A onda de violência sistemática deflagrada na região metropolitana do Rio de Janeiro, a partir do dia 21 de novembro de 2010, exige uma leitura crítica diferente da abordagem feita por uma parte considerável dos principais veículos midiáticos de circulação e nacional. Mais uma vez, tais veículos se orientam pela espetacularização dos eventos que assustam a população; numa análise de tabula rasa, constroem uma narrativa mitificadora – “a luta do bem contra o mal”; anunciam o início de uma guerra e colocam as ações dos agentes criminosos, ligados ao tráfico de drogas, como atos terroristas comparáveis aos perpetrados por organizações com propósitos político-ideológicos. Um noticiário que contribui para uma comoção geral, em que todas as medidas possíveis, inclusive aquelas executadas ao arrepio da lei, possam alcançar o controle da situação e restabelecer a paz em toda a metrópole, apostando na economia política do medo, capturando o apoio da maioria da população.
Os fatos, que já produziram 46 mortes, entre elas as de crianças e idosos, estabelecem inúmeras conexões com componentes que violam o estado de direito e tudo que possa assegurar a cidadania plena. São fatos que, sem ignorar a importância de medidas imediatas de coerção e outras que visem o aparelhamento e qualificação da polícia, servem para evidenciar e problematizar um evento que não cabe em um padrão de análise dicotômico. Portanto, destacamos três questões que estabelecem relações entre si, entendidas em um cenário de conjugação de políticas de segurança e de políticas de urbanismo, conformando uma espécie de estratégia de controle geral da cidade, em que o Estado, na condição de aparato regulador, tem desempenhado o papel de administrar a separação social entre asfalto e favela e ditar os limites da convivência possível no contexto da desigualdade. (BOCAYUVA, Pedro Cláudio Cunca. Os riscos da comunidade capturada versus a plataforma da “favelania”. Revista Otra Economía. Volumen III – nº 5 – 2º semestre /2009 – ISSN 1851-4715.
A primeira é a de que a onda de violência demonstra os limites das ações do governo do estado no campo da segurança pública. O esgotamento do discurso da “política do enfrentamento”, da “política de guerra” perante os mais diversos setores da sociedade acabou por propiciar a legitimação do atual discurso de pacificação, consolidando a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora - UPPs. A implementação das UPPs tornou-se o símbolo daquilo que elas não são – uma política pública de segurança. De fato, as UPPs foram capazes de reduzir significativamente a exposição de moradores à letalidade do confronto entre policiais e agentes do tráfico. As UPPs, no entanto, estão longe de ser uma política de segurança pública. Sem contar com os problemas que acompanham a sua presença no território - ações invasivas dos policiais dirigidas aos moradores; agentes policiais ocupando o espaço de agentes e organizações sociais nos processos de pressão e mediação para garantir determinados bens e serviços públicos, entre outras questões.
A segunda é a reconfiguração da relação entre os agentes públicos corruptos do estado, muitos da polícia, com os traficantes de drogas que atuam nos pontos de vendas- pagamento de propina, pacto entre grupos de policiais com organizações de traficantes rivais, aluguel de armas, facilitações para o comércio das drogas ilícitas, ações de contra-informações ou vazamento de informações aos grupos criminosos etc. Tudo indica que estão em curso mudanças na base dessa relação. À medida em que se expandem as UPPs e as milícias, com inserção e forte delimitação territorial, a relação entre a parte da polícia corrupta e o tráfico de drogas, com a sua clássica estrutura, vai perdendo espaço. Dois artigos ajudam a elucidar esse ponto, que podem ser encontrados em (http://luizeduardosoares.blogspot.com/) e (http://www.cartacapital.com.br/sociedade/violencia-no-rio-a-farsa-e-a-geopolitica-do-crime).
A terceira questão se relaciona diretamente com a anterior. Refere-se ao intenso processo de mercantilização das principais metrópoles brasileiras. Um processo que tem como pano de fundo um modelo de desenvolvimento urbano perverso, com fortes componentes classistas que reforçam a segregação socioterritorial, que apartam os mais pobres e negros da dinâmica socioeconômica e cultural da cidade. Combinado com o apelo dos megaeventos esportivos, especialmente para a cidade do Rio de Janeiro que sediará as Olimpíadas em 2016, a metrópole fluminense passa por intensas mudanças, ao tornar-se o espaço privilegiado para o ingresso de investimentos do grande capital, que busca ampliar a sua lucratividade.
