro da humanidade. Ajudam a compreender
 a imponência das realizações humanas na história. Construímos uma 
civilização tecnológica e, culturalmente, complexa. Mas, podemos nos 
autodestruir. Se não encontrarmos soluções para os impasses do mundo 
contemporâneo, com suas terríveis lutas de classes, poderemos perecer. A
 causa mais elevada do nosso tempo é a defesa da humanidade. Nada é mais
 importante. Para os socialistas, a permanência do capitalismo é a 
principal ameaça à vida civilizada.
Contra o determinismo biológico
O darwinismo deixou-nos um extraordinário alerta. A vida é delicada e
 a extinção não é excepcional. A extinção é o padrão mais regular. 
Porém, o darwinismo exerceu também uma influência duradoura – e 
desastrosa – sobre as ciências sociais. Os nacionalismos exaltados das 
potências européias, no final do século XIX, apropriaram-se abusivamente
 da idéia de uma competição individual pela sobrevivência dos mais 
adaptados, para justificar a conquista de um Estado sobre outros. Não 
fosse isso o bastante, defenderam a idéia abjeta do domínio de uma 
civilização sobre outras e, no limite mais repulsivo do nazismo, de uma 
suposta raça superior sobre outras. Os mais desenvolvidos economicamente
 seriam os mais capazes.A idéia de uma seleção sexual dos mais aptos – aqueles que superaram os obstáculos e foram capazes de deixar descendência – foi transportada para a economia para justificar o mercado como forma mais eficiente, e até natural, de regulação de recursos. A desigualdade social seria, também, natural. E o que é natural, seria irremediável.
No final do século XX, a biologia viveu uma nova revolução científica que coincidiu, em muitas das suas conclusões, com hipóteses sugeridas pela história. Esses avanços científicos estão ampliando as possibilidades da pesquisa histórica e são muito animadores, como alertou Hobsbawm (2004): “Para resumir, a revolução do DNA invoca um método particular, histórico, de estudo da evolução da espécie humana [...] Em outros termos, a história é a continuação da evolução biológica do homo sapiens por outros meios.”
O projeto Genoma enterrou as teorias racistas ao demonstrar, definitivamente, que não existem raças humanas, e as pequenas variações entre as populações de ascendência americana, européia, africana ou asiática são muito recentes. Poderia não ter sido assim, se o intervalo de separação dos grupos humanos tivesse sido mais longo, mas as poucas dezenas de milhares de anos de isolamento, interrompido há 500 anos, não foram suficientes para a fixação de diferenças significativas.
As descobertas do DNA permitiram, por exemplo, por meio da marcação das mitocôndrias (uma molécula herdada em todos os seres humanos por linhagem materna), um novo método de datações. Já está sendo rediscutido que o povoamento original das Américas, pouco antes do fim da última glaciação, teria sido realizado em sucessivas vagas por populações geneticamente mais variadas do que até então se presumia.
As premissas anti-históricas criacionistas de uma natureza humana invariável, e ainda por cima cruel, sinistra e malvada, embora ainda exerçam alguma influência sobre o senso comum, são inaceitáveis.
A humanidade compartilhou a capacidade de amar e odiar, 
confiar e temer, identificar e repudiar, desejar e rejeitar, admirar e 
querer, sorrir e desprezar, invejar e imitar, ou seja, todo um 
repertório de ações e reações dos homens uns com os outros – colaboração
 e conflito –, impulsionadas pela necessidade de sobrevivência na 
natureza, que resultaram em experiências históricas, e se concretizaram 
em relações sociais. Transformamos valores e costumes, através da 
história, da mesma maneira que melhoramos nossas ferramentas, e podemos 
sonhar nas mudanças que ainda estão por vir.
A história foi um processo cultural de readaptação da 
humanidade. Essa capacidade de autotransformação foi uma das constantes 
que oferecem coerência interna à própria história, e permitem que ela 
seja compreendida. Por isso, a esperança triunfará.
Referências bibliográfias:
HOBSBAWM, Eric. Manifesto pela renovação da História. Le Monde Diplomatique, 1 dez. 2004.
O marxismo e a natureza humana (parte 2)
Valério Arcary
“Quem não cansa, alcança.” (Sabedoria popular portuguesa.)
