Ciro Gomes uma vez disse, em entrevista à CartaCapital, que a imprensa brasileira é ruim porque, justamente, preocupa-se em demasia em fazer o que ele chama de “novelização escandolosa” da política. É um conceito generalista, mas de bom estilo, além de pertinente – aliás, pré-condição de qualquer bom conceito. Encaixa-se no recente noticiário, cheio de quadrinhos de alegria, sobre as inusitadas compras feitas com cartões corporativos, tornado uma brincadeira razoavelmente de mau gosto. Principalmente depois de a Marinha de Guerra do Brasil, acusada de comprar ursinhos de pelúcia, revelar ter adquirido, na verdade, uma ruma de panos para forrar o suporte de madeira onde se acondicionam as medalhas oferecidas a visitantes ilustres e outros tantos homenageados da força naval. A tese de Ciro se comprova com assustadora freqüência, mas às vezes a vida imita a mídia, como ocorreu em recorrente ribalta da comédia nacional, o Senado Federal, onde o grande ator Osmar Prado chorou, dias atrás. Falo “grande” sem ironia, antes que haja um infeliz mal entendido, porque Osmar Prado é um ator de primeira linha, da safra formadora de várias gerações de atores e atrizes da TV Globo. Osmar Prado é parte indissociável de um tempo de novelas feitas para mexer com o imaginário e o espírito das pessoas, ao contrário das de hoje, escritas em tom priápico, como se toda a fantasia possível estivesse encerrada em homens sem camisa e mulheres com furor uterino entretidos em enredos constrangedoramente primários. Então, como eu dizia, Osmar Prado chorou, em frente a Ciro Gomes, porque lhe assaltou a alma a dor dos sertanejos nordestinos ameaçados pela transposição do rio São Francisco. Calou-se, diante dele, uma platéia de contritos senadores, uma comoção inusitada nascida da triste inspiração da possível desgraça futura do Velho Chico. Ainda assim, é possível haver um gesto ensaiado nisso tudo. A transposição do São Francisco é um desses assuntos em que todo mundo tende a ter uma posição, ainda que baseada em fragmentos de notícias e opiniões difusas de políticos e especialistas, quando não em preconceitos. Para uns, será a morte do rio. Para outros, a salvação da lavoura. Virou, como tudo no Brasil, um jogo de futebol, uma disputa de torcidas. Terá, no fim das contas, um perdedor a ser humilhado, ainda que sejamos todos nós. Por isso que, além de ver Osmar Prado chorar, Ciro Gomes também bateu boca com a atriz Letícia Sabatella, indefectível musa da transposição. O instantâneo da cena, reproduzido em sites e jornais, revela a atriz de semblante crispado, em plena congestão espiritual, metida em um jaquetão quadriculado, bela e desafiadora ante o dedo meio em riste do deputado cearense, este, com certo jeito de quem dá um aviso. Ao contrário da maioria dos envolvidos no debate, Ciro parece saber do que fala, se não sabe, finge muito bem. “Há vazão suficiente no rio para se retirar os 26 metros cúbicos por segundo (de água, claro) previstos para a transposição”. É água para atender 12 milhões de pessoas, em quatro estados. Mas não irá redimir o Nordeste, avisa o deputado. Letícia Sabatella, como se sabe, está com o bispo Dom Luiz Cappio, de Barra do Rio Grande, um antigo e culturalmente curioso município ribeirinho da Bahia. Na Guerra do Paraguai, de lá saíram cem voluntários para lutar pelo imperador Pedro II. Voltaram todos vivos. Em homenagem a eles, as festas juninas do lugar incluem representações teatrais de batalhas travadas contra os guaranis. Talvez por isso, por pisar em solo consagrado a sobreviventes, Dom Cappio tenha fracassado nas duas tentativas que fez de morrer, ambas por inanição, em chantagens mal disfarçadas de greve de fome. Em certo momento, ficou claro ao bispo que o governo Lula iria deixá-lo perecer, para desespero das beatas e certa satisfação do público em geral, sedento por um grande drama nacional. Por ter sobrevivido, contudo, o padre perdeu a credibilidade, tanto, e de tal modo, que nem a belezura de Letícia Sabatella há de lhe redimir esse passado de mau pecador.
Por tudo isso, Osmar Prado, o inesquecível Tião Galinha da novela “Renascer”, chorou em plenário.
*Leandro Fortes é jornalista, professor e escritor, autor dos livros Jornalismo Investigativo, Cayman: o dossiê do medo e Fragmentos da Grande Guerra, entre outros. Também mantém um blog chamado Brasília, eu vi
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