Mas para o sucesso dessa investida capitalista, são necessárias intervenções que gerem impacto no tecido urbano, tanto em sua dimensão material quanto simbólica. As intervenções materiais são aquelas feitas com vultosos recursos públicos para a realização de obras e intervenções de infraestrutura urbana – reforma do Maracanã, Veículo Leve sobre Trilho, Porto Maravilha, linha de metrô para a Barra da Tijuca, ampliação da rede hoteleira, teleférico do Complexo do Alemão, alargamento de vias rodoviárias, remoções de famílias para áreas distantes do centro da cidade. A dimensão simbólica, permeada pelo forte apelo emocional que tais eventos provocam - paixão pela seleção nacional, patriotismo, orgulho coletivo, coesão em torno do mesmo propósito etc, cria uma atmosfera ideológica propícia a eliminar ou mitigar qualquer componente que ameace o bem estar dos grandes investidores, ávidos por mais lucros. É bom frisar que esses investimentos com recursos públicos, e todas as suas vantagens, tendem a ser apropriados por corporações privadas. A história dos grandes eventos esportivos demonstra isso. Foi assim no Canadá, na Grécia, na Espanha e no Panamericano, em 2007, na própria cidade do Rio de Janeiro (ver artigo da revista Proposta nº 120).
A dimensão simbólica é alimentada com narrativas produzidas pela mídia, com propagandas governamentais, ações concretas governamentais e da iniciativa privada com provisão de equipamentos culturais, eventos artísticos, festivais musicais, estetetização de espaços públicos e ações objetivas que impactam diretamente a vida das pessoas e visam assegurar um ambiente harmônico, sem conflitos de interesse, inclusive entre os grupos sociais que ocupam diferentes espaços da metrópole. E os episódios atuais com as medidas implantadas pelo governo do Rio de Janeiro, para conter a onda de violência, é mais uma das medidas com impacto na dimensão simbólica da região metropolitana fluminense.
Os episódios atuais e as perspectivas futuras contribuem para justificar medidas de exceção que violam fragorosamente os direitos humanos. Não é à toa que as palavras “guerra” e “terrorismo” são expostas a ressignificações para justificar a presença das forças militares, no uso de armamentos de guerra em espaços urbanos, com alto risco de letalidade, invasão de casas, prisões ilegais e outras medidas que apavoram muito mais quem vive nas favelas do quem está na cidade “formal”. Imagine-se tentar dormir e acordar durante dias e horas num ambiente em que a qualquer momento alguém poderá invadir sua residência ou que ela poderá ser alvejada por uma munição capaz de perfurar um automóvel blindado. O processo de mercantilização da cidade é acompanhado da flexibilização das leis para desbloquear o lucro do capital. Também é preciso que o estado demonstre que tem o controle e é capaz de exercer o monopólio da força – com isso, acentua-se a militarização do território, a criminalização da pobreza e a violação dos direitos humanos. A cidade precisa ficar livre para o ingresso e a reprodução do capital. Mais do que nunca, em tempo de crise nos países desenvolvidos, o solo urbano é um ativo de grande valor num país como o Brasil, em que a economia demonstra vigor.
Em meio a esse complexo cenário, é importante mencionar que nessa guerra não há vencidos nem vencedores. O conflito está visibilizado. Nos cabe agora politizar esse debate. Disputar os significados do projeto de cidade policiada que está colocado para o Rio de Janeiro nos próximos anos. É o momento de ressaltar e fortalecer a mobilização crítica de grupos sociais em torno da questão. Na última semana, ao mesmo tempo em que se acirravam os conflitos no Complexo do Alemão, dois seminários colocavam em debate a democratização da cidade: (i) um dentro de uma articulação nacional, com representantes de movimentos sociais de 10 cidades brasileiras, além de uma representante da África do Sul e (ii) outro com organizações do Rio de janeiro. Isso indica que há a organização de um discurso e uma ação no sentido de uma cidade includente, que não criminalize as populações mais pobres que vivem nos morros e periferias e defendendo que as mudanças estruturais ligadas aos megaeventos devam beneficiar principalmente quem mais precisa. Essas mudanças devem servir para afirmar a cidadania, respeitar e garantir os direitos humanos, contrariamente a uma lógica de privatização da cidade.
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