A discussão da natureza humana reapareceu por intermédio
 de uma versão da biologia evolucionista. Esta posição admite que a 
natureza humana seria o produto da cultura. Mas ressalta que a cultura 
seria expressão, também, de uma natureza humana herdada. Ambas estariam 
condicionadas pela evolução. (RIDLEY, 1995). O argumento é circular.
A decodificação da seqüência do DNA tem alimentado até a esperança de
 identificar genes específicos, ou grupos associados de genes para 
explicar, tanto sobre a maior vulnerabilidade a doenças futuras, o que é
 animador, quanto sobre a probabilidade maior de tal ou qual 
comportamento humano, o que é mais do que preocupante. Especulou-se 
sobre o gene da violência, da homossexualidade, etc. Investigações estão
 sendo feitas nessa direção, ainda quando o tema seja muito polêmico no 
campo da própria biologia.A maioria dos biólogos evolucionistas não propôs que a chave de explicação dos comportamentos humanos poderia ser encontrada nos genes. Somos humanos porque aprendemos e nos corrigimos. A provocação nos remete, contudo, à questão de saber se existiriam padrões constantes no comportamento social humano que teriam sido fixados ao longo da evolução.
Uma teoria evolucionista da história
Marx não ignorou, em seu tempo, que uma biologia evolucionista não só era compatível com uma teoria evolucionista da história, mas complementar. Acreditava que o homem, como ser social, tinha transformado a natureza à sua volta e, portanto, a si próprio, ou seja, sua própria morfologia. Dominou com as mãos a pedra, a madeira, o fogo, as peles e as fibras. Aprendeu a caçar em colaboração, e diversificou sua dieta. Aumentou seu cérebro, sua estatura, sua expectativa média de vida. A história das civilizações continuava e, inclusive, acelerava essa transformação da natureza e da humanidade.
Marx rejeitava vigorosamente uma interpretação da 
história baseada em padrões de comportamento social humano rígido. 
Argumentou que a humanidade reinventou permanentemente a si própria por 
meio do trabalho e da cultura. A natureza humana seria um processo 
ininterrupto de transformações adaptativas. Marx apresentou nos 
Manuscritos econômico-filosóficos a idéia de que uma essência humana 
imanente – um potencial de transformação – se expressou na ampliação das
 forças produtivas, ou seja, na invenção de novas necessidades.
Segundo Agnes Heller, uma das herdeiras de Lukács na 
chamada Escola de Budapeste: “Aceitamos a concepção do jovem Marx [...] 
tal como foi expressa pela análise de György Márkus. Segundo essa 
análise, as componentes da essência humana são, para Marx, o trabalho (a
 objetivação), a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a 
liberdade. A essência humana, portanto, não é o que “esteve sempre 
presente” na humanidade [...], mas a realização gradual e contínua das 
possibilidades imanentes à humanidade.” (HELLER, 2004, p.4)
O desenvolvimento das forças produtivas seria o desenvolvimento da 
riqueza da natureza humana como finalidade de si mesma. Embora esse 
desenvolvimento tenha sido feito na história à custa do sacrifício da 
maioria – das classes exploradas e oprimidas – esse crescimento da 
humanidade sobre a natureza, assim como o domínio sobre as relações 
sociais, cria a possibilidade de que esses antagonismos sociais sejam 
superados.A ampliação desta riqueza da natureza humana foi a substância do progresso. Fizemo-nos mais rápidos que o guepardo e mais fortes que o elefante. Voamos mais alto que o condor e descemos a profundidades maiores que os peixes. Marx admitiu, no entanto, que existiam limites. Reconheceu que os homens transformavam a natureza e todas as suas relações sociais – a língua, as ferramentas do trabalho, suas relações uns com os outros, etc. – em condições naturais e sociais que não podia escolher, que eram alheias à sua vontade; mas não aceitava a premissa que condicionava a mudança da sociedade à mudança prévia do homem. Lutando pela transformação e pelo domínio consciente de suas relações sociais, a humanidade estaria transformando-se a si mesma.
