domingo, 26 de julho de 2009

Correspondência entre Keynes e Marx


Cambridge, 24 de outubro de 2008

Meu Caro Marx,

Neste dia do 79º aniversário da quinta-feira negra de 1929, devo reconhecer que você me superou. Para dizer a verdade, eu não acredito numa nova crise. Eu tinha descortinado tão metodicamente a incapacidade do mercado de produzir o equilíbrio do pleno emprego que conduzi todos os governos a mais sabedoria: ninguém teria se deixado infectar por uma crise sem reagir. Eu estava com minha consciência tranqüila e não estava preocupado se você tinha ou não esquecido a Estátua do Comandante buscando arrastar o capitalismo no fogo do inferno.

Contudo, os seres animosos que eu descrevi na minha teoria geral retomaram o poder; banqueiros e rentistas, esses mesmos a quem prometi a eutanásia, se refestelaram durante anos. E, quando chegou o inverno, como diria o fabulista francês (1), eles estavam gravemente desprovidos e se deram conta de que não poderiam reencontrar sua liquidez simultaneamente. E aqueles que ainda a detinham preferiram-na a endossar títulos desvalorizados, verdadeiros lixos tóxicos.

Desde o tempo de minha juventude o setor automobilístico começou a inundar o mercado americano de automóveis reluzentes mas, não tendo a demanda lhes seguido o passo, a depressão não tardou quando um endividamento colossal fez a bolha financeira explodir. Desde 2001 os norte-americanos recorrem a um endividamento também perigoso. Preste atenção: tomando a si como um guru infalível e assim reputado por uma boa parte dos que pretendiam reclamar de mim, o Senhor Alan Greenspan verteu crédito sem contabilizar, esquecendo que a criação monetária deve antecipar a produção real. E seu sucessor, considerado o melhor conhecedor da crise de 1929, Senhor Bern Bernanke continuou a fazer-lhe as honras. Nesse período, os salários perderam seu valor. Com a abolição das fronteiras e a integração financeira, a crise só podia mesmo ganhar o mundo inteiro.

Meu querido Marx, com muito atraso reconheço o ceticismo de minha perspectiva, agravado pelo gosto pelas classes cultivadas, aos seus olhos. Ah! Se você tivesse conhecido as delícias de nossas trocas, de todas as ordens, no Bloomsbury Group (2), no seio do qual brilhava Virginia Woolf, tenho certeza que esqueceria da furunculose deles. Mas, longe de mim a idéia de entreter-lhe com essas mundaneidades que foram, é verdade, a essência de minha vida depois que entendi as futilidades da Bolsa. Eu tenho é de lhe perguntar, meu caro Marx. Eu concedo que você tinha razão: o capitalismo parece irreparável. Mas, como você vê uma saída definitiva dos excessos desse sistema, tendo em vista a calamitosa experiência soviética? Pois, você há de concordar, eu espero, que seus epígonos não conseguiram segui-lo.

Meu querido Marx, o destino nos separou; sem dúvida Londres estava longe demais de Cambridge, a menos que seus furúnculos e meu gosto pela literatura nos tivessem posto a cada um próximos da fronteira, como você diz, de classe, não é? Isso não importa. Nós somos os únicos a saber o essencial, e isso deveria nos aproximar sobre o próximo período. Permita-me acrescentar a esta carta minhas perspectivas econômicas para os meus netos, que deverão agradar-se de você.

À sua leitura, querido Marx,
seu John Maynard Keynes

A resposta de Marx

Meu caro Keynes,

Tenho de dizer que meu primeiro movimento, ao descobrir sua carta, foi o de saborear a revanche. Você, que sub-utilizou uma parte importante de minha imensa obra, fingindo não tê-la jamais lido, agora toma o Caminho de Canossa (3). Pois, onde você encontrou, senão no meu Capital, a acumulação, o trabalho como único fator produtivo, a possibilidade das crises, a inanidade da lei de que a oferta cria sua própria demanda, desse imbecil do Say (4), o papel da poupança que você rebatizou preferência pela liquidez, e mesmo o papel da moeda que os ignorantes lhe atribuem a paternidade? Vamos, mais um esforço, querido Keynes, a moeda transformada em capital em virtude da exploração da força de trabalho! Eu rio com os eufemismos modernos sobre “a distribuição do valor agregado”.

Mas voltemos a sua questão. Eu lhe concedo ter levantado um problema crucial, o da transição do capitalismo para uma organização social favorável à emancipação humana. E os brutos do Kremlin pegaram muito pesado.

Convém, inicialmente, que levemos em conta a medida da mundialização do capitalismo, que eu, com meu amigo Engels, analisamos perfeitamente no meu Manifesto. Essa mundialização, cuja crise não é outra coisa que seu completamento. A impossibilidade radical de que todos os capitalistas liquidem ao mesmo tempo o seu patrimônio financeiro, que você notou bem, remete ao caráter fictício da excrescência do capital financeiro. O que os jovens da ATTAC chamam de financeirização é a exacerbação da exploração dos trabalhadores que permite a liberdade total de circulação de capital. O capitalismo não é o mercado, é a relação capital-trabalho.

Eu já escuto você praguejar em favor da regulação. Falemos com clareza e sinceramente. Eu concedo quanto à palavra, com a condição que tomemos às coisas pela raiz. Senão as sirenes tocarão, dizendo que há um bom capitalismo opaco por trás da voracidade da finança. Ora, lembre você sempre que o sistema mergulha a humanidade nas águas geladas do cálculo egoísta.

"O que fazer, então" diz você?

Em primeiro lugar, suprima-se a liberdade do capital e garanta-se todas as liberdades democráticas, só para melar todas as burocracias. Em segundo, que se limite os altos lucros e se tome os superávits para financiar os investimentos públicos (a esse respeito, eu adoro o seu multiplicador de investimento e não lamento senão uma coisa: não ter pensado nisso). Terceiro, se instaure a propriedade social dos bens essenciais à vida e à gestão coletiva do crédito, e se reflita seriamente sobre a reorientação da produção em direção ao útil e não aos desperdícios. Eis uma coisa que eu não inventei, a palavra “ecologia”, bem que eu tinha escrito que o trabalho era o pai da riqueza e que a terra era a sua mãe.

Meu caro Keynes, eu li suas Perspectivas econômicas para os nossos netos e isso me fez bem. Certa noite de bebedeira numa taberna londrina eu poderia tê-lo afirmado. Mas seria preciso deixar-lhe alguma coisa. Bom, é certo que na City e em Wall Street, onde se lê a mim regularmente – sim, eu lhe asseguro –, os serventes do capital tremem. Eles tremem antes mesmo de saber aonde queremos conduzi-los: à rendição.

Eu lhe prometo, meu querido Keynes, não fazer mais pouco dos seus modos reguladores. Mas lembre-se: regular sem transformar não é regular. Fale disso no seu Bloomsbury Group. Um círculo, ainda, que fracassei de propósito em me ocupar da quadratura.

Seu Karl Marx.

Jean-Marie Harribey é Professor de Ciências Econômicas e Sociais, mestre de conferências em ciências econômicas na Universidade Montesquieu – Bordeaux IV, membro do Grupo de Pesquisa em Economia Téorica e Aplicada (GRETHA, UMR CNRS 5113. Doutor habilitado a orientar pesquisas em ciências econômicas, membro do conselho científico da ATTAC, Co-presidente da ATTAC e membro da Fundação Copérnico.

Publicado originalmente no Libération, em 24 de outubro de 2008

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