quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Mídia de SC foi “encoleirada” por Eike Batista

  Um adjetivo resume a cobertura dos meios impressos sobre a planejada instalação de um estaleiro na Grande Florianópolis: jornalismo constrangedor


Nos idos de 1998, a atriz Luma de Oliveira provocou polêmica ao desfilar em uma escola de samba com uma coleira na qual estava gravado o nome do então marido, o empresário Eike Batista. Passados 12 anos, quem permaneceu meses a fio – e não apenas uma noite de Carnaval – encoleirada pelo homem mais rico do país foi a mídia catarinense. Um adjetivo resume a cobertura dos meios impressos – aqui analisados de forma mais sistemática na edição de apenas um dia (17/11/2010) - sobre a planejada (e agora aparerentemente cancelada) instalação de um estaleiro na Grande Florianópolis: jornalismo constrangedor.
Uma das regras (há exceções) de nomear um entrevistado nos meios impressos é a seguinte: na primeira menção escreve-se o nome completo; nas seguintes, usa-se o sobrenome. Pois Eike Batista, nos jornais, não é Batista, é Eike. Assim, próximo, quase como se fala com um vizinho, um amigo de longa data. “Eike desiste do estaleiro em SC”, diz o título da reportagem especial publicada pelo carro-chefe dos impressos do Grupo RBS, o Diário Catarinense.
Este Eike Batista vem de uma família há décadas achegada ao poder. O pai, Eliezer Batista, já em 1949 foi contratado pela então estatal Companhia Vale do Rio Doce, na qual tornou-se presidente em 1961. Neste posto manteve-se até 64, assumindo novamente a presidência entre 1979 e 1986, a convite do então general João Figueiredo. Como presidente da Vale pela segunda vez, também foi o responsável pelo Projeto Grande Carajás, que passou a explorar as riquezas da província mineral dos Carajás - uma área de 900.000 km².
Essas relações foram consolidando prestígio e poder. O jornal Brasil de Fato (http://www.brasildefato.com.br/node/289 ) informa que Eike Batista é também o maior magnata de petróleo do país. “Através dos leilões realizados nos campos brasileiros, com auxílio direto de ex-diretores e ex-gerentes da Petrobras, contratados por ele, sua empresa, a OGX, tornou-se o maior grupo privado de exploração marítima do Brasil”. Em termos de áreas de exploração de petróleo em mar, a companhia dele só perde para a Petrobras, da qual Batista tirou e contratou, por salários para lá de vantajosos, diretores e gerentes que teriam acesso a informações privilegiadas sobre áreas de exploração e produção do Brasil e do exterior.

