segunda-feira, 28 de maio de 2012

"500 anos de falcatruas" - artigo de José Arbex Jr. sobre a impunidade da corrupção no Brasil

“Vou quebrar. Agora virei leproso, né? Agora eu só tenho defeitos, eu sou bandido”, queixa-se Fernando Cavendish, compadre do governador carioca Sérgio Cabral (PMDB) e dono da empreiteira Delta (afastado do cargo de presidente, em 25 de abril), acusado de manter relações espúrias com Carlos Augusto de Almeida Ramos, o bicheiro Carlinhos Cachoeira – a mesma empresa que, em 2008, contratou como assessor o deputado federal cassado e ex-chefe da Casa Civil José Dirceu (PT), por módicos R$ 20 mil mensais. E Cachoeira é o mesmo que, em 2002, gravou uma tentativa de extorsão feita por Waldomiro Diniz, braço direito de José Dirceu, produzindo uma evidência que, dois anos mais tarde, daria origem ao espetáculo do “mensalão”. A rigor, portanto, o novo escândalo nada tem de novo: é apenas um desdobramento tardio do outro. Com a sinceridade típica dos derrotados, o queixume de Cavendish revela um traço fundamental da suposta democracia brasileira: ele virou “leproso” apenas e unicamente por ter “quebrado”, por ter sido apanhado com a boca no botija e não por estar no centro de uma imensa máquina de corrupção. O grande pecado no Brasil é perder, não é lesar o erário.

A eclosão do “novo” escândalo abriu, mais uma vez, as comportas à sofreguidão midiática dos tradicionais arautos do moralismo. As sessões da CPI mista criada para investigar o caso servirão de palco para que parlamentares vestidos de puras vestais apareçam sedentos de vingança, sangue e punição dos “leprosos”. Arremedos risíveis de Carlos Lacerda entoarão a mesma cantilena cívica e “republicana”, palavra predileta que soa como escárnio na boca de políticos do naipe do ainda senador Demóstenes Torres (desligado do DEM), amigo íntimo de Cachoeira e hoje a caminho do cadafalso. O curioso currículo “republicano” de Demóstenes inclui, entre outras pérolas, a “tese” de que escravas brasileiras consentiam no próprio estupro. Semanas, meses e anos se passarão, e nada – absolutamente nada – acontecerá, exceto por um ou outro episódio anedótico.

Nada acontecerá no sentido de que até mesmo a queda de um presidente sob acusação de corrupção, nos idos de 1992, deixou intacta a estrutura clientelista e opaca do Estado brasileiro. Tão intacta, que o atual senador Fernando Collor de Mello foi indicado para representar o seu partido (PTB) na “CPI do Cachoeira”. Seu primeiro pronunciamento, logo na abertura dos trabalhos, foi comicamente radical: tentou aprovar, em vão, a convocação do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, além de ter participado de conchavos e conversas de pé de ouvido com seus companheiros do PT. Nada, absolutamente nada acontecerá.

Em seu livro O poder do atraso – ensaios de sociologia da história lenta (Hucitec, 1994), o sociólogo José de Souza Martins mostra que o espantoso, em 1992, não foi a queda de Collor de Mello por prática de corrupção, mas  sim o mero fato de ele ter sido reconhecido como um político corrupto. Afinal, ele não fez nada de substancialmente distinto de seus antecessores. No Brasil contemporâneo, por exemplo, não foi reconhecido como um escândalo nacional a decretação, em 17 de abril, da extinção da pena, pela Justiça do Rio de Janeiro, do ex-banqueiro Salvatore o Cacciola, que estava em liberdade condicional desde 23 de agosto de 2011. Preso por prática de fraude contra o erário (incluindo o recebimento de uma “ajuda” do Banco Central, concedida em 1999, sob o governo FHC, no valor de R$ 1,5 bilhão, aproximadamente R$ 5 bilhões em valores atuais), foi condenado, em 2005, a 13 anos de reclusão. Passeia agora por aí, nem tão lindo, mas leve e solto, de posse de todo o dinheiro subtraído ao erário, ao passo que mães que furtam comida em mercearias e supermercados para alimentar filhos famintos amargam penas de até dez anos. A liberdade de Cacciola não aparece como um imenso e insuportável escândalo nacional, e é neste fato que reside a verdade da “democracia” brasileira, e não no grande circo dos bicheiros encalacrados.