As desproporções dos dois processos que são a substância da história tornaram-se assustadores. O domínio técnico-científico alcançado está em contradição com o capitalismo. O gigantismo das forças produtivas atuais está aprisionado dentro de relações sociais capitalistas que ficaram estreitas demais. A potência contida nas forças produtivas é explosiva. Se não for libertado das amarras que as contêm ameaça destruir a civilização. O domínio da natureza sem uma solução socialista dos terríveis antagonismos que dividem os homens em classes colocou a natureza e a própria humanidade na beira do abismo.
A naturalização dos conflitos humanos nunca foi, 
politicamente falando, inocente. O que é natural não pode ser alterado, 
ou só se modifica em uma escala tão lenta que estaria além das dimensões
 possíveis da política. É a maldição do escorpião. Etnocentrismo para 
justificar o racismo, seguidismo da liderança para justificar os Estados
 militarizados, xenofobia para justificar as guerras territoriais, 
ambição para justificar a desigualdade social. A procura de um padrão 
inflexível de comportamento contraria a história, e diminui a conduta 
humana à pressão de forças que escapam à sua vontade. Foi a história que
 nos condicionou, favorecendo a plasticidade. Nos fizemos adaptativos, e
 não rígidos.
Natureza ou cultura é a forma que assume o dilema que, 
nesses termos, é falso. Somos os filhos de uma herança cultural que 
transformou nossa natureza. Fazemos a nossa história, mas não escolhemos
 as condições. A tentativa de explicar uma constância da natureza humana
 por meio de centenas de milhares de anos de pré-história e história por
 um determinismo biológico voltou, disfarçada de ciência. Uma condição 
humana perversa e/ou imutável tem sido o argumento para denunciar o 
projeto socialista como uma utopia não só fora da história, mas da 
natureza. Mas a disjuntiva trágica, colaboração e conflito, que 
encontramos em toda a história, permitem imaginar um futuro em aberto.
Iguais e ao mesmo tempo diversos
O marxismo não aceitou a idéia de uma condição humana 
inalterável, criticando critérios anti-históricos que naturalizavam a 
exploração dos homens uns pelos outros. A exploração humana não é 
natural. Como todo fenômeno social, é histórica e, portanto, 
transitória. As idéias socialistas estão hoje na contracorrente, mas os 
pioneiros do liberalismo não eram tão reacionários quanto seus herdeiros
 atuais. Adam Smith, por exemplo, não sentiu embaraço em sentenciar:
Na realidade, a diferença de talentos naturais em 
pessoas diferentes é muito menor do que pensamos; a grande diferença de 
habilidade que distingue entre si pessoas de diferentes profissões, 
quando chegam à maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas 
antes o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre as 
personalidades mais diferentes, entre um filósofo e um carregador comum 
da rua, por exemplo, parece não pro vir tanto da natureza, mas antes do 
hábito, do costume, da educação ou formação. Ao virem ao mundo, e 
durante os seis ou oito primeiros anos de existência, talvez fossem 
muito semelhantes entre si, e nem seus pais nem seus companheiros de 
folguedo eram capazes de perceber nenhuma diferença notável. (SMITH, 
1988, cap. 2, p. 25)
O marxismo afirmava que os homens eram, ao mesmo tempo, 
iguais e desiguais. Reconhecia que a humanidade era diversa. Os seres 
humanos possuem capacidades e talentos diferentes. Uns são mais ágeis e 
outros mais articulados, uns são mais musicais e outros mais enérgicos, 
uns são mais impulsivos e outros mais reflexivos. Porém, as necessidades
 materiais e culturais mais intensas são comuns a toda a humanidade. A 
necessidade de abrigo e alimento, de segurança e lazer, de informação e 
reconhecimento, é universal.
Satisfazê-las, plenamente, foi impossível até que o 
capitalismo liberou as forças produtivas da revolução industrial. A 
igualdade das necessidades nos definiu e pressiona. A esperança em 
formas de sociabilidade mais colaborativas repousa nessa aposta. Sabemos
 que é possível.
Referências bibliográficas
HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
RIDLEY, Matt. The red Queen: sex and the evolution of human nature. Nova York: Penguin Books, 1995.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. v. I. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Os economistas).O marxismo e a natureza humana (parte 3)
Valério Arcary

“A essência humana não é uma abstração inerente a cada 
indivíduo. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais.” (Karl 
Marx, VI Tese sobre Feurbach.)