Eike” nos jornais – 17 de novembro
No dia 17 de novembro, a alardeada desistência da instalação do estaleiro teve a seguinte cartola, manchete e linha de apoio no Diário Catarinense, impresso que é o carro-chefe do Grupo RBS no Estado:
OSX bate martelo
Estaleiro não será em Santa Catarina, decide Eike Batista
Dificuldades na liberação de licenças ambientais fizeram com que o empresário decidisse construir o projeto em um complexo portuário do Rio de Janeiro
Nas páginas 4 e 5, a cartola e o título estampavam:
Adeus R$ 2,5 bilhões
Eike desiste do estaleiro em SC
Vale reproduzir a abertura da reportagem:
Os golfinhos venceram, e os moradores das praias do Norte da Ilha não precisam mais se preocupar. O Estaleiro OSX, um empreendimento de mais de R$ 2,5 bilhões e geração de 14 mil empregos, não vão vai ficar em Santa Catarina”.
O texto prossegue e informa que o novo local, no RJ, tem vantagens, em vários aspectos, bem maiores do que em SC. É de se perguntar, portanto, porque o Grupo do bilionário número 1 do país e seus parceiros internacionais insistiam em implantar o empreendimento no entorno de três Unidades de Conservação da Natureza na Grande Florianópolis. Mas a informação mais interessante é a seguinte: “No Rio de Janeiro, o empresário sabe que não terá problemas no futuro. É amigo do governador Sérgio Cabral e já tem muitos investimentos no Estado”. A coluna Informe Econômico, na mesma edição, diz que Biguaçu foi inicialmente escolhida porque Elizer Batista era próximo do ex-governador Luiz Henrique da Silveira, agora eleito senador por SC. É o que está por trás da velha ladainha empresarial, de que o Estado não deve intervir na iniciativa privada. Antes fosse, porque já não se trata da figura do Estado, e sim das amizades, do compadrio, que definem o futuro de comunidades inteiras.
Ao final do texto principal, lemos o seguinte: “O Grupo EBX anunciou que estuda outros empreendimentos para a propriedade em Biguaçu. O megaterreno já comprado poderá receber algum investimento do grupo. Como Eike sempre disse que não instala empresas onde não se considera bem-vindo, o que vem por aí não deverá chegar nem perto do que viria”.
Há entrevistados que lamentam o fato de o Grupo ter investido em SC, sem que se saiba agora o que será desses supostos investimentos. Digo “supostos” porque um deles, um Jardim Botânico em três locais da Capital, teria consumido R$ 650 mil em projetos. Quais projetos? Quem fez? Para planejar o quê? Não se sabe. O que fica é a impressão de que o Grupo perdeu esse dinheiro. Onde? Para quem?
O jornal Hora de Santa Catarina, também do Grupo RBS, no mesmo dia traz um destaque de capa: “Biguaçu não terá estaleiro da OSX”
Na matéria da página 4, intitulada “Biguaçu sem ESTALEIRO”, o texto – resumido ao extremo - tem a mesma abertura risível do DC, resumindo o debate à proteção dos golfinhos e dos moradores do norte da Ilha.
No Jornal de Santa Catarina, igualmente do Grupo, com circulação na região de Blumenau, o título na página 9 foi esse: “OSX. Estaleiro de Eike vai para o Rio.” O texto, menor do que o estampado no DC, começa com a mesma abertura já mencionada. É prática do Grupo usar o texto de um mesmo jornalista nos vários impressos que circulam no Estado.
O Notícias do Dia, do Grupo Ric/Record, circulou com a seguinte manchete: “Biguaçu perde o estaleiro para o Rio”. O jornal escolheu a página 3 para divulgar a decisão: “Rio de Janeiro fica com o ESTALEIRO”. No texto principal, a sempre mencionada criação de 4 mil empregos diretos e 4 mil indiretos e a informação, entre outras, de que o Grupo doaria R$ 20 milhões para a criação do Jardim Botânico de Florianópolis.
Guardei uma edição do ND, de 5 e 6 de junho de 2010, na qual havia um encarte especial sobre Meio Ambiente (em referência do dia 5), e o que me chamou a atenção foi o fato de a página 8 estampar o título “Estaleiro terá tecnologia e sustentabilidade” e a linha de apoio “Projeto da OSX segue padrões mais avançados para esse tipo de empreendimento”. O texto parece saído diretamente do setor de marketing do Grupo, mas em nenhum momento o ND deixa isso claro, o que, nos meios de comunicação, se faz com inserção da expressão “Informe Publicitário”. Isso informa o leitor de que não se trata de texto jornalístico.