Em 1992, a destituição de Collor parecia indicar que o Brasil, finalmente, entrava em uma nova fase de legitimidade institucional. Isso não aconteceu. A “história lenta” esmaga, com o peso de séculos de escravismo, quaisquer possibilidades de mudanças reais exigidas pela juventude, pelos trabalhadores, pela nação: O Brasil “moderno” paga propina ao Brasil arcaico para poder existir, sintetiza Souza Martins. A origem mais remota da corrupção é o sistema de casa grande e senzala, ainda muito longe de seu fim. Os donos da casa grande se julgam, com cínica razão, no direito de manobrar as instituições de Estado como se fossem assunto privado, infenso ao controle público – já que “público”, no caso, se confunde com a própria senzala. E exercem esse direito, com desenvoltura. A casa grande acredita, firmemente, não dever explicações à senzala. A “modernização” do Brasil e a incorporação à economia de vastos setores que antes estavam fora da esfera do consumo – a chamada “classe c” ou coisa que o valha – não alterou essa estrutura, apenas fortaleceu as máfias e oligarquias regionais, que também se sentem no direito de exigir a sua participação no bolo.

Não será necessário, aqui, descrever com pormenores o esquema tentacular montado por Cavendish e asseclas – tarefa cumprida por uma mídia que vai lucrar horrores com mais uma exposição das vísceras do cadáver eternamente putrefato daquilo que se convenciona chamar democracia brasileira -, para demonstrar aquilo que já se sabe, o que sempre se soube: parlamentares, governadores e figuras emblemáticas dos maiores partidos estão envolvidos. Sabemos até a quantia necessária para comprar, hoje, a boa-vontade de senadores e deputados, a se acreditar no próprio Cavendish: “Se eu botar 30 milhões de reais na mão de políticos, sou convidado para coisas para caralho”, afirmou. Cavendish, Cachoeira e assemelhados são apenas faces de uma velha, velhíssima prática historicamente consagrada no Brasil, mediante a qual o dinheiro privado compra os favores dos encarregados de gerenciar a coisa pública. Ou, em outros termos, são agentes da privatização do estado por meio da corrupção. É uma prática que se alastra por todos os níveis de governo, dos municípios ao Planalto.

O cientista político Fernando Abrucio, colunista da revista Época, chama a atenção para um estudo recente publicado pelo Instituto Ethos (www.ethos.org.br), que demonstra a ocorrência de uma crescente concentração de poderes nas mãos dos poderes executivos estaduais. No controle do uso da máquina do estado, os governantes formam maiorias avassaladoras nas assembleias legislativas e impedem o surgimento de uma oposição real, além de angariar meios para sufocar qualquer tentativa de eventual investigação de práticas lesivas à democracia. Entre 2007 e 2010, diz o estudo, “em oito das 27 unidades federativas, a coalizão que venceu as eleições para governador obteve a maioria também na Assembleia Legislativa. Após a formação do governo, esse grupo cresceu para 21 Estados. Desse grupo, em sete a oposição foi reduzida a menos de 30%, em dois a menos de 20% e em outros dois a menos de 10%”. Ainda segundo o mesmo estudo, na maioria dos estados brasileiros os colegiados dos Tribunais de Contas têm relações de “forte proximidade política” com os governantes. Em resumo: os governadores controlam a maioria das assembleias legislativas, reduzidas à mais absoluta impotência, e são “amigos” dos “fiscais” dos TCUs. As raposas vigiam os galinheiros.

Repete-se, portanto, nos Estados, o mesmo esquema que se presencia no âmbito federal, onde nunca vigorou o “equilíbrio entre poderes”: o país é sistematicamente governado por medidas provisórias que brotam aos milhares do Executivo, reduzindo o Congresso a um grupo destinado a atribuir legitimidade aos atos emanados de um monarca eleito a cada quatro anos. O máximo que se negocia, no Congresso, são as fatias do orçamento que servirão para alimentar os esquemas regionais de favores e clientelismo – precisamente, o espaço em que atuam empreiteiras, bicheiros e que tais. Há, em resumo, um simulacro de equilíbrio entre os poderes, uma grande farsa que apenas se torna momentaneamente perceptível quando algum grande esquema é desmontado, como acontece agora.