Os liberais alicerçaram sua argumentação sobre a 
condição humana em uma idéia chave: a premissa de que não haveria 
liberdade sem direito à propriedade. Liberdade e propriedade seriam 
indivisíveis. Seriam direitos inseparáveis um do outro, intrínsecos, 
portanto, essenciais. A natureza humana se definiria pela busca egoísta 
do enriquecimento através da garantia da propriedade como forma de amor à
 liberdade.
O marxismo afirmava que não poderia haver liberdade 
entre desiguais. Igualdade e liberdade seriam indivisíveis. Seriam 
direitos complementares, portanto, um condicionaria o outro. A liberdade
 seria a consciência da necessidade.
Aqueles que não sabem quais são os seus interesses não poderiam ser 
livres. Os marxistas defendiam a idéia de que aqueles que acumulam a 
riqueza concentram, invariavelmente, o poder. E os que controlam o poder
 têm melhores condições de apropriação e acumulação.
A preservação do capitalismo, apesar dos diferentes 
regimes políticos de dominação – variadas soluções institucionais de 
tipo democrático-eleitorais ou bonapartistas-ditatoriais –, seria a 
continuidade de um sistema de exploração do trabalho pelo capital. O 
programa do marxismo era a socialização da propriedade privada e a 
regulação da alocação de recursos pelo planejamento democrático.
O marxismo reconhece ou não a existência de uma natureza humana?
O marxismo não afirmou que a condição humana seria a 
generosidade ou a solidariedade. Tampouco defendeu que seria impossível 
reconhecer as características de uma essência humana. O que distinguiu o
 marxismo de outras tendências igualitaristas foi a insistência na idéia
 de a condição humnana só poderia ser compreendida como um processo de 
evolução histórica das relações sociais. Relações sociais imersas em um 
processo de mudança. Um processo que deixa em aberto muitas 
possibilidades. A humanidade transformou a sua relação com a natureza, e
 transformou-se a si própria através do trabalho.
Ao reconhecer que a natureza humana só poderia ser 
compreendida a partir das relações sociais, ou seja, a partir das 
relações que a humanidade estabelece em cada época histórica com a 
natureza, e dos homens e mulheres uns com os outros, concordou que 
existem determinações que se alteram, e outras que permanecem mais ou 
menos constantes por um período histórico, que pode ser mais ou menos 
longo, até que estas também, evoluem.
Dizer que a essência humana está condicionada pela forma
 das relações sociais dominantes significa reconhecer que, se estas 
favorecem a inveja e a boçalidade, então uma maioria dos seres humanos 
terão comportamentos gananciosos e brutos. Mas não quer dizer que essas 
ações respondam a impulsos inatos. Colaboração e conflito estiveram 
sempre presentes nas relações sociais, em graus variados, ao longo do 
processo de evolução histórica. Não só somos seres sociais, somos uma 
das formas de vida mais sociais. Se não existisse a capacidade de 
colaboração não teríamos sobrevivido.
O tema já foi, porém, muito polêmico. Nos anos sessenta,
 as correntes mais importante do marxismo, tanto no movimento operário 
quanto na academia, ainda eram o estalinismo e a socialdemocracia. Na 
sequência do impacto do relatório Kruschev e das denúncias dos crimes de
 Stalin, o marxismo acadêmico europeu sofreu duas fortes pressões. De um
 lado, a influência do que ficou conhecido como humanismo marxista que 
buscava inspiração nos Manuscritos econômico-filosóficos, então 
publicados (MARX, 2004). De outro lado, a influência do estruturalismo, 
em particular da corrente althusseriana francesa, que realizou uma 
vigorosa negação da possibilidade de compatibilizar a noção de natureza 
humana com a obra do Marx maduro. O argumento foi a defesa de um corte 
epistemológico científico na obra do Marx d’O Capital com as obras de 
juventude. Uma resposta instigante à crítica althusseriana pode ser 
encontrada na obra de Norman Geras, Marx and human nature, refutation of
 a legend (GERAS, 1983).
