quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Um militante incasável, por Antonio Candido

Vou tratar do início da vida política de Florestan Fernandes e, mais amplamente, de sua militância, porque nele a militância não se restringia ao aspecto puramente político. Aceitei essa tarefa com prazer, porque era preciso o pronunciamento de alguém da geração de Florestan, coisa que vai ficando cada vez mais rara. Ele era um pouco mais moço do que eu, mas fomos companheiros de vida universitária e somos da mesma geração intelectual. Tentarei lembrar alguns aspectos importantes daquele tempo, sem ter certeza de não cometer erros ou fazer omissões, pois o tempo decorrido é muito grande.


Não saberia dizer quando começou exatamente a militância política de Florestan Fernandes. Tenho a impressão de que, quando nos conhecemos, ali por 1943, ele não se interessava muito por política. Estava interessado, sobretudo, na sua vida intelectual, pois estava construindo com grande energia e esforço a sua notável plataforma cultural. Nós não falávamos de política, disso eu tenho certeza; concluo que se ele tivesse alguma atividade nesse setor falaríamos dela, porque eu já tinha. Lembro‑me, por exemplo, de uma conversa significativa, ocorrida ali por 1943, na redação do jornal Folha da Manhã, cujo secretário, um jornalista muito brilhante, Hermínio Sacchetta, era trotskista. Sacchetta havia sido secretário‑geral do Partido Comunista Brasileiro em São Paulo, mas a certa altura havia rompido com ele e adotado as posições da IV Internacional. Nessa conversa eu manifestava muito sectarismo, Sacchetta também, e Florestan nos contestava. Eu estava me iniciando a sério no marxismo, passava por uma espécie de lua‑de‑mel com a política, e por isso exagerava as posições. Afirmava, por exemplo, que, para analisar a vida cultural, não só o marxismo era necessário, como os partidos políticos que o adotavam detinham a verdade. Doutrina extremamente perigosa, que vimos no que deu. Florestan contestava com uma posição de muito maior liberdade, reivindicando o descompromisso do conhecimento. Essa é a primeira lembrança que tenho de discussão política com ele, e não me lembro de mais nada a respeito.

Tenho a impressão de que a convivência de Florestan com Hermínio Sacchetta deve ter sido decisiva para ele adquirir uma consciência política definida e passar à ação. Em 1944, por exemplo, Sacchetta imaginou e dirigiu uma coleção muito interessante de estudos marxistas numa editora que infelizmente durou pouco, a Editora Flama. Essa coleção publicou livros como A miséria da filosofia e Contribuição à crítica da economia política, de Marx, A questão agrária, de Karl Kautski, Reforma ou revolução, de Rosa Luxemburgo, e coisas assim. Sacchetta encarregou Florestan de traduzir e prefaciar Contribuição à crítica da economia política. Sempre dentro dos limites da memória e das impressões, creio que esse foi o primeiro grande ato político de Florestan. Apesar de ser um rapaz de 25 anos, fez uma introdução erudita e penetrante, com grande conhecimento da matéria, denotando iniciação segura nesses temas, o que leva a crer que já possuía alguma formação marxista anterior, embora com certeza recente. É uma suposição.

Para formar o contraste, devo dizer que naquela altura, 1943/44, eu estava em uma posição política diferente, militando em pequenos grupos clandestinos contra a ditadura do Estado Novo, ligado sobretudo a colegas da Faculdade de Direito, onde fui estudante até 1943. Éramos um grupo de rapazes liberais e socialistas. Nós, os socialistas, tínhamos uma característica: não aderimos nem ao stalinismo nem ao trotskismo, que eram as correntes dominantes daquele tempo. Por influência de Paulo Emílio Salles Gomes, que foi o meu guru, comecei a vida política sem ligação com nenhuma das correntes, sendo a stalinista muito forte e a trotskista, fraca. Eu tinha boas relações com pessoas da corrente trotskista, que em geral eram cultas e lúcidas.

Ora, ali por 1944 é possível que Florestan já tivesse aderido ao trotskismo, e quem sabe por causa disso não tivemos muito diálogo, pois eu estava em posição que ele talvez considerasse de tipo reformista. Um caso pitoresco: anos atrás eu disse a ele: “No PT você está mais à esquerda e eu mais à direita”. Ele retrucou: “Não use essa palavra a seu respeito!”. E eu: “Não estou dizendo que sou de direita, mas que, num partido de esquerda, estou mais à direita”. Mas ele insistiu, agastado: “Não use essa palavra!”. Voltando ao passado, imagino que, no momento em que começou a se interessar por política, já estava numa posição mais radical do que a minha.