Nos raros momentos de “abertura forçada”, as engrenagens do sistema são perigosamente expostas, a sua lógica real se revela, a tampa do bueiro se abre e deixa escapar os gases fétidos do esgoto. As linhas de clivagem, de disputas de interesse entre máfias, de desafetos e ressentimentos se abrem e atingem todos os poderes, incluindo o ultra fechado, opaco e aristocrático Supremo Tribunal Federal. Ao deixar a presidência do STF, em 18 de abril, Cezar Peluzo sequer recebeu a tradicional homenagem de seus pares, fato sem precedentes num ambiente em que o cerimonial é tudo. Conhecido pela sede de sangue com que lutou pela extradição do italiano Cesare Battisti, ex-preso político no Brasil, e pelas tentativas de obstar a ação da corregedora nacional de Justiça, Eliana Calmon, Peluzo concluiu o mandato jogando pedras no seu par, o ministro Joaquim Barbosa, que, ao rebater, qualificou-o como "ridículo", "brega", "caipira", "corporativo", "desleal", "tirano" e "pequeno". Mas, muito provavelmente, há mais em jogo do que meros desafetos pessoais: Barbosa é relator do “mensalão” e assumirá em sete meses a presidência do STF, como sucessor de Ayres Britto, que substitui Peluzo. Como é público e notório, Peluzo e Barbosa jogam em times diferentes, tanto no caso do “mensalão” como em tantos outros. A eclosão da crise agita os implicados, aquece a retórica e diminui a prudência.

Vísceras expostas, o espetáculo midiático se encarrega de criar a sensação de que “desta vez” a justiça será feita, e que a democracia sairá fortalecida. Leitores, telespectadores e ouvintes aguardam com ansiedade por novos acontecimentos, torcem pelos seus ídolos no congresso, aplaudem os discursos, vaiam os bandidos, organizam passeatas. Em momentos extremos, a justa expectativa cívica quase supera a paixão pelo futebol. “Desta vez” a justiça será feita. Como num passe de mágica, a histeria coletiva parece impossibilitar qualquer análise minimamente crítica. O que importa se o vilão Collor ressurge das cinzas como o campeão da moralidade? Quem se lembra de João Arruda, senador pelo PSDB e líder do governo no senado, em 2001, quando foi forçado a renunciar, em patético pranto nacionalmente veiculado pela TV, em meio a um escândalo de corrupção, apenas para ser eleito governador do Distrito Federal, pelo DEM, cinco anos depois, de onde saiu preso, em 2010, novamente por prática de crime contra a ordem pública? Alguém se atreve a dizer que ele não voltará? O que importa se mesmo a mobilização de milhões, em 1984, pelas Diretas Já, acabaram desembocando na condução do oligarca José Ribamar Sarney, ex-presidente da Arena, o grande partido da ditadura, ao cargo máximo da suposta democracia brasileira? Ribamar, o presidente democrata.

A memória desaparece, sob o impacto da catarse. “Desta vez” a justiça será feita. Mas não será, pelos simples fato de que os fundamentos do esquema de corrupção não serão sequer arranhados. É ainda o sociólogo Souza Martins que oferece um diagnóstico contundente: “Corruptos não são apenas alguns. A maioria dos brasileiros, sem o saber, está envolvida na trama da corrupção. É que a corrupção entre nós é endêmica e histórica, impregnou a cultura do povo e está distribuída por praticamente toda a esfera pública. Ela se originou no regime patrimonial que deu nascimento a esta nação: troca de favores materiais por favores políticos, troca de voto por favorecimentos, fazer política negando a igualdade de direitos, o voto como bem material e privado e não como direito que encerra deveres para com o país. A grande corrupção não seria possível se não fosse expressão de uma cultura da corrupção miúda e cotidiana. Vários notoriamente envolvidos no caso do mensalão foram reeleitos na eleição seguinte. Vários retornaram ao parlamento proclamando que tiveram a inocência reconhecida pelo povo no ato de reelegê-los. Aqui, ao votar, com as muitas e óbvias exceções que há, nós apenas nos rendemos, entregamos incondicionalmente a nossa vontade política aos eleitos, renunciamos.”

Mas, ao contrário do que se poderia depreender de sua análise, não há uma inexorabilidade histórica em curso. O Brasil não é “cronicamente inviável”, nem há um destino previamente traçado. Há um caminho a ser percorrido para promover mudanças reais. Basta destruir o sistema que faz coincidir três mapas: o mapa dos donos do latifúndio, do agronegócio e do sistema financeiro, o mapa dos donos da mídia e o mapa dos que controlam o congresso nacional. Mas isso está muito longe de acontecer, a julgar, por exemplo, pela brilhante vitória que eles tiveram com a aprovação, em 25 de abril, do novo Código Florestal, com a prestimosa ajuda de seus lacaios do PC do B. Quando, enfim, esses três mapas deixarem de ser um só –-, mesmo nos marcos de um regime capitalista ou social democrata (se isso por possível neste país), o Brasil será outro. Mas, para isso, terá que abolir a escravidão. 


Fonte:Npc

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