Liberdade e propriedade não são indivisíveis, mas contraditórios
Os liberais admitiam que o direito à liberdade era 
relativo. Reconheceram que o direito de cada um acabava onde começava o 
direito à liberdade do outro. Os liberais responderam ao desafio 
socialista asseverando que a luta pela igualdade destruiria, 
inexoravelmente, a liberdade. Porque o que contrarai a naturza humana 
não pode ser realizado senão pela força. Denunciaram a ambição 
coletivista do igualitarismo como incompatível com o direito à busca 
individual da felicidade, ou seja, da propriedade que protege o 
enriquecimento, incentiva o progresso, e favorece a inovação.
A premissa da desigualdade natural, inata ou adquirida, 
ou de uma natureza humana inflexível, rígida e inalterável condenava 
logo de saída qualquer projeto igualitarista ao uso da violência contra 
os mais tenazes ou arrojados. Sendo os homens desiguais, toda tentativa 
de construir a igualdade social seria artificial, e só poderia ser 
erguida recorrendo à força do Estado. Esta argumentação ideológica, 
embora tenha coerência interna, não é verdadeira. Não resiste à 
confrontação com a realidade. Não é difícil de ser refutada.
O programa socialista inscreveu na história a 
necessidade da luta contra a propriedade privada para defender o direito
 à vida, a primeira e mais decisiva das liberdades humanas. Afirmava que
 o direito indefinido de alguns à propriedade privada e ao direito de 
herança ilimitada, ou seja, a fortaleza jurídica que defende o capital, 
seria incompatível com o direito à vida de todos.
Por quê? A vida estaria em perigo? Sim, a vida de quem 
nasce na miséria sempre esteve em perigo ao longo da história da 
humanidade, e permanece assim. O direito à alimentação, ao abrigo, à 
educação e à saúde e até ao trabalho, entre outros, definem o que 
significa o direito à vida, e deveriam ser direitos inalienáveis de 
todos. Não são. Poderiam ser? Ou reivindicar essas garantias elementares
 seria utópico? Defender que a satisfação destas necessidades universais
 em plena aurora do século XXI seria utópico não faz sentido. A 
capacidade produtiva presente é mais do que suficiente para erradicar a 
miséria. O obstáculo que nos impede de realizar a maior façanha da 
história da humanidade não é a escassez, a penúria, mas o capitalismo.
A liberdade só é possível com a satisfação das necessidades
O socialismo elevou o direito ao trabalho, o direito a 
moradia, transporte e lazer, enfim, o direito à satisfação das 
necessidades humanas mais sentidas, como a missão fundamental da vida 
civilizada, e o sentido da história pelo qual vale a pena lutar. Ao 
longo do século XIX, o marxismo precisou lutar contra outras tradições 
igualitaristas antes de conquistar a posição de corrente mais influente 
nos movimentos operários europeus.
Polemizou com o cooperativismo francês inspirado em 
Proudhon, com o estatismo reformista alemão da corrente de Lassale e com
 o anarquismo russo antipolítico de Bakunin. Argumentou contra Proudhon 
que as cooperativas poderiam ser uma escola política de construção da 
solidariedade, mas não haveria como impedir sua ruína econômica ou sua 
absorção pelo mercado. Respondeu ao estatismo de Lassale recordando que o
 capitalismo poderia conviver com um estado intervencionista, 
diferenciando socialização de estatização. Uma empresa estatal pode ser 
tão capitalista quanto uma empresa privada. Socialização não é somente 
propriedade estatal, mas propriedade social, ou seja, submetida ao 
controle democrático dos trabalhadores por intermédio de um planejamento
 submetido às suas necessidades. Contestou Bakunin afirmando a 
necessidade da política e da luta pelo controle do Estado, embora 
reconhecendo a necessidade de uma transição em que, gradualmente, iriam 
se dissolvendo as estruturas estatais.
O socialismo dos marxistas defendia a posição de que, 
enquanto alguns poucos possuíssem o capital – portanto, as melhores 
terras, as fábricas, os bancos –, não haveria forma de construir a 
igualdade social, e que era necessária uma estratégia revolucionária 
para deslocar o Estado capitalista, aparentemente invisível atrás dos 
diferentes regimes políticos.