Em 1945, quando veio o que se chamou também “abertura democrática”, tão relativa quanto a de hoje, todos saíram da sombra, os agrupamentos clandestinos vieram à luz, começaram a se decantar os grupos. Nós, por exemplo, nos separamos dos companheiros liberais, que foram para a UDN (União Democrática Nacional), e fundamos sob a liderança de Paulo Emílio um pequeno grupo chamado União Democrática Socialista, UDS. Naquele momento houve muita política de frente única e Hermínio Sacchetta inspirou uma delas, denominada Coligação Democrática Radical, tentativa de construir uma grande frente, compreensiva o bastante para abranger pessoas de várias tendências, identificadas pela reivindicação da legalidade democrática como meta imediata. Mas o miolo intencional era socialista de inspiração trotskista. Florestan trabalhou bastante nela, com o ardor que punha em qualquer tarefa. O manifesto, que tive até pouco tempo e infelizmente perdi, foi assinado por pessoas bastante expressivas do meio cultural de São Paulo – professores universitários, estudantes, jornalistas. Naquele momento, houve de modo passageiro uma espécie de “esquerdização” da classe média, de modo que a Coligação parecia uma coisa que ia ter muito vulto; mas, na verdade, acabou de repente sem deixar rastro.

Aquele foi um tempo de grandes esperanças, e quando penso nos moços de hoje tenho um pouco de pena deles, porque acho que não viveram as expectativas eufóricas (e enganadoras) do meu tempo. Quando acabou a guerra, tínhamos a convicção de que o socialismo ia se instaurar; que, devido à vitória comum contra o nazismo, a União Soviética ia se liberalizar e se democratizar, enquanto os Estados Unidos, a Inglaterra, a França iam se socializar. Eles se encontrariam no meio do caminho e nós teríamos a felicidade na Terra! Caricaturando um pouco, no fundo era essa a nossa posição, posição de grande esperança, uma esperança que nos animava, nos transportava acima de nós mesmos, e todos sabem que, sem grandes ideais, a gente não se transporta acima de si. Sou de uma geração que se transportou acima de si mesma, graças a essa esperança, que foi logo cortada pela Guerra Fria. À vista disso, não espanta que houvesse tentativas de amplas frentes congraçadoras, e que pessoas de várias tendências se unissem, num esforço de boa vontade. Liberais, democratas, socialistas marxistas e não‑marxistas se uniram na Coligação Democrática Radical. Ela foi uma dessas tentativas generosas, típicas daquele momento, e nela Florestan militou bastante, embora brevemente. Como a Coligação não teve a vigência e a importância que se esperava, não sei qual passou a ser em seguida a atividade política dele. Não conversávamos sobre isso, e o que posso dizer é que ele não pertenceu à minha esfera política, que depois da legalidade foi a UDS, a qual entrou em seguida para a Esquerda Democrática, fundada em agosto de 1945 e transformada em Partido Socialista Brasileiro em meados de 1947. Ele não pertencia também à esfera do Partido Comunista, e não sei se militou efetivamente no pequeno agrupamento trotskista, liderado por Sacchetta, do qual lembro que fazia parte o jornalista José Stacchino. Mas há uma coisa curiosa, na qual tenho pensado: naquele tempo o Partido Comunista era forte, e o meu grupo era contra porque, para nós, ele era o stalinismo, a nosso ver uma deturpação do socialismo. Isso podia ser penoso porque a imprensa dos comunistas era poderosa e dizia o diabo de nós. Não era fácil. Os stalinistas chegavam a nos negar cumprimento em muitos casos, porque havia um famoso artigo 15 dos estatutos do seu partido que proibia manter mesmo relações de simples cortesia com “inimigos do povo”, como fascistas, trotskistas, social‑traidores... Era penoso cumprimentar um conhecido e vê‑lo virar a cara – exemplo que sugere o quanto era difícil uma atitude independente dentro da esquerda. No entanto, Florestan sempre teve amigos no Partido Comunista e, ao que eu saiba, nunca foi alvo de restrição por parte deles, mesmo naqueles tempos em que, para os comunistas, todos nós, não‑stalinistas, éramos chamados trotskistas, um dos piores xingos que podia haver. Muitos comunistas mais desinformados nem sabiam direito o que significava essa palavra, e imaginavam que se tratava de sinônimo de salafrário, policial, delator ou coisa parecida. Muitos até falavam “trutikista”, “troskista”, “trukitista”. Isso gerou muita confusão e há gente que pensa até hoje que meus amigos e eu éramos seguidores de Trotski, quando na verdade a nossa posição consistia em rejeitar tanto o stalinismo quanto o trotskismo. Mas, repito, apesar de ser efetivamente trotskista, Florestan nunca sofreu qualquer restrição, pelo menos ao que eu saiba. Provavelmente porque sua militância ostensiva tinha sido curta e se dado numa organização de frente única, e também porque, depois disso, não se inscreveu em nenhum grupo político. E, sobretudo, porque não pertencia ao nosso Partido Socialista, execrado pelos comunistas e classificado por um prócer deles, de São Paulo, como “cambada de trotskistas”. (De fato, muitos dos nossos companheiros haviam sido militantes da IV Internacional.)