O dia seguinte
O DC de 18 de novembro estampou, na capa, o seguinte:
O que sobrou do Estaleiro
Os novos planos que Eike Batista tem para o Estado
Direção da EBX diz que empresa pode instalar quatro outros projetos, entre eles, um hotel-marina, no mesmo local em Biguaçu.
No texto da página 6, intitulado “A Herança de Eike: o que ainda pode vir para o Estado”, há a informação de que, das sete empresas que formam o Grupo, uma está confirmada para atuar em SC, a REX, do setor imobiliário. Nada que impressione, dado que o prefeito de Biguaçu é ligado ao grupo Deschamps, de emprendimentos imobiliários.
Vale mencionar que, ainda no dia 6 de novembro, o Grupo RBS assim tratou uma manifestação contra a instalação do Estaleiro: “Elite de Jurerê Internacional se une contra Estaleiro OSX”, com o seguinte início de texto: “A briga é de cachorro grande. Os ricos de Jurerê Internacional decidiram apoiar ambientalistas e pescadores contrários ao Estaleiro OSX em Biguaçu, na Grande Florianópolis”.
Mas é certo que a visão do Grupo que traz a marca do oligopólio da comunicação no Estado apareceu bem antes, em 6 de junho de 2010, na página 14, dedicada aos “Grandes Temas”, No caso em questão, tratava-se do “Sim ao Desenvolvimento”. Do editorial extraio os seguintes trechos sobre o Estaleiro:
Esse empreendimento, que em qualquer sítio do mundo despertaria o júbilo do equilíbrio e da maioridade financeira, um pecúlio para as gerações do porvir, em Santa Catarina se vê ameaçado por uma ótica de viés obscurantista, que prevê, liminarmente, a impossibilidade de blindagem ecológica capaz de proteger o meio ambiente da região escolhida.
Claras manifestações de má vontade – de vezo nitidamente ideológico e de aversão ao investimento - irrompem em instituições engajadas, que ingressam na jurisdição técnica da Fatma, órgão estadual qualificado para examinar com rigor científico e isenção as condições oferecidas pela OSX em seu relatório de impacto na área de implantação do estaleiro, ora em análise pela autoridade ambiental de Santa Catarina (grifos meus, para lembrar que a Fatma também foi elencada na até hoje mal-explicada Operação Moeda Verde).
[...]
Há no ar uma certa “ecoteocracia” temperada por um verdismo desmedido e insensato, entre a queda do Império Romano e a ascensão de Carlos Magno, em que a unidade básica da sociedade era a pequena aldeia agrícola. A única maneira de os homens estarem em harmonia com a natureza seria viverem “em nível de subsistência”.
No dia 8 de junho, leio no mesmo DC, com a cartola “26 anos depois”, o título “Oito são condenados por desastre na Índia” acompanhado de matéria de Agência. Os acusados, hoje na faixa dos 70 anos, tiveram penas de até dois anos de prisão. Eles pagaram fiança e vão esperar em liberdade o resultado de um recurso. Foi a primeira condenação desde o acidente, em 1984, quando um vazamento em uma subsidiária da Union Carbide matou cerca de 25 mil pessoas em Bophal, na Índia. Mas quem quer saber desses mortos? Sim ao Desenvolvimento!!!
Recentemente a mídia noticiou que a “...OSX, empresa do setor naval e de equipamentos para a indústria de petróleo do empresário Eike Batista, quer financiamento do Fundo de Marinha Mercante e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a construção do seu estaleiro no litoral norte do Rio. O investimento total do estaleiro, que, segundo a empresa, será o maior das Américas, é estimado em US$ 1,7 bilhão”.
Em seu livro “Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal” (Record, 2001), o geógrafo Milton Santos diz o seguinte (p.35): “A associação entre a tirania do dinheiro e a tirania da informação conduz, desse modo, à aceleração dos processos hegemônicos, legitimados pelo “pensamento único”, enquanto os demais processos acabam por ser deglutidos ou se adaptam passiva ou ativamente, tornando-se hegemonizados”.
Acene-se com 14 mil empregos diretos e indiretos (quais, onde, por quanto tempo?) - e com um Grupo de Mídia a serviço dessa lógica - e temos instalado o “pensamento único”. Quem dele destoa é refém de uma “ótica de viés obscurantista”.
No mesmo livro, Milton alerta para a morte da política com P maiúsculo, “...já que a condução do processo político passa a ser atributo das grandes empresas (p.60)”. E as grandes empresas, como se viu no caso de “Eike”, são sempre grandes amigas dos políticos. E assim elas chantageiam, ameaçam ir embora, sempre com o discurso de que são “salvadoras dos lugares (p.68)”, como diz Milton, estabelecendo guerras fiscais entre um estado e outro da federação.