Liberdade e democracia
O liberalismo diminuiu a liberdade reduzindo-a ao 
direito à propriedade privada e amesquinhando-a como a luta pelo 
enriquecimento individual. Locke, um liberal que viveu em uma época 
histórica em que a luta contra a tirania absolutista era um horizonte 
revolucionário, confessou, há mais de 200 anos, a legitimidade da luta 
armada pela defesa da propriedade privada da minoria contra o Estado:
“Mas se qualquer desses atos
 ilegais se estendeu à maior parte do povo – ou se o malefício e a 
opressão atingiram somente a alguns, mas em casos tais que os 
precedentes e as conseqüências pareçam a todos ameaçar, estando eles 
persuadidos intimamente de que as leis e com elas as propriedades, 
liberdades e vidas estão em perigo e talvez até mesmo a religião –, não 
estou em condições de dizer como se poderá impedi los de resistir à 
força ilegal de que se faz uso contra eles.” (LOCKE, 1989, p. 91)
Se as leis que protegem a propriedade estivessem em 
perigo, seria legítimo resistir à força. A defesa do direito de 
insurgência contra o Estado, ainda quando este fosse a expressão da 
vontade da maioria despojada contra a minoria privilegiada, estabeleceu o
 cerne do projeto liberal. Para os liberais, igualdade e liberdade 
seriam direitos não só contraditórios, mas antagônicos.
No afã da polêmica histórica os liberais tiveram 
amnésias convenientes, esquecendo que a luta democrática foi 
protagonizada pelo movimento operário e pelos socialistas. O direito ao 
voto universal, o direito de liberdade de imprensa, o direito de 
organização sindical e popular foram conquistados em lutas heróicas 
encabeçadas pelos socialistas. O liberalismo – mesmo admitindo-se a 
variedade ampla de liberalismos segundo a época e os países – nunca teve
 maior compromisso com as liberdades democráticas, nem no terreno 
teórico nem na prática histórica.
Ao estudar a revolução inglesa do século XVII, os 
liberais defenderam o direito de rebelião do Parlamento liderado por 
Cromwell contra o Estado absolutista inglês. A revolução puritana foi 
feita sob uma bandeira: não poderia haver taxação sem aprovação da 
representação. Argumentaram que impostos que não haviam sido votados 
pelo Parlamento não tinham legitimidade, e a insurgência estaria 
justificada. Não reconheceram aos socialistas no século XX, contudo, o 
mesmo direito de insurgência contra ditaduras terríveis, sempre e quando
 os interesses do capital estavam assegurados.
Durante os dois séculos seguintes à revolução inglesa, 
até meados do XIX, os liberais identificaram a liberdade com o direito 
individual de autodefesa contra o Estado, de onde surgiu sua máxima: não
 se devem aceitar impostos sem que sejam votados pela representação do 
Parlamento, e não devem votar representantes senão os que pagam 
impostos. Domenico Losurdo estudou as ambigüidades das relações da 
tradição liberal com o sufrágio:
“Somos capazes de 
compreender melhor o significado da discriminação censitária que 
acompanhou tenazmente a história da tradição liberal. Sieyés, que 
teoriza a distinção entre cidadãos ativos e passivos, considera como um 
fato [...] que “a multidão sem instrução” seja obrigada a um trabalho 
“forçado” e, portanto, seja “privada de liberdade”; também propõe, como 
sabemos, introduzir na França o trabalho servil ou semi-servil, a que 
deviam ser submetidos os cidadãos passivos [...] o porta-voz do Terceiro
 Estado e da burguesia liberal francesa fala da “maior parte dos homens”
 como “instrumentos humanos da produção” ou como “instrumentos bípedes”,
 retomando em última análise a categoria de que se serve Aristóteles 
para definir o trabalho servil.” (LOSURDO, 2004, p. 45)
A democracia liberal na Europa nasceu censitária, 
excluindo a maioria pobre que não pagava imposto. Eram excluídos, 
também, as mulheres, os jovens, os analfabetos e os estrangeiros. Nos 
Estados Unidos, excluíam-se os escravos. A liberdade dos liberais não 
era igual para todos. Os liberais preferiam reconhecer que os homens 
deveriam ser iguais diante de Deus e, no máximo, diante da lei – cuja 
interpretação ficava reservada a uma justiça de classe que eles se 
reservavam o direito de controlar –, mas irredutivelmente desiguais 
entre si.