Fazendo uma digressão que me parece oportuna, quero lembrar que, naquele tempo, os intelectuais estavam politicamente muito definidos e, em parte, arregimentados. Nós, isto é, as pessoas de minha idade, somos fruto da década de 1930, que foi, no mundo e no Brasil, uma década de radicalização. Foi a década da oposição direita–esquerda, fascismo–comunismo: a pessoa era levada a optar. Antes disso, no Brasil, os intelectuais não tinham necessidade de optar. Ninguém lhes cobrava isso. A partir de 1930, a coisa mudou e eles passaram a se definir como liberais, ou fascistas, ou socialistas, ou anarquistas. A maioria dos intelectuais da minha geração passou a manifestar suas posições, condicionados pela radicalização geral do período. Nós nos sentíamos diminuídos se não assumíssemos uma atitude política definida, e Paulo Emílio chegava a dizer que era melhor ser claramente de direita do que não ser nada.

Isso influiu diretamente na vida associativa, suscitando organizações das quais a mais importante, no meu tempo, foi a Associação Brasileira de Escritores, a ABDE, fundada no Rio de Janeiro, em 1942, com a finalidade ostensiva de reunir os escritores na defesa dos direitos autorais que, naquele tempo, eram massacrados no Brasil. Mas essa associação tinha, em segundo plano, a finalidade de combater o Estado Novo. Ela se estendeu imediatamente a São Paulo e eu participei da primeira reunião preparatória, na qual estavam presentes Mário de Andrade, Oswald Andrade, Sérgio Milliet, Mário da Silva Brito, Abguar Bastos, creio que Lourival Gomes Machado e mais alguns dos quais não me lembro. Na primeira diretoria, Sérgio Milliet foi presidente e eu segundo secretário. Militávamos por meio dessa associação, cujo feito maior foi a realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, na cidade de São Paulo, em janeiro de 1945. Fez‑se um manifesto final pedindo a volta das liberdades democráticas, que os jornais não puderam publicar devido à censura. Então foram impressos milhares de volantes, que se difundiram por diversos meios. Essa ABDE continuou até pouco depois de 1950, quando houve uma cisão entre comunistas e não‑comunistas por causa da Guerra Fria. A reunião dos grupos opostos só se deu muito mais tarde, por iniciativa de Paulo Duarte.

Ora, Florestan nunca participou ativamente da ABDE, embora devesse ser sócio inscrito. E talvez já fosse uma manifestação do que se poderia chamar a sua militância individualista, que o manteve afastado das organizações (embora sempre ativo na luta em caráter pessoal) até inscrever‑se no Partido dos Trabalhadores em meados do decênio de 1980. Uma vez eu disse a ele: “Você, Florestan, não precisa pertencer a partido nenhum, porque você é por si só um partido”. De fato, ele assim era, com sua dificuldade de se arregimentar, sua capacidade de agir exemplarmente e sua energia ciclópica.

Com isso fecho a digressão a fim de chegar onde quero: não é essencial, para entender a personalidade de Florestan, saber se estava ou não na ABDE, ou no Partido Socialista, ou se atuava em alguma pequena organização trotskista. O importante é que bem cedo ele começou a desenvolver uma atitude de militância em relação a qualquer problema. Não se tratava de uma militância condicionada por determinada palavra de ordem partidária, mas de uma militância ligada à consciência que ele tinha da necessidade de o intelectual intervir nas grandes questões de seu tempo. Essa é, a meu ver, a grande militância de Florestan Fernandes. Por isso não participou de nenhum agrupamento entre meados do decênio de 1940 e meados do decênio de 1980, quarenta anos em que lutou, à sua maneira, nas mais diversas frentes, e amadureceu sua posição política.