Nós e eles”
O episódio da instalação do estaleiro escancarou quem, em Florianópolis, são os “nós” e os “eles”, que claramente se identifica nos conflitos na cidade.
Vale a pena relembrar um caso exemplar, a instalação de um empreendimento empresarial turístico (campo de golfe) no balneário de Ingleses, em Florianópolis. Próximo ao empreendimento mencionado há uma comunidade, a Vila do Arvoredo, também conhecida como Favela do Siri, que começou a se formar nos anos 1980. No embate travado para a instalação do campo de golfe, é ilustrativo o conjunto de comentários feitos pelo então governador do Estado, Luiz Henrique da Silveira, em entrevista concedida à TVBV em abril de 2007, na qual há 17 minutos referentes à temática ambiental. Ver em http://video.google.com/videoplay?docid=-8286208201407673708#
Nela o governador Luiz Henrique da Silveira menciona o assunto (1), quando questionado sobre a reclamação dos empresários em relação à “burocracia” e a “dureza” das leis ambientais:
1- Eu acho que nós vamos ultrapassar esse período negro, que não é possível que nós não possamos ter em uma ilha como essa, maravilhosa, certo, marinas para receber turistas estrangeiros com muito dinheiro que venham gastar aqui e gerar emprego. Que nós não consigamos fazer um campo de golfe, meu deus do céu. Em Marbela, você viu, tem 50 campos de golfe e por isso aquela vila pobres de pescadores foi transformada num dos maiores pólos milionários de turismo. Então nós precisamos ter uma evolução. O que as pessoas têm que ter em mente é que uma marina não polui. Nós vimos lá em Marbela, dentro da marina, a profusão de peixes que havia. Pelo contrário, ela desenvolve, ela embeleza. Ela traz um novo dinamismo para as cidades. Então nós temos que superar isso, estamos com um grave problema, eu vou dizer aqui especialmente para os florianopolitanos [...].
No trecho seguinte (2), o governador classifica de “medievalismo” a posição do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em relação às licenças ambientais e diz que é preciso descentralizar as decisões relativas às políticas de meio ambiente:
2 - Quem sabe cuidar mais de Florianópolis é o florianopolitano. É a Prefeitura, é o vereador. Quem sabe cuidar mais do meio ambiente do estado é o Governo do Estado, são os deputados estaduais. Então é preciso acabar com essa burrocracia [com dois erres na pronúncia] em que dois ou três técnicos lá em Brasília, longe da realidade, decidem as coisas, ou não decidem, porque um monte de processo, uma montoeira de processo não lhes dá tempo nem de examinar os processos.
Um dos apresentadores pergunta então se não é necessário haver controle em relação a isso, porque a natureza estaria “dando resposta” às ações humanas, ao que o governador questiona (3):
3 - E agora você me diz: e a favela do Siri, ali? Do lado do campo de golfe que não querem deixar o Fernando Marcondes [de Mattos, empresário] fazer? Por que não se proíbe a proliferação de favelas, que joga - me permita a expressão irada - cocô para a praia para provocar doenças nas nossas crianças? Por que não se atua nisso aí para impedir? Né? Por que não se atua nisso aí para impedir? A favela pode poluir a praia. Agora, um resort, um hotel, um campo de golfe, para atrair turista e gerar emprego e renda não pode.
Do ponto de vista discursivo, evidencia-se, na fala do governador, uma série de indícios que apontam para diferentes sujeitos sociais: “não querem deixar (...) fazer” (quem?); “nossas crianças” (quais?); “por que não se atua (...)” (quem?). No trecho 2, ele deixa explícitos, porém, os sujeitos sociais que seriam os mais capacitados para “cuidar” do “meio ambiente” do estado. E no trecho 1 está sinalizado o exemplo da “evolução”, o balneário de Marbella, na Costa do Sol, Espanha, totalmente descaracterizado pela especulação imobiliária estimulada pela corrupção.
Essas considerações nos levam a crer que a implosão desse modelo de jornalismo constrangedor, insustentável, é o desafio e o fardo do tempo histórico imposto aos jornalistas no Sul do mundo, expressão que retiro de livro de István Mészáros “O desafio e o fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI (Boitempo, 2007). Milton Santos acreditava que a mídia, sob a pressão das situações locais, deixaria de representar o senso comum imposto pelo pensamento único. Então, como dizia Fox Mulder, eu também quero acreditar. Acreditar em uma mídia sem coleiras com a tirania do dinheiro e da informação.

Míriam Santini de Abreu é jornalista.

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