O voto censitário, porque limitado aos cidadãos ativos –
 identificando como passivos a maioria pobre que, no final o século 
XVIII, ainda não pagava impostos –, foi inscrito na Constituição 
francesa de 1791. Foi por intermédio de longas lutas políticas – 
cartistas na Inglaterra, a revolução de 1848 na França – encabeçadas 
pelos socialistas que o direito de voto se universalizou. Os liberais 
temiam que, com a extensão do direito de voto aos não-proprietários, 
fosse eleita uma maioria de deputados que ousaria desafiar a propriedade
 privada.
Essa resistência política ao voto universal durante o 
século XIX, expressão do horror social burguês à massa subalterna, 
demonstrou-se, entretanto, historicamente infundada porque, ao longo do 
século XX, os regimes democrático-liberais lograram atrair para sua 
órbita os partidos de base operária burocratizados: primeiro a 
social-democracia, depois o stalinismo e, finalmente, a maioria dos 
movimentos nacionalistas revolucionários na periferia, como sandinistas e
 tupamaros.
Liberdade e igualdade são indivisíveis
O movimento operário nos últimos 150 anos foi o protagonista social 
da mais decisiva transformação da história humana: a aventura épica por 
um controle consciente sobre os destinos da sociedade, levando até o fim
 a promessa inscrita na Revolução Francesa de liberdade, igualdade e 
fraternidade.O socialismo foi o programa que inspirou a epopéia das revoluções do século XX. Os marxistas argumentaram que o sentido da luta dos trabalhadores consistiu, historicamente, em levar às últimas conseqüências a luta pela igualdade e liberdade como valores indissociáveis, portanto, que se definem um ao outro. Afirmaram que não poderia haver igualdade sem liberdade e vice-versa. Uma condicionaria a outra. Essa é também a opinião de Wallerstein:
“Que significa realmente o slogan 
‘liberdade, igualdade, fraternidade’? O slogan da Revolução Francesa é 
familiar a todo mundo. Ele parece fazer referência a três fenômenos 
diferentes, cada um situado em três domínios entre os quais estamos 
acostumados a dividir nossas análises sociais: a liberdade no campo 
político, a igualdade no campo econômico e a fraternidade no campo 
sociocultural. E estamos igualmente habituados a debater a respeito de 
sua importância relativa, em particular entre a liberdade e a igualdade.
 A antinomia da liberdade e da igualdade parece-me absurda. Tenho 
dificuldades em ver como podemos ser “livres” se há desigualdade, já que
 aqueles que têm mais têm sempre mais opções que não são possíveis 
àqueles que têm menos e, por conseqüência, estes últimos são menos 
livres. E, do mesmo modo, tenho dificuldades em ver como a igualdade 
pode existir sem a liberdade uma vez que, na ausência de liberdade, 
alguns têm mais poder político que outros, donde se segue que há 
desigualdade. Não estou sugerindo nenhum jogo de palavras aqui, mas a 
rejeição da distinção entre liberdade-igualdade. Liberdade-igualdade é 
um único e mesmo conceito.” (WALLERSTEIN, 1989.)
Os revolucionários pequeno-burgueses mais radicais do 
final do século XVIII colocaram-se como desafio a conquista da liberdade
 política e da igualdade jurídica de todos os cidadãos. O horizonte 
social da revolução democrática era a eqüidade, porque ela seria o 
fundamento da fraternidade. O programa político da revolução democrática
 era a cidadania. Mas, liberdade e igualdade são indivisíveis. Em uma 
sociedade baseada na exploração do trabalho, ninguém é livre. Não há 
liberdade possível entre desiguais. A liberdade humana só é possível com
 o fim da exploração capitalista.