Nesse longo período, aos poucos, à medida que construía uma obra monumental no campo da Sociologia, penso que o marxismo foi se tornando uma fonte intelectual cada vez mais presente e atuante de seu pensamento. Falando certa vez sobre Florestan, eu disse que, durante muito tempo, na sua composição intelectual, o marxismo foi uma espécie de “rio subterrâneo”, por baixo da estrada acadêmica na qual andava, incorporando criticamente Durkheim, Max Weber, Mannheim etc. Num certo momento o marxismo aflorou na estrada e toda aquela formação convergiu com ele para formar o pensamento extremamente pessoal de Florestan na sua fase madura. Ele costumava dizer e escrever que era marxista‑leninista. Mas acho, por motivos que não cabe agora expor, que marxista‑leninista só russo pode ser, assim como maoísta, só chinês, e castrista, só cubano. A força de Florestan consiste em ter chegado a um modo pessoal de ser marxista, mostrando que o marxismo tem uma força extraordinária de aglutinação e flexibilização que lhe permite enfrentar as diferentes realidades, dando as respostas específicas que cada uma requer. A realidade brasileira é diferente das outras, e a força de Florestan, como a de Caio Prado Jr., foi ter percebido que o marxismo é um instrumento para analisar de determinada maneira a situação do seu país, e não uma fórmula invariável a ser aplicada a qualquer contexto.

Isso se deu na vida de Florestan pelo encontro de uma sólida sociologia acadêmica e de uma profunda formação filosófico-social com o marxismo. Foi então que se definiu o que ele chamava “sociologia crítica”, uma sociologia capaz de traduzir‑se em ação, que fez dele o homem das grandes lutas pelas grandes causas: situação atroz do negro, escola pública, reforma universitária. Essa foi a sua militância pessoal, inspirando o esforço de outros – a militância que fez dele um homem que esposava todas as causas importantes que requeriam bravura, lucidez e ânimo combativo. Florestan foi sempre um homem na linha de frente. Sua entrada no Partido dos Trabalhadores nada mais foi do que o coroamento dessa longa batalha como militante político.

A vida de Florestan Fernandes tem um valor realmente exemplar, porque ele foi um dos raros intelectuais a superar completamente o hiato que existe, quase sempre, entre a vida ativa e a vida do pensamento. Ele nunca foi revolucionário de gabinete, porque foi sempre um homem que canalizou para a transformação da sociedade o marxismo, a Sociologia e a Antropologia, usando-os para forjar uma posição própria que lhe permitiu atuar com eficácia na sua época, na sua sociedade e na sua instituição, a Universidade de São Paulo. Foi nela que Florestan desenvolveu e amadureceu o seu ponto de vista. Eu diria, portanto, que o começo de sua militância não é o mais importante. Mais importante é ele ter sido um militante permanente que, de certo modo, coroou as nossas aspirações radicais surgidas no decênio de 1930. E o seu corte exemplar é devido em parte ao fato de ter tido sempre, a vida toda, a capacidade de criar o escândalo construtivo.

Não há grande militante sem a capacidade de criar escândalo. E o escândalo se cria de várias maneiras. Por exemplo: conta-se que certa vez Murilo Mendes ouvia um concerto com obras de Mozart no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Mas o concerto lhe pareceu muito ruim, e então, como admirador ofendido de Mozart, abriu de estalo o guarda-chuva em plena platéia, onde estava... Imaginem o susto geral... Essas são as pessoas capazes de criar o escândalo reparador, e essa qualidade rara Florestan possuiu durante toda sua vida, até o fim. Ele dizia o que tinha a dizer, na hora certa e a quem fosse preciso, e por isso pôde dar à ação um impacto de que é raro encontrar equivalente. A razão profunda disso é que ele era uma personalidade antiburguesa por excelência, para quem não existia o freio das “conveniências” e do “respeito humano”, quando coisas essenciais estavam em jogo. Ao mesmo tempo, Florestan era rigoroso nos deveres sociais, largamente hospitaleiro, de bela aparência, fino e bem vestido, e, na parte madura da vida, tolerante. Mas, sobretudo, foi, repito, radicalmente antiburguês. Era um homem que queria a superação das convenções, a limpeza das velharias consagradas, porque vivia em busca daquilo que permitiria a transformação revolucionária da sociedade. Nesse sentido é que digo: o grande homem Florestan Fernandes foi essencialmente, a vida toda, um militante incansável.

Este texto foi publicado em MARTINEZ, Paulo Henrique (org.). "Florestan ou o sentido das coisas". São Paulo, Centro Universitário Maria Antonia/USP e Boitempo, 1998, p. 38-45.

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