Se não formos todos livres, nenhum de nós será livre
A igualdade social é a condição da liberdade humana. A 
igualdade social não é a nivelação dos salários. O socialismo não é o 
aumento dos salários, mas a gradual extinção do dinheiro e da 
remuneração salarial. A igualdade social não é a uniformização das 
mercadorias. O socialismo é a ampliação e diversificação do consumo, e o
 fim da forma mercantilizada dos produtos. A igualdade social não é a 
diminuição das diferenças entre ricos e pobres, ou a divisão da 
propriedade. O socialismo é a satisfação das necessidades mais sentidas 
pelo controle social da produção da riqueza e o fim da propriedade 
privada.
Não podemos ser livres, enquanto não formos todos 
livres. Não há liberdade onde reina o medo. O medo do desemprego e da 
pobreza dilacera os trabalhadores, e o medo dos trabalhadores dilacera 
os capitalistas. Não estaremos livres do medo enquanto sobreviver um 
sistema que divide a humanidade em proprietários e assalariados.
A liberdade é uma síntese de direitos que só têm sentido
 se forem universais. Se não forem acessíveis a todos, são vantagens. O 
que são vantagens de somente alguns, são privilégios. Liberdade é o 
direito de opinião, de manifestação, de organização. É a liberdade de 
imprensa. É a liberdade religiosa. É a liberdade de ir e vir. É a 
liberdade sexual. Mas, direitos são sempre relativos, ou seja, são 
condicionados por outros direitos.
Não é difícil concluir que, em uma sociedade socialmente
 desigual, a liberdade de opinião dos que controlam a riqueza – e, 
claro, todas as outras liberdades – é maior do que a daqueles que não a 
possuem. A maior liberdade de alguns significa a perda de liberdade de 
outros. Onde não há igualdade, o direito unilateral de alguns é a 
usurpação do direito dos outros, portanto, a tirania. Não sendo 
universais, não são direitos, são privilégios.
Os liberais restringiam a igualdade possível à igualdade jurídica. 
Ou, na melhor das hipóteses, ampliavam-na apelando à eqüidade: a 
igualdade de oportunidades, a ambição de uma maior justiça diante da 
discriminação de chances dos ricos dos pobres. Os socialistas afirmavam 
que a liberdade só se completaria quando a humanidade fosse capaz de 
garantir a igualdade social. A igualdade social é um objetivo superior à
 igualdade de oportunidades.Nunca existiu, evidentemente, em sociedade capitalista alguma, em lugar nenhum do mundo, a eqüidade, a não ser nos livros da lei. As relações de poder encarregaram-se de proteger os interesses da riqueza. A igualdade social só seria possível, segundo os socialistas, quando a humanidade se libertasse da propriedade privada e, portanto, da sanha do enriquecimento de uns à custa do empobrecimento dos outros, o que vale tanto para as relações entre as classes quanto entre as nações. Onde a exploração de uns sobre os outros se impõe, não pode haver igualdade.
A igualdade social – uma relação dos homens entre si – tem como premissa, portanto, o acesso à abundância para todos. E a liberdade humana – uma relação dos homens com a natureza – tem como premissa a satisfação das necessidades de todos. São um único e mesmo conceito que se desdobra em dois, se estabelecemos a relação dos homens entre si na sociedade ou com a natureza.
Liberdade e igualdade seriam, portanto, inseparáveis e estariam historicamente condicionadas pela possibilidade da abundância, da fartura, ou seja, pela capacidade social de gerar uma produção econômica que pudesse satisfazer às necessidades mais intensas de todos.
Para serem iguais entre si, os homens precisariam ser capazes de se emancipar da penúria ou, em outras palavras, libertar-se da opressão da natureza, desenvolvendo as forças produtivas para além das limitações materiais e culturais herdadas do passado.
Referências bibliográficas
GERAS, Norman. Marx and human Nature, refutation of a legend. Londres. Verso. 1983
LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo civil. In: WEFFORT, Francisco C. (Org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1989.
LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo, triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: EdUFRJ: Edunesp, 2004.
MARX, Karl. Teses sobre Feurbach. São Paulo, Editora Alfa-Omega. Obras Escolhidas, volume 3, p.209, s/data.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo, Boitempo Editorial, 2004.
WALLERSTEIN, Immanuel. Révolution dans le sistème mondial. Paris, Le Temps Modernes, nº 514-515, p. 173-174, maio/jun. 